Pode a tecnologia salvar o planeta? A resposta à pergunta é complexa, cheia de ressalvas e senãos. Há uma semana, Pia Heidenmark Cook, diretora de sustentabilidade da Ikea, passou pela Web Summit e tentou responder, tendo como base um programa levado a cabo pela multinacional sueca em dezenas de mercados. Os números, tal como a relação de dependência que hoje mantemos com a marca, falam por si. O Grupo Ingka é, há dez anos, o maior retalhista de mobiliário e decoração do mundo. Presente em mais de 50 países, emprega, só em lojas e centros comerciais, um total de 150.000 trabalhadores. Durante o ano financeiro de 2018, os espaços comerciais do grupo receberam 838 milhões de visitantes.

A Ikea é um gigante e os objetivos que traça em matéria de sustentabilidade parecem estar à altura, sobretudo no que toca às energias renováveis. Depois do investimento de cinco milhões de euros em quatro das cinco lojas portuguesas, com a aquisição de 13.000 painéis solares, a empresa espera, em 2020, ser autossustentável do ponto de vista energético. Desde fevereiro, a Ikea é proprietário de um terreno com 25 turbinas eólicas. No total, a quinta tem capacidade para gerar 156 GWh (gigawatt-hora) por ano, o suficiente para alimentar 30 lojas. O desperdício é outra das frentes. Desde 2017 que a Ikea recebe as peças que os portugueses já não querem em casa para lhes dar uma segunda vida.

Para Pia Heidenmark Cook, que chegou à Ikea em 2008, o papel das empresas é fundamental, embora os governos e cidadãos sejam componentes igualmente importantes na transformação dos hábitos das sociedades desenvolvidas do século XXI. Em 2012, foi lançado o programa People & Planet Positive, com objetivos para 2020, e, em junho deste ano, a segunda edição fixou metas para 2030. Recentemente distinguida pelos Leading Women Awards do World Business Council for Sustainable Development, Heidenmark esteve à frente de ambos. De passagem por Lisboa, a especialista falou com o Observador.

Assumindo que a resposta à pergunta ‘Pode a tecnologia salvar o planeta?’ é sim, será que ela está a ser eficiente nessa missão?
Depende do que entendemos por tecnologia. Tudo é tecnologia. Estamos a assistir um grande progresso em termos de novas soluções técnicas na área da eficiência energética e das energias renováveis — mais inteligentes, mais eficientes e mais exequíveis, o que significa que podem ser produzidas em escala e ser mais acessíveis para as pessoas e para as empresas. Nesse ponto, a tecnologia é progressiva e está a permitir mais e mais soluções técnicas que as pessoas podem usar. Depois, há o lado digital. Aí, acredito que as grandes oportunidades são aquelas que permitem às plataformas conectar as pessoas, pessoas com necessidades idênticas, e isso conduz-nos a uma realidade em que vivemos mais próximos uns dos outros. Nós não somos uma empresa de tecnologia, somos uma empresa de mobiliário, mas diria que a indústria tecnológica nos completa. Isso reflete-se nas nossas próprias operações, na forma como tratamos a nossa equipa, na nossa cadeia de abastecimento e nas soluções que levamos para o mercado.

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Em outubro de 2017, a Ikea abriu uma loja na cidade alemã de Kaarst. O edifício foi desenhado a pensar na autossustentabilidade energética © INA FASSBENDER/AFP/Getty Images

Isso quer dizer que a tecnologia é, de facto, o fator mais decisivo, pelo menos para a Ikea?
Do ponto de vista de sustentabilidade, sim e não. Acho que o desafio que enfrentamos como sociedade e como planeta é, de certa forma, tecnológico. Precisamos de mais soluções, a uma escala maior, mais rápidas e a melhores preços. Mas o maior desafio é ao nível do comportamento das pessoas, dos hábitos, da maneira de fazer as coisas. As plataformas digitais podem ajudar através de uma curadoria, através da gamificação, criando comunidades para que as pessoas ajam sabendo que outras estão a agir da mesma forma. A este nível, não tem a ver com tecnologia, tem a ver com os seres humanos. É preciso entender a tecnologia do ponto de vista humano.

