Não é por superstição. É por tradição que uma embalagem de amendoins descascados e sem sal passa por todas as mesas do Laboratório de Propulsão a Jato em Pasadena, estado norte-americano de Califórnia, nos dias mais importantes para as missões espaciais da NASA.
Resultou há 54 anos quando alguém obrigou todos os engenheiros a comer amendoins antes do lançamento da sonda Ranger 7 para a Lua, depois das outras seis sondas terem falhado à missão de fotografar a superfície lunar. E resultou esta segunda-feira quando, às 19h54 de Portugal Continental, a missão InSight chegou sã e salva a Marte para se tornar no primeiro módulo a estudar as profundidades de outro planeta além do nosso.
No momento em que a voz metalizada invadiu a sala de controlo do Laboratório de Propulsão a Jato — “30 metros. 20 metros. 17 metros. À espera da aterragem. Aterragem confirmada!” — os engenheiros tinham bons motivos para celebrar. Fazer com que o módulo InSight aterrasse em Elysium Planitia, a segunda região vulcânica mais extensa de Marte a seguir a Tharsis Montes, exige o mesmo nível de precisão que acertar com uma bola de basquetebol a uma velocidade de 61 centímetros por segundo a partir de Lisboa num cesto em Ancara, na Turquia.
Acontece que a agência espacial norte-americana é uma grande basquetebolista: a fotografia enviada pelo módulo InSight apenas cinco minutos depois de ter chegado à superfície prova que a aposta no “maior parque de estacionamento de Marte” foi certeira. E foi-o contra todas as probabilidades: apenas 40% de todas as missões algumas vez enviadas a Marte chegaram ao planeta com sucesso. E o único país a conseguir tal feito até agora foi os Estados Unidos da América. No entanto, toda a glória exige suor. E a equipa por detrás da missão InSight teve de sofrer durante “sete minutos de terror”. Mas com tempo para retomar o fôlego: afinal, o terror só durou seis minutos e meio.
[Veja no vídeo “Porque é tão extraordinária a chegada da InSight a Marte]
Os “sete minutos de terror” (que foram só seis e meio)
Havia motivos para estar nervoso: tudo o que aqueles engenheiros tinham construído nos últimos 10 anos e ser posto à prova em pouco menos de 420 segundos num plano com milhares de passos. Primeiro, a uma altitude de 1.025 quilómetros e a 5 mil quilómetros por hora, o estágio de cruzeiro — que garante energia e comunicações à aeronave para viajar entre a Terra e Marte — separou-se do veículo de entrada por já não ser precisa. A partir daí, o InSight só dependia dos escudos que o protegiam no intenso caminho até Marte. Estávamos a sete minutos da superfície marciana. Já nada estava nas mãos dos engenheiros em Terra: tudo passou a depender da programação do InSight; e da hospitalidade marciana, tão difícil de conquistar.
A cinco minutos da aterragem, a uma altitude de 45,2 quilómetros e a uma velocidade de 17,3 mil quilómetros por hora, a sobrevivência do InSight estava nas mãos do escudo térmico, que protegia o módulo da fricção causada pela atmosfera marciana. Enquanto o escudo atingiu os 1.500ºC, o módulo da NASA raramente ultrapassou os 21ºC. Dois minutos mais tarde, a três minutos de aterrar, a velocidade do InSight diminuiu para os 6,1 mil quilómetros por hora. Tudo graças aos pára-quedas com 11,8 metros de diâmetro, que baixaram a velocidade da máquina para 7% da original.
A dois minutos e 37 segundos de chegar ao chão, o módulo esticou as pernas. Depois de ejetar o escudo térmico, que já tinha cumprido a missão de proteger a máquina do calor abrasador da fricção atmosférica, o veículo de entrada soltou as pernas com que o InSight viria a pousar no terreno poeirento da Elysium Planitia. Entretanto, e como esperado, os radares ativaram para que, em vez de depender das estrelas para saber onde está, o módulo fosse capaz de se orientar em relação à superfície marciana. A 42 segundos de chegar ao chão, o módulo entrou em queda livre e ficou completamente entregue a ele mesmo.
