Não era a primeira. Era a única, nunca tinha havido nenhuma assim. Era a Grande Guerra Mundial. A 28 de junho de 1914, um jovem “anarquista radical” sérvio, a mando da Mão Negra da Sérvia, alvejou o arquiduque austríaco Francisco Fernando. Com esse tiro disparou também a Guerra das Guerras. Quatro anos mais tarde, às cinco da manhã de 11 de novembro, um armistício assinado entre os Aliados e a Alemanha punha termo a ela: “Uma nação de 70 milhões sofre, mas não morre”, disse Matthias Erzberger, representante do governo do Reich. A guerra acabava no papel, não nos campos de guerra.
Só às onze da manhã do dia 11 do mês 11 é que o cessar-fogo foi oficializado. Nas trincheiras, ao longo dessas seis horas, quase 2.800 soldados ainda haviam de morrer inutilmente em batalha. Ao longo do dia inteiro, as baixas, entre mortos e feridos, eram 10.944, contabiliza o historiador Joseph E. Persico. O último deles a sucumbir, reza a lenda, morreu no último minuto do conflito. Foi Henry Gunther. Tinha 23 anos.
Henry Gunther era um soldado norte-americano a combater em França. Era desobediente por natureza. E foi desobediente por duas vezes enquanto combateu na I Guerra Mundial, que terminou faz este domingo cem anos. A primeira foi quando enviou uma carta para os amigos com descrições, proibidas, das más condições em que as tropas viviam nas trincheiras. Aconselhava aos amigos a que não se alistassem no exército. Mas a carta foi intercetada e a desobediência custou-lhe uma despromoção de sargento para soldado.
A segunda vez foi quando ignorou ordens superiores e atacou uma trincheira inimiga com o objetivo de a conquistar. Queria recuperar o respeito que tinha perdido com o episódio da carta, talvez voltar ao posto de sargento. E queria garantir que não lhe chamavam de traidor quando voltasse a casa. À medida que avançava para campo inimigo, os alemães disparavam por cima da cabeça de Henry Gunther. Sabiam que a guerra estava prestes a acabar e só o queriam assustar. Uma das balas, no entanto, acertou-lhe mesmo. E, desta vez, a desobediência custar-lhe-ia a vida.
Eram 10h59 quando Henry Gunther morreu. Segundo os relatos do padre que acompanhava aquele regimento, “os alemães que tinham acabado de matar Gunther colocaram-no numa maca e levaram-no para o lado americano. O companheiros enterraram-no lá”.
Um minuto depois, Ferdinand Foch, Comandante-Chefe das forças aliadas na frente oeste durante a I Guerra Mundial, anunciava o cessar fogo: “Cessar as hostilidades em toda a frente a 11 de novembro às 11 da manhã, horas francesas”, anunciava a mensagem por telegrama enviada por ele. Era tarde demais para Henry Gunther.
Também era tarde demais para George Lawrence Price, a última vítima do Canadá, que tinha morrido dois minutos antes do cessar-fogo. Augustin Trébuchon, último morto francês, sucumbiu 10 minutos antes. George Edwin Ellison, a última baixa inglesa, morreu 90 minutos antes. E também era tarde demais para as 31 milhões de pessoas que morreram durante a I Guerra Mundial ao longo daqueles quatro anos.
His name was Henry Gunther. He was an American solider, and the last man killed in World War I. #Origins pic.twitter.com/eMV4zmX1Cx
— National Geographic TV (@NatGeoTV) April 7, 2017
Quem era Henry Nicholas Gunther
Quando os Estados Unidos entraram na guerra, Henry Nicholas John Gunther era um jovem de estatura média prestes a completar 22 anos, com cabelo escuro e olhos cinzentos. Henry era o mais velho dos dois filhos de George e Lina Gunther, um casal de imigrantes alemães. Os quatro viviam juntos na 3011 Eastern Avenue, no bairro de Highlandtown, que fica na zona leste de Baltimore. A casa era pequena, tinha dois andares e ficava mesmo em frente ao Patterson Park, que tinha sido construído em 1910.
No dia em que foi chamado para Guerra, Henry trabalhava como contador na sucursal do Banco Nacional em Baltimore e tinha uma namorada chamada Olga Gruebl. De Camp George G. Meade partiu para França a bordo do SS Leviathan — um transatlântico alemão confiscado pelo governo norte-americano — a 8 de julho de 1918. Integrou o Exército dos Estados Unidos como sargento de suprimentos na Companhia A, 313º Regimento de Infantaria, 79ª Divisão das Forças Expedicionárias Americanas.
Nas trincheiras, Henry Gunther não era apenas desobediente: era “miserável”, descreveu o sargento Ernest Powell, à época soldado também. Vivia atormentado por saber que a família estava a sofrer nos Estados Unidos por ser de origem alemã. E temia ficar para a História como um traidor alemão dentro do exército norte-americano. Deve ter sido por isso que desafiou os alemães 60 segundos antes de a guerra terminar.
