Começa com um veterano e importantíssimo contrabaixista de 72 anos e termina com as composições do grande contrabaixista, pianista e compositor do século XX Charles Mingus Jr. (já falecido), tocadas por uma big band de homenagem liderada pela viúva do músico, Sue Mingus. Pelo meio, contudo, o Guimarães Jazz apresenta também as novas tendências que na América do Norte e Europa (incluindo em Portugal) vão fazendo o jazz avançar. Passado e futuro: eis um slogan pouco imaginativo mas adequado para descrever a 27.ª edição do Guimarães Jazz, que este ano decorre durante dez dias, de 8 a 17 de novembro, como habitual no Centro Cultural Vila Flor (CCVF).
Um dos mais reputados entre os festivais portugueses dedicados a este género musical, o Guimarães Jazz propõe para os próximos dias dez noites de concerto, sendo que no sábado, dia 10, domingo, dia 11 e sábado, dia 17, também há concertos durante a tarde. Ao todo, estão agendados 13 espetáculos, incluindo atuações resultantes de residências e colaborações de músicos internacionais com intérpretes nacionais e instituições da região (nomeadamente a Big Band e a Ensemble de Cordas da ESMAE — Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, a associação portuense Porta-Jazz e a Orquestra de Guimarães). Estes são, para o Observador, os sete concertos a não perder.
AZVIZA (Dave Holland, Chris Potter, Kevin Eubanks e Eric Harland)
Quinta-feira, 8/11, 21h30 || Grande Auditório CCVF
Não se pode falar da história do jazz europeu — aliás, da história do jazz das últimas décadas, ponto — sem se mencionar o veterano contrabaixista britânico Dave Holland. Atualmente com 72 anos, Holland construiu uma carreira de grande nível na reputada editora de jazz ECM. Só como líder das mais diferentes formações gravou perto de vinte discos, tendo ainda tocado em estúdio e em alguns casos em palco com músicos do calibre de Sam Rivers, Pat Meheny, Joe Lovano, Herbie Hancock, Bill Frisell, Chick Corea, John McLaughlin, Evan Parker e Anthony Braxton.
Tudo começou quando Miles Davis o ouviu, numa noite de 1968 no grande clube de jazz e blues Ronnie Scott, em Londres (na verdade, começou antes, quando Holland abandonou a escola com 15 anos e foi estudar para Londres, entrando no circuito de clubes de jazz londrinos; mas foi quando Miles Davis o acolheu que ganhou proeminência e notoriedade internacional). Holland estava, nessa noite a tocar num combo que abria para o trio de Bill Evans, Miles estava a ver o concerto, com o baterista Philly Joe Jones. Quando ouviu Holland, o grande trompetista norte-americano ficou encantado, incorporou-o na sua banda, tocou com o britânico e gravou com ele alguns dos seus grandes discos, como Filles de Kilimanjaro, In a Silent Way e Bitches Brew. Grande nome com honras de abertura do festival, Dave Holland apresentar-se-á em Guimarães com o seu mais recente quarteto, com uma pequena alteração: ao saxofonista Chris Potter e ao baterista Eric Harland, junta-se o guitarrista Kevin Eubanks, um colaborador antigo de Holland, que substitui em Portugal o guitarrista e vocalista Lionel Loueke.
Marquis Hill
Sexta-feira, 9/11, 21h30 || Grande Auditório CCVF
Apesar de outrora ser sobretudo conhecida por ser a capital do blues, hoje muito menos popular e ouvido do que nos tempos áureos de Bo Diddley, Sonny Boy Williamson, Buddy Guy ou Muddy Waters, Chicago foi sempre uma cidade com uma paleta de sons tão ampla e rica que excedeu em muito esse género musical. Basta dizer que gente tão diferente e tão talentosa quanto Curtis Mayfield, Miles Davis, Kanye West e os membros das bandas Wilco e The Sea and Cake tiveram ali origem, ou que músicos como Jeff Parker (dos Tortoise) e mais recentemente Ryley Walker têm-se especializado em tentar esbater fronteiras e muros entre as diferentes “cenas musicais” da cidade.