Correu tudo bem: o InSight sobreviveu bem sozinho. E a NASA acertou no cesto. Sabemos disso porque, à boleia da missão InSight, a NASA enviou duas pequenas sondas chamadas MarCO que acompanharam todo o percurso de 400 milhões de quilómetros entre a Terra e Marte. Quando o módulo aterrou em Marte, ele enviou um sinal para os MarCO, que depois retransmitiram esse sinal para a Terra de modo a provar que o InSight estava são e salvo. O sucesso da missão InSight não dependia do sucesso dos MarCO, mas acrescenta mais uma vitória a esta epopeia: estava estreada “uma nova forma de comunicação” interplanetária.
Recorde todos esses momentos aqui.
Marte pode estar “um bocadinho vivo”
É preciso esperar até março do próximo ano para a missão InSight começar a dar frutos num mundo a 146 milhões de quilómetros da Terra. A partir do momento em que o módulo pousou na superfície marciana é tudo uma questão de paciência: o InSight vai ter de esperar que toda a poeira levantada durante a chegada a Marte assente para soltar os dois painéis solares — não vão os teimosos grãos marcianos comprometer os 700 watts que cada um deles consegue gerar num dia de céu limpo, o suficiente para por a funcionar um liquidificador. E só em março é que nos vai pode dizer mais sobre o que realmente o levou até ali: as profundidades do Planeta Vermelho.
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A Bit2Geek, que pode explorar neste site, é uma equipa de cientistas e investigadores de todo o mundo que se dedica à divulgação científica na área do espaço. Nuno Chabert Duarte, administrador e fundador da página, explicou ao Observador o propósito da Bit2Geek: “Entre 2020 e 2030 vamos viver um momento de viragem para a exploração espacial. Nós queremos assumir-nos como um site de autoridade na divulgação de matéria sobre ela”.
Jorge Pla-García, investigador do Centro de Astrobiologia de Madrid (afiliado à NASA) e membro da equipa Bit2Geek, explicou ao Observador que “o objetivo principal é entender as profundidades do planeta”: “Embora tenhamos alguma informação sobre Marte, ela não nos diz nada sobre o interior do planeta. O que gostávamos de saber é quão vivo está o planeta em termos geológicos. Queremos saber se o núcleo está ativo, qual é a composição do manto, a composição da crosta, o tamanho de todas as camadas que compõem o interior do planeta”, resume o cientista.
Para tal, a agência espacial norte-americana encheu a missão InSight de primeiras vezes logo a partir do momento do lançamento. A 5 de maio de 2018, quando o módulo foi para o espaço e começou a épica viagem até Marte, a missão InSight tornou-se na primeira a sair da Terra a partir de um lançamento feito da costa oeste dos Estados Unidos da América. E agora que está no planeta aqui do lado, o módulo InSight promete escrever novos capítulos na exploração marciana: vai ser a primeira missão a estudar as profundezas do planeta, instalar sismógrafos noutro planeta além da Terra, usar um braço robótico pela primeira vez noutro mundo para distribuir instrumentos, perfurar a superfície marciana a uma profundidade 15 vezes mais do que alguma vez foi feito e montar um magnetómetro em Marte.
https://www.facebook.com/bit2geek/posts/1026277527576147
A estrela da missão é o sismógrafo, explica Jorge Pla-García: “Ele é extremamente sensível e é capaz de detetar a queda de um pequeno meteorito a vários quilómetros dele. O principal objetivo desse sismógrafo é estudar os tremores de Marte. Este é um nome muito engraçado porque nós estamos a tentar estudar os terramotos de Marte porque aprender mais sobre os martemotos, essas vibrações ao longo do planeta, é importante para compreender a composição do interior e o nível de atividade do planeta. Porque nós não sabemos se Marte é um planeta completamente morto como alguns cientistas acham ou se está um bocadinho vivo”, disse o investigador, através do Bit2Geek, ao Observador.