Quando falamos em ‘salvar o planeta’, falamos, necessariamente, em fazer mudanças na forma como vivemos. Essas mudanças começam dentro das grandes empresas ou dentro das nossas casas?
Elas têm de acontecer de todas as formas. A tendência é evoluirmos, à medida que as pessoas ficam mais informadas sobre o que podem fazer. Elas votam com as próprias carteiras, quando escolhem onde compram, de que empresas e marcas compram e que produtos compram. Isso tem impacto. Mas também podemos verificar que as grandes barreiras são as infraestruturas. Se os governos não tomarem medidas em relação à reciclagem e às energias renováveis, o que é que posso fazer enquanto cidadã? É óbvio que nós, empresas, temos responsabilidade sobre os produtos que pomos no mercado. Mas é preciso que alguém lance novas políticas de infraestruturas, tal como é preciso que as empresas e que os cidadãos façam a sua parte. Precisamos dos três. E, para mim, a questão não é salvar o planeta, é salvar a existência humana. O planeta vai colapsar, eventualmente, mas acabará por se regenerar de uma forma ou de outra. Mas, nesse momento, já não estaremos cá e esse é o ponto mais crítico, na minha opinião. Mais do que salvar o urso polar, é salvar a humanidade.

Como é que se combina essa consciência com os interesses da empresa? Apesar de haver um programa de sustentabilidade, a Ikea tem de continuar a vender móveis, certo?
Somos uma empresa de mobiliário. Nós desenhamos móveis, produzimos móveis e vendemos móveis. Agora, estamos a olhar para a forma como os vendemos e como os produzimos. Utilizamos muita madeira, mas esperamos que, em 2020, toda a madeira que utilizamos tenha o selo da Forest Stewardship Council, uma das maiores organizações para a preservação das florestas, ou seja reciclada. Todo o algodão que usamos nos nossos produtos já é 100% sustentável. Portanto, tem a ver com como extraímos, de onde extraímos e como usamos os materiais. E aí é que o processo se pode tornar menos sustentável. Estamos a substituir toda a nossa energia por energia renovável, já vamos nos 73%. Diria que o facto de termos lucro e sermos um bom negócio também possibilita que invistamos em energias renováveis e na sustentabilidade. E se analisarmos a palavra sustentabilidade, vemos que ela abarca aspetos sociais, económicos e ambientais. Logo, se não pensarmos também na economia, nada acontece. É preciso encontrar uma forma de ter as três a funcionar. Onde é que as empresas estão a gastar os seus lucros? Que decisões estão a tomar? Esse é o principal ponto, não é assumir simplesmente que grandes empresas como a Ikea ou a Microsoft têm de fechar. Decididamente, íamos reduzir imenso o impacto, mas alguém teria de vir a seguir para satisfazer essas necessidades, porque é o que estas empresas fazem, elas existem para satisfazer as necessidades das pessoas. E é muito melhor que o façam de uma forma não responsável, até porque essa consciência já existe e, mais uma vez, estamos aqui satisfazer necessidades.

O planeta vai colapsar, eventualmente, mas acabará por se regenerar de uma forma ou de outra. Mas, nesse momento, já não estaremos cá e esse é o ponto mais crítico, na minha opinião. Mais do que salvar o urso polar, é salvar a humanidade.”

É por isso que a vossa estratégia também tem passado por reeducar, de certo modo, a forma como as pessoas vivem?
Sim, a nossa estratégia tem três pilares. Primeiro, como é que podemos ser capazes de inspirar as pessoas a mudar e a adotar um estilo de vida mais sustentável dentro de casa. O segundo diz respeito às nossas próprias operações, promovendo um esquema circular na nossa cadeia de valor. O terceiro é desempenharmos um papel mais inclusivo e decisivo, não só na nossa própria cadeia de abastecimento, mas também junto das comunidades que queremos alcançar. Diria que ‘reeducar’ é uma palavra complicada. Não queremos dizer às pessoas o que têm de fazer, queremos inspirá-las a fazer as coisas de uma determinada forma porque é melhor para elas, fazê-las perceber o que é melhor para o planeta e para a humanidade. No fundo, é o marketing de um novo estilo de vida que é melhor do que o anterior.