No jazz, atualmente, ouve-se de tudo um pouco na capital de Illinois, do cânone, aqui e ali a piscar o olho ao blues, ao free jazz mais arrojado e desafiante. O trompetista Marquis Hill, de 31 anos, fica a meio caminho: é tanto um bom produto da tradição do jazz norte-americano (ouvem-se, nele, as influências do trompetista Donald Byrd e de um jazz tão fluído quanto elegante) como um renovador da tradição com visão própria. O segundo volume de Modern Flows (o primeiro foi um EP, lançado em 2014), com data de edição prevista exatamente para o dia do concerto em Guimarães, motiva a digressão que traz Marquis Hill à Europa, depois de um conjunto de concertos nos Estados Unidos da América e Canadá em setembro e outubro. A acompanhá-lo estarão o saxofonista Logan Richardson, o vibrafonista Joel Ross, o contrabaixista Jeremiah Hunt e o baterista Jonathan Pinson.
Steven Bernstein’s Millennial Territory Orchestra c/ Catherine Russell
Sábado, 10/11, 21h30 || Grande Auditório, CCVF
De Chicago rumo a Nova Iorque em apenas 24 horas. Músico incansável movido pelo desassossego, que já tocou em formações muito diferentes ao longo da vida (tendo trabalhado, por exemplo, com o canónico e lendário Sam Rivers, mas também com o vanguardista John Zorn), Steven Bernstein encontrou nas “big bands” a sua zona de (des)conforto. Talvez a inspiração tenha vindo da influência e modo de pensar o jazz de alguns dos seus mestres, mentores e amigos, como Phil Hardymon (diretor da banda da Berkeley School), Peter Apfelbaum (do ensemble Hieroglyphics) e Jimmie Maxwell (que tocou na Benny Goodman Orchestra).
Na orquestra que ele próprio veio a fundar, a Millennial Territory Orchestra, “mistura” é palavra chave. É-o porque é grande a abrangência de estilos musical que a sua orquestra revisita — tocam de Leonard Cohen a Ornette Coleman, de Prince a Grateful Dead, de Stevie Wonder a Sly & the Family Stone (a quem já dedicaram um disco de versões) e de The Band a Count Basie. “Não se trata sequer de ser eclético, é apenas música. ‘Bora tocá-la. Está aqui uma lista de músicas, vamos tocá-las”, explica ele, no seu site oficial. Será, por certo, uma noite agradável, cheia de jazz, soul, blues e gospel e com a participação da cantora Catherine Russell. Uma última curiosidade: Steven Bernstein tocou no último disco de Nels Cline, Lovers, que o guitarrista dos Wilco apresentou na abertura deste mesmo festival no ano passado.
João Barradas c/ Greg Osby
Terça-feira, 13/11, 21h30 || Pequeno Auditório, CCVF
É um acontecimento mais importante do que aquilo que o palco (pequeno auditório do CCVF) ou o reconhecimento do público poderá indicar. João Barradas, grande jovem talento português na utilização do acordeão para jazz, músico para quem o mercado nacional deste estilo musical já se revelou curto (tem uma carreira internacional bastante sólida e anda em constantes digressões pelo mundo), antecipará em Guimarães o seu próximo álbum, Own Thoughts From Abroad.
Já pensado mas ainda por gravar, o próximo disco de Barradas sucederá a dois álbuns irrepreensíveis que editou em 2017, Directions e An End as a New Beginning, este último composto com o grupo Home, de que faz parte. As expectativas para o novo disco são grandes, ainda para mais quando Barradas voltará a gravar com o grande saxofonista norte-americano de 58 anos Greg Osby, mestre na recriação livre e exploratória de funk e jazz, com uma carreira de mais de três décadas e 15 discos editados na Blue Note Records. Trocando por palavras mais simples: depois de ter tido a oportunidade de gravar com um dos músicos mais importantes do jazz norte-americano das últimas três décadas, Barradas dará um concerto com ele em Portugal. O espetáculo torna-se, assim, ainda mais imperdível.
