“É difícil fazer uma caracterização de mim próprio. Quero melhorar todos os dias, espero convencer os jogadores do mesmo. Sou alguém que diz as coisas como elas são – o bom é bom, o mau é mau. Não gosto de ficar colado à minha tática preferida mas sim procurar aquilo que é o melhor para a equipa”, dizia Marcel Keizer quando orientava no Ajax. É da sua passagem pelo conjunto de Amesterdão que mais se fala, apesar de ter durado menos de dois anos, é no conjunto de Amesterdão que mais se revê. Mais do que a aposta num treinador, Frederico Varandas aposta numa ideia – que por mera coincidência tem ligações a pessoas próximas da sua confiança. Mais do que o currículo (ou a falta dele), o presidente do Sporting aposta num modelo.
Entre os possíveis nomes, uma surpresa: Marcel Keizer ganha força como próximo treinador do Sporting
A formação do Ajax já teve os seus altos e baixos. Dificilmente voltará a ser como nos anos 70, 80 ou 90 – altura em que o próprio Marcel Keizer, então no papel de médio, por lá passou – mas foi tendo a capacidade de se reinventar várias vezes voltando aos pormenores mais básicos que faziam a diferença, da correta passagem de jovens talentos para o conjunto principal aos retoques nas redes de prospeção (que a certa altura se foram perdendo com investimento muitas vezes sem retorno nos mercados de fora), passando por pormenores como o enquadramento desportivo e social dos miúdos da formação. No fundo, uma espécie de back to basics que incluía o estudo das melhores formas para os mais novos voltarem a ter contacto com o futebol de rua que se perdeu com o tempo. Na Direção estão referências como Tonny Bruins Slot ou Dick Schoenaker, na parte mais operacional encontram-se antigas estrelas como Van der Sar (diretor geral) ou Marc Overmars (diretor técnico). Foi da dupla que ganhou a Champions em 1995, entre outros troféus, que saiu o convite ao novo técnico do Sporting.
Keizer não teve propriamente uma grande carreira como todos os nomes supracitados. Longe disso. Destacou-se nos nove anos em que representou o Cambuur, acabou após passagens por De Graafschap e Emmen. Antes disso, jogou duas temporadas no Ajax (com pouca utilização). E começou a conhecer em detalhe este mundo do futebol em estado puro chamado Ajax.
Marcel é sobrinho de um dos mais lendários jogadores holandeses, Piet Keizer (falecido em fevereiro do ano passado). Extremo esquerdo, ajudou a escrever com Johan Cruyff e companhia aquilo que ficaria conhecido como o Futebol Total, com o comando de Rinus Michels e Stefan Kovacs. Em 13 temporadas no conjunto de Amesterdão nas décadas de 60 e 70, esteve na equipa que foi tricampeã europeia no início dos anos 70 e ganhou mais 15 troféus entre provas holandesas e internacionais, além de ter marcado presença na seleção finalista vencida no Mundial de 1974 contra a RFA (apesar de não ser opção inicial). Nesse mesmo ano, mostrou-se contra as ideias táticas do técnico contratado pelo Ajax, Hans Kraay, e arrumou de forma prematura as botas com 31 anos. O jornalista Nico Scheepmaker escreveu dele um dia “Cruyff is the best, but Keizer is the better one”.
O novo treinador do Sporting cresceu com este pedigree que desde cedo o fez saber mais e mais sobre futebol mas teve naqueles dois anos, entre 1987 e 1989, um curso intensivo de conhecimento e qualidade. Marco Van Basten e Frank Rijkaard – curiosamente dois nomes que estiveram ligados a candidatos nas eleições do clube verde e branco em 2011 – estavam de saída mas, além de ter sido treinado uns meses por Johan Cruyff, jogou ao lado de toda uma geração que ficaria como uma das melhores depois da Laranja Mecânica: Menzo, Danny Blind, os irmãos De Boer, Winter, Wouters, os irmãos Witschge, Bryan Roy, Wim Jonk, Marciano Vink ou Dennis Bergkamp, avançado que viria mais tarde a tornar-se seu adjunto.
O início como treinador foi modesto, bem mais modesto do que o de jogador. Passou pelo UVS e pelo Argon, de escalões mais baixos, antes de chegar ao Telstar que militava então na 2.ª Divisão. Em 2014, fez um curto interregno na carreira de técnico e foi uma espécie de bombeiro de serviço para o “seu” Cambuur, passando primeiro pelo cargo de diretor desportivo e voltando depois ao banco (pelo meio, esteve no Emmen); dois anos depois, recebe uma chamada telefónica de Van der Sar, que o convida para comandar a equipa B do Ajax. Sucesso imediato, mesmo numa divisão secundária: segundo lugar, média de golos marcados muito elevada e trabalho com nomes que estão agora na formação principal a dar cartas no clube e na seleção como Onana, De Ligt, Frenkie De Jong, Van de Beek ou David Neres (Justin Kluivert, filho do campeão europeu Patrick, brilhou e foi logo vendido à Roma). Em 2017, após a saída de Peter Bosz para o B. Dortmund, subiu ao conjunto A.
Na aposta para a equipa B, Van der Sar falara de alguém “experiente e conhecedor do sistema de formação e transição de atletas”. Quando promoveu o técnico à formação principal, o argumento foi parecido. “Desde o primeiro momento em que tivemos de analisar a contratação de um treinador, Keizer foi a escolha do coração técnico do clube. Conhece os jogadores, a organização e apoia a 100% a nossa filosofia. Além disso, demonstrou na última época [pela equipa B] um estilo de jogo claro e uma excelente performance“, destacou depois de uma temporada em que Bosz tinha levado o Ajax à final da Liga Europa frente ao Manchester United de José Mourinho com sete jogadores abaixo dos 21 anos na meia-final decisiva com o Lyon. A experiência não correu bem e, em dezembro, acabou por rescindir contrato. E numa altura até inesperada do trajeto.