Desenvolver este tipo de tarefas é o mesmo que “fazer uma ecografia ao coração de Marte”, descreveu Joana Neto Lima, astrobióloga no Centro de Astrobiologia de Madrid que, tal como Jorge Pla-García, está diretamente envolvida na missão InSight: “O sismógrafo vai fazer uma ecografia ao coração de Marte para saber o estado do núcleo do planeta. Isso é importante para perceber porque é que a atmosfera marciana é com é e porque é que o campo magnético de Marte é praticamente inexistente. É como tirar um instantâneo ao planeta como um todo”, explica Joana, também ela membro da equipa Bit2Geek.
E porque é que isso interessa? Porque diz muito sobre o nosso passado, o nosso presente e sobre o nosso futuro: “Quanto mais sabemos sobre os planetas, sobretudo sobre os planetas rochosos, mais saberemos sobre o nosso próprio planeta. Há muitos mistérios sobre a Terra e a única forma de descobrir ou responder a estas questões é estudando os outros planetas. Sabemos que os planetas rochosos se formaram ao mesmo tempo, mas que a evolução foi extremamente diferente. Isto é, a evolução de Vénus, Terra e Marte foi extremamente díspar. E nós queremos entender porquê. Ao estudar Marte vamos aprender imenso sobre o nosso próprio planeta e sobre a formação do nosso próprio Sistema Solar”, explica Jorge Pla-García.
Joana Neto Lima compara o contexto da Terra no espaço ao de “uma tigela de água quente no meio de um lago gelado”: “A Terra está a arrefecer. Isso é ponto assente, até porque é isso que as leis da física determinam: o planeta perde calor porque o espaço está mais frio. Ora, Marte é um planeta mais pequeno do que a Terra e tudo indica que perdeu o calor que tinha há mais tempo por isso mesmo. Mas havia uma altura da história em que talvez tivesse hidrosfera. Só depois é que começou a perder água. Isso pode dizer-nos muito sobre a evolução do nosso planeta”, resume a astrobióloga ao Observador.
E agora?
O sabor da vitória que a NASA teve esta noite com a chegada da longa missão InSight a Marte foi ainda mais intensificado pelo sucesso dos microssatélites MarCO. Foi “apenas um treino para saber se podemos usá-los no futuro”, diz Jorge Pla-García enquanto membro do Bit2Geek. Tudo correu como esperado: “O principal objetivo dos dois cubos é retransmitir os sinais vindos do módulo InSight para a Terra. Basicamente a ideia é a seguinte: o módulo chega ao planeta enquanto os cubos ficam a orbitar o planeta; e a seguir, o módulo manda um sinal para os cubos, que o transmitem para a Terra para permitir comunicação entre os dois planetas”, explica o investigador espanhol.
So long, #MarCO, and thank you so much! You dared mighty things, and saw them through. So proud. https://t.co/R0pEshBCDA
— NASA InSight (@NASAInSight) November 26, 2018
Mas isso não chega. Esse foi o primeiro sinal de vida vindo do InSight depois dos minutos de terror vividos nos sete minutos anteriores à aterragem, mas só ao longo da noite é que outro sinal — um pouco mais claro e informativo — é que vai chegar até nós. Embora o primeiro sirva para que os cientistas possam ficar um pouco mais descansados, o segundo grito do InSight é que vai ser mais importante: “Inclui um pouco mais de informação e só é ouvido se a nave espacial estiver em um estado de funcionamento saudável. Se a Deep Space Network da NASA captar esse beep, esse é um bom sinal de que o InSight sobreviveu ao pouso. Os engenheiros só terão de esperar até o início da noite [início da manhã em Portugal]para descobrir se a sonda implantou com sucesso os painéis solares”.