Dave Douglas UPLIFT c/ Jon Irabagon, Mary Halvorson, Rafiq Bhatia, Bill Laswell & Ches Smith
Quinta-feira, 15/11, 21h30 || Grande Auditório, CCVF
A última vez que esteve em Portugal, o trompetista e compositor norte-americano Dave Douglas, assumidamente um dos três cabeças de cartaz deste festival, a par de Dave Holland e Steven Bernstein, veio tocar ao festival de verão Jazz em Agosto, que este ano dedicou toda uma edição à música de John Zorn. Dave Douglas, contudo, foi muito mais do que um dos membros de Masada, quarteto que Zorn também integra. O trompetista que nasceu em Nova Jérsia mas cedo rumou a Nova Iorque (ainda universitário), tem uma longa carreira de mais de duas décadas. Este ano assinalam-se, aliás, 25 anos de edição do seu primeiro álbum, Parallel Words.
Com um belíssimo disco editado este ano com o saxofonista Joe Lovano (intitulado Scandal), Douglas, que soube incorporar com bom gosto no seu jazz influências da música clássica, da música eletrónica e da liberdade da improvisação, mostrar-se-á em Guimarães com a formação UPLIFT, com quem gravou um disco vincadamente político, com “12 peças para ação positiva em 2018”, que colocam a música ao serviço de uma agenda “de defesa dos direitos de voto, igualdade racial, direitos da mulher, direitos da comunidade LGBTQ, acolhimento de imigrantes, igualdade salarial, diplomacia, ciência e educação, humanidades e cultura, leis sensíveis para as armas, amor pelo nosso ambiente e pela nossa cultura, amor uns pelos outros e paz”. Em UPLIFT, Douglas junta-se a alguns dos músicos com mais técnica e imaginação do jazz nova-iorquino dos últimos anos. Registam-se, contudo, algumas trocas face à gravação do disco: Jon Irabagon substitui Jove Lovano nos saxofones, Rafiq Bhatia faz a vez do guitarrista Julian Lage e Ches Smith substitui o baterista Iang Chang, no concerto de Guimarães. Mantêm-se, além de Douglas, Mary Halvorson na guitarra e Bill Laswell no baixo.
Avishai Cohen Quartet
Sexta-feira, 16 de novembro, 21h30 || Grande Auditório, CCVF
O nome do músico que liderará um quarteto nesta noite de sexta-feira, 16 de novembro, no Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor, poderá originar alguns enganos. Não se trata do popular contrabaixista israelita que faz do jazz uma linguagem melódica, suave e simples, mas de um trompetista também ele israelita, que emigrou para os Estados Unidos da América nos seus tempos de estudante e vive hoje em Nova Iorque.
Em plena fase de afirmação internacional, Avishai Cohen gravou recentemente dois imponentes discos para a reputada editora ECM Records, Into the Silence (2016) e Cross My Palm With Silver (2017). Tocando jazz ora agitado ora contemplativo, Avishai Cohen apresenta-se em Guimarães com o seu quarteto (uma formação clássica que inclui bateria, piano e contrabaixo), que estabelece em palco um diálogo musical de pleno respeito. O trompete do israelita, contudo, impõe-se, ergue-se como o pináculo do som da banda e mostra-se por si só capaz de elevar o grupo a patamares altíssimos. Basta ver a interpretação de “Into the Silence” no clube gerido pela Blue Note Records em Milão para o perceber.
The Mingus Big Band
Sábado, 17 de novembro, 21h30 || Grande Auditório CCVF
Foram bem escolhidos, os concertos de abertura e encerramento do Guimarães Jazz. Depois do veterano Dave Holland (compositor e sideman de enormes pergaminhos) dar o tiro de partida do festival vimaranense, o encerramento cabe à big band “oficial” de homenagem a uma das maiores lendas do jazz: o contrabaixista e compositor Charles Mingus.
A big band é liderada por Sue Mingus, viúva do músico que nasceu em 1922 e morreu em 1979, que colaborou com Louis Armstrong, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Eric Dolphy e Herbie Hancock e que foi o autor de algumas das mais importantes composições do jazz norte-americano. São essas composições que se ouvirão na última noite do festival, o que indicia que o Guimarães Jazz está tão atento às novas tendências do jazz (internacional mas também nacional, como prova a presença de João Barradas no cartaz) quanto ao seu passado e história.