O afastamento precoce das competições europeias acabou por ser um rude golpe para Marcel Keizer na equipa principal do Ajax. Os holandeses começaram por ser eliminados na terceira pré-eliminatória da Liga dos Campeões pelo Nice após dois empates (1-1 e 2-2) e caíram também no playoff de acesso à fase de grupos da Liga Europa com o Rosenborg (0-1 e 2-3). O equilíbrio financeiro foi assegurado até ao final do mercado, com um total de 75 milhões de euros em vendas (com destaque para Davinson Sánchez e Davy Klaassen) para apenas 20 milhões de compras, mas a ferida estava aberta e levou à saída depois da eliminação na Taça da Holanda, nas grandes penalidades, frente ao Twente. Antes, o conjunto de Amesterdão conseguira 16 em 18 pontos possíveis no Campeonato, mostrando uma subida de rendimento que acabou por ser também condicionada por uma guerra surda entre Bergkamp e a dupla Van der Sar e Overmars, que seria de forma indireta fatal para Keizer.
“Os diretores não têm a confiança suficiente que as ambições do Ajax serão alcançadas com eles. Os resultados desportivos que desapontaram também são outra das razões. Com o Dennis Bergkamp, existe também uma diferença de opinião em relação às políticas técnicas que devem ser implementadas. Tivemos um Verão mau e um arranque desastrado de época. A eliminação das provas europeias foi o ponto mais baixo. Eu e o Marc Overmars fomos falando com frequência nos últimos meses a propósito da irregularidade da equipa. Não estamos confiantes que chegariam ao nível que o Ajax deveria atingir neste momento. Lamentamos e agradecemos a todos o esforço que fizeram pelo clube”, justificou Van der Sar após a rescisão.
Em abril deste ano, o holandês foi apontado ao comando do Glasgow Rangers, os inevitáveis títulos de jornais com “Keizer Chief” ainda chegaram a ser feitos perante a mais do que esperada saída de Graeme Murty mas os escoceses preferiram uma solução provisória para apresentarem no Verão a antiga glória do Liverpool, Steven Gerrard. No Verão, assinou pelo Al Jazira, somando seis vitórias, cinco empates e uma derrota em 12 jogos (quatro triunfos e outras tantas igualdades na Liga, que valem a terceira posição Sharjah e Al-Ain). Agora, desvinculou-se e terá uma nova experiência em Portugal. Logo ele que, até há menos de seis meses, nunca tinha treinado qualquer equipa que não fosse do seu país.
Descrito como um treinador calmo e honesto, Keizer mantém relações abertas com os jogadores e é um metódico do treino – onde os ex-jogadores que passaram pelo seu comando dizem nunca ter ouvido um grito para se impor –, atento a todos os detalhes e privilegiando o contacto com bola como característica que se prolonga depois ao jogo. Por influência de Cruyff ou da escola Barça, gosta de ter uma equipa a trabalhar a posse em termos ofensivos de forma inteligente mas que sobe a pressão e intensidade na perda. Em termos táticos, costuma jogar em 4x3x3 – a não ser que não tenha jogadores para isso.
Unidade de Performance Sporting, o plano de Frederico Varandas para voltar a inovar na Academia
Ainda antes de José Peseiro ser dispensado, na última quinta-feira, Marcel Keizer já era alguém conhecido de Frederico Varandas. O presidente do Sporting afirmou antes da partida para os Açores que o único treinador que tinha de facto contactado era Leonardo Jardim, sem sucesso. E que, dos “15 nomes falados” até sábado de manhã, nenhum estava certo. Enquanto iam saindo os tais nomes de treinadores – e alguns, mesmo que por intermediários, foram mesmo sondados dizendo que estavam a trabalhar com os leões –, o líder verde e branco estava a fechar a contratação do holandês, acordada na passada sexta-feira em Amesterdão. João Pedro Araújo, que vai liderar a Unidade de Performance do Sporting na qual Varandas coloca a grande aposta para a reabilitação de todo o futebol da formação aos seniores, já tinha referências positivas por trabalhar com o treinador de 49 anos no Al Jazira, mas pessoas próximas do presidente leonino e de Hugo Viana foram alimentado essa ideia, vista como um “todo” em termos de estrutura e não como uma mera solução para o comando técnico.
É também por aqui que se explica, em termos teóricos, a opção do Sporting em Marcel Keizer. Mais do que um elemento para o banco de suplentes, o primeiro holandês a orientar os leões é alguém escolhido pelo perfil que se enquadra com uma nova era que está a tentar ser implementada, reforçando a aposta no desenvolvimento dos jogadores mais jovens dentro de um modelo de jogo comum a todas as equipas da Academia. Foi nessa perspetiva que o antigo técnico do Ajax foi pensado, é nessa perspetiva que o antigo técnico do Ajax será colocado. Mas haverá sempre uma outra perspetiva que não será descurada, como se percebeu pelas reações dos adeptos verde e brancos nas últimas semanas: os resultados. E se é certo que, fora de campo, existe uma ideia a apontar para o médio/longo prazo, dentro das quatro linhas o tempo para haver mudanças é bem mais curto.