A primeira loja Ikea em território chinês abriu em 1998. Hoje, são 26. A China é um dos dez países do mundo onde a multinacional sueca produz, Portugal está incluído © GOH CHAI HIN/AFP/Getty Images

E como é que uma multinacional como a Ikea aplica essa mesma estratégia em todo o mundo, com países e níveis de desenvolvimento tão diferentes?
Temos a mesma estratégia para todos os mercados. Não vamos usar energias renováveis no Norte da Europa para depois usarmos carvão na China. Independentemente de onde estivermos, temos de transitar para as energias renováveis. O processo só é mais rápido em alguns mercados e mais lento noutros. Não estamos a ditar soluções, por isso mesmo é que optaremos pela energia solar em alguns mercados, pela energia eólica noutros, por bombas de calor ainda noutros. É uma questão de perceber o que é diferente e o que é igual em cada um dos mercados. Trabalhamos sempre todos com os mesmos objetivos, mas há soluções diferentes que adaptamos aos vários países. Por exemplo, na Escandinávia, separamos 90% do lixo, enquanto outros mercados, de países desenvolvidos até, ficam pelos 30% [em Portugal, mas passa dos 20%]. Isso tem a ver também com o trabalho que é feito junto dos municípios e dos legisladores para dar esse salto, para dizer que queremos realmente separar mais o lixo. Não vamos deixar de o fazer só porque naquele país ninguém o faz. Não, queremos perceber o que é solucionável e como é que podemos começar uma mudança. Temos equipas de sustentabilidade em todos os mercados.

Não queremos dizer às pessoas o que têm de fazer, queremos inspirá-las a fazer as coisas de uma determinada forma porque é melhor para elas, fazê-las perceber o que é melhor para o planeta e para a humanidade. No fundo, é o marketing de um novo estilo de vida que é melhor do que o anterior.”

Enquanto consumidora, vê muitas vezes a sustentabilidade a ser usada como ferramenta de marketing e menos como uma estratégia efetiva? Como é que as pessoas podem distinguir as duas situações?
Para o consumidor é difícil perceber a diferença. Diria que os selos ecológicos são um bom indicador, já que não estão ligados a nenhuma marca em particular, são neutros. Se Organizações Não Governamentais, como a WWF [The World Wide Fund for Nature] e a Greenpeace, apoiam a marca, é de confiar, porque elas não o fazem em vão. Se quiser muito comprar uma bicicleta nova e começar a fazer alguma pesquisa, não apenas de preço ou do estilo que quer, vai ser fácil perceber quais as marcas que realmente estão a fazer as coisas de forma diferente. Quando aprofundamos a pesquisa percebemos se é só fachada ou não. Um bom indicador é sempre perguntar há quanto tempo o fazem. Começaram agora porque os consumidores pareceram subitamente interessados ou já o fazem há muito tempo? Estão só a fazer aquilo que desperta o interesse das pessoas ou estão mesmo a encarar realisticamente tudo o que fazem? Há formas de perceber, mas não é fácil. Continuo a achar que, se alguma coisa estiver a ser feita, mesmo que não seja pela melhor empresa do mundo, é sempre melhor do que optar por uma marca ou empresa que não está a fazer nada de positivo. É apostar e esperar que seja uma das boas. Mas sim, a informação dada aos consumidores é, muitas vezes, falível. Sabemos que a confiança em empresas e governos está em baixo, mas é uma questão de fortalecermos essas relações de confiança, cruzando a informação com as opiniões de amigos e de pessoas com quem estamos em rede.

Essa consciencialização não poderá passar por encorajar os consumidores a comprar menos? Estará uma grande empresa como a Ikea pronta para passar essa mensagem?
Nós estamos prontos para dizer ‘comprem menos’, mas acredito que ‘comprem conscientemente’, ‘compreendam o que estão a comprar e o impacto que tem’, ‘cuidem do que têm’ e ‘garantam que o que têm vai ter uma segunda vida’ é o que realmente estamos prontos a dizer.