James M. Cain, à época jornalista do The Sun, explicou porquê numa reportagem em França: “Gunther deve ter sido incitado pelo desejo de demonstrar, mesmo no último minuto, que ele era corajoso e completamente americano. Quando os alemães o viram eles acenaram para ele e gritaram, no melhor inglês que podiam, para voltar, que a guerra havia acabado. Ele não prestou atenção, no entanto, e continuou a disparar um ou dois tiros. Depois de vários esforços vãos para fazê-lo voltar, os alemães viraram a metralhadora para ele”.
O enviado da Igreja Católica para a trincheira onde Henry combatia acrescentou que “Gunther e o seu pelotão souberam às 10h30 que a guerra terminaria às 11h. Eles estavam perto de uma aldeia chamada Ville-devant-Chaumont, ao norte de Verdun, protegida por um pelotão alemão. Quando as 11 da manhã se aproximaram, Gunther levantou-se subitamente com a espingarda e começou a correr pela névoa espessa. Os seus homens gritaram para ele parar. O mesmo fizeram os alemães. Mas Gunther continuou a correr e a disparar”, relatou o padre.
Joseph E. Persico, redator de discursos de Nelson Rockefeller e autor da obra “Eleventh Month, Eleventh Day, Eleventh Hour”, disse que o avanço do pelotão Henry Gunther — e de outros como esse — não aconteceram por falta de comunicação. O armistício foi assinado na carruagem ferroviária em Compiègne, mas os comandantes foram avisados que o conflito estava prestes a terminar e que o cessar fogo chegaria pouco depois por telegrama.
As mortes ao longo das seis horas que decorreram desde a assinatura do armistício até ao cessar-fogo aconteceram porque os comandantes aliados quiseram continuar as batalhas, defendeu ele. De acordo com o The Baltimore Sun, que analisou a obra do historiador, “eles enviaram ordens nas trincheiras para as tropas avançarem, conquistarem cidades, arrancarem ninhos de metralhadoras alemãs”: “Em alguns casos, as ordens de ataque foram rescindidas e reintegradas uma hora após o término da guerra. Algumas tropas pensaram que os comandantes estavam a fazer piadas de mau gosto com eles, já perto de o relógio marcar as onze”.
O último suspiro da Grande Guerra
A entrada dos Estados Unidos na Grande Guerra foi declarada a 6 de abril de 1917, mas as raízes dessa participação remontam a maio de 1915, quando um submarino alemão afundou o navio britânico RMS Lusitania com 128 norte-americanos a bordo.
O presidente Woodrow Wilson exigiu que a Alemanha deixasse de atacar navios de passageiros e quis estabelecer regras para o conflito na frente marítima, mas sem sucesso: em janeiro de 1917, a Alemanha voltou aos ataques, ignorando o aviso de Woodrow Wilson: “A América fica muito orgulhosa em lutar”. Quando sete navios de mercadoria norte-americanos foram atacados pelos alemães, e depois de a Alemanha ter convidado o México a aliar-se a ela através do Telegrama Zimmerman, o Congresso anunciou a entrada do país na Guerra como “Potência Associada” — não como parte integrante — dos Aliados.
No dia 11 de novembro de 1918, o 313º Regimento de Infantaria — a que Gunther pertencia — recebeu ordens para atacar Metz, uma cidade do nordeste da França. Ao chegar à aldeia Chaumont-devant-Damvillers, o pelotão de quatro homens a que Henry Gunther pertencia — liderada por Powell, o melhor amigo dele — percebeu que os alemães estavam a bloquear a estrada. Os Aliados foram obrigados a recuar e ficaram à espera que os alemães ripostassem, mas isso não aconteceu: já se sabia que o cessar-fogo estava iminente. Ninguém queria disparar.
Só que Henry Gunther queria aproveitar o momento para ficar na história — e entre os vizinhos — como um norte-americano patriótico que tinha lutado pela bandeira até ao último minuto. E queria remediar-se por ter enviado uma carta perjorativa para os Aliados, perdendo o título de sargento. James M. Cain escreveu num artigo com base em entrevistas aos colegas de Henry que ele “pensava muito sobre a redução na classificação e ficou obcecado com a determinação de fazer tudo bem diante dos oficiais e colegas soldados”: “Ele estava preocupado porque achava que era suspeito de ser um simpatizante alemão. O regimento entrou em ação alguns dias depois de ter sido despromovido e, desde o início, demonstrou a disposição mais incomum de se expor a todo tipo de risco”.
Por isso, levantou-se do meio da calmaria e correu em direção aos alemães. Eles dispararam para assustar Henry e persuadi-lo a voltar para trás. Mas não foram capazes. Quando estava a poucos metros dos inimigos, Henry Gunther foi abatido.
Assim que Henry Gunther foi neutralizado, “no momento em que ele caiu, o tiroteio desvaneceu e um terrível silêncio prevaleceu”, diz a descrição do batalhão redigida mais tarde. John J. Pershing, o militar norte-americano que liderou as Forças Expedicionárias Americanas na I Guerra Mundial, declarou que Henry tinha sido o último morto do conflito. Mais tarde, Henry Gunther foi agraciado com a Cruz de Serviço Distinto, segunda maior condecoração militar do Exército dos Estados Unidos, e recuperou o título de sargento. O corpo só voltou a Baltimore em 1923. Foi sepultado no Cemitério do Santíssimo Redentor.