A Inspeção-Geral de Finanças (IGF) considera numa auditoria às contas da Cruz Vermelha Portuguesa que a instituição usou artifícios financeiros para ocultar a verdadeira origem dos rendimentos, escondendo assim o que é financiamento do Estado.

O relatório, que veio a público na sequência das buscas que PJ fez na terça-feira à IGF, à Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e ao Ministério da Defesa, refere-se às contas da instituição relativas aos anos de 2013, 2014 e 2015.

Segundo a auditoria da IGF, a CVP atrasou-se de forma recorrente na aprovação de contas e no envio obrigatório às entidades responsáveis, uma violação das regras que pode fazer com que a instituição perca a declaração de utilidade pública.

“A CVP encontra-se sujeita ao cumprimento do Decreto-Lei (…) que estabelece os deveres especiais das PCUP [Pessoas Coletivas de Utilidade Pública], que incluem o de enviar por meio de transmissão eletrónica à Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, o relatório de atividades e as contas do exercício relativo ao ano anterior, no prazo de seis meses após a sua aprovação”, refere a IGF.

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No relatório de auditoria — que data de 2016 mas que segundo o jornal Público só agora seguiu para o Tribunal de Contas – a IGF sublinha mesmo que a CVP não tem cumprido tal obrigação e que isso “pode configurar uma violação reiterada dos deveres legalmente impostos às PCUP, e consequentemente, determinar a cessação da declaração de utilidade pública”.

Sobre o financiamento público na CVP, a IGF diz — relativamente às contas de 2013 e 2014 – que “a grande fatia de dinheiros públicos” recebidos na instituição foi registada como “prestações de serviços” e apenas uma reduzida parcela (menos de cinco milhões de euros) foi considerada como “subsídios, subvenções ou apoios públicos”.

Tal situação, “configura uma aplicação incorreta do modelo de normalização contabilística” a que a instituição se encontra sujeita”, considera a IGF, que diz que o procedimento usado “não é mais do que “um artifício para ocultar a verdadeira origem/natureza dos rendimentos e, assim, não evidenciar que é realmente o Estado quem financia uma parte muito significativa da atividade da CVP”.

É evidente que “as subvenções públicas têm permitido à Cruz Vermelha Portuguesa manter uma volumosa almofada financeira geradora de elevadas reservas de liquidez, mas em relação às quais podem não ter sido adotadas as melhores medidas de gestão de riscos”, refere ainda a IGF.

Refira-se que as disponibilidades — de 19,7 milhões de euros, em 2013, e de 20,8 milhões, em 2014 — “situaram-se praticamente ao mesmo nível dos montantes que a CVP recebeu a título de subvenções públicas nos mesmos anos”, respetivamente, 19,3 milhões e 21,6 milhões.

À exceção das verbas do INEM, que assumem a natureza de prestação de serviços, “todos os dinheiros públicos que a CVP recebe, nomeadamente, para apoio social (do Instituto de Segurança Social) e para formação e emprego (do Instituto de Emprego e Formação Profissional), revestem a natureza de subsídio público para o financiamento da sua atividade enquanto parceira do Estado nas respostas a situações de carência dessas populações-alvo”, recorda o documento.

Ao referir o peso que o financiamento público tem nas contas da CVP e a natureza da instituição, fora as situações de catástrofe, a IGF questiona a dimensão da frota automóvel apresentada face à missão da instituição.

Segundo o documento, a CVP tinha 370 ambulâncias de transporte de doentes não urgentes, requisitadas pelas administrações regionais de saúde (ARS), centros hospitalares ou privados, 143 ambulâncias de emergência (requisitadas pelo INEM, Centros Hospitalares e ARS) e duas ambulâncias medicalizadas e de cuidados intensivos (apenas requisitadas por hospitais).

Tinha ainda seis embarcações/botes para socorro aquático e 13 veículos motorizados para diversas funções (todo-o-terreno/estafetas). A IGF estranha ainda que a CVP nem sequer divulgue no seu sítio da internet24, nem em qualquer outro meio de informação/comunicação de âmbito nacional, nem as suas contas anuais, nem os valores de subvenções/apoios financeiros públicos, evidenciando total falta de transparência (…) perante o Estado, os seus ‘stakeholders’ e os cidadãos em geral”.

Finalmente, a IGF questiona por que razão são concedidos apoios públicos à CVP mesmo quando esta não cumpre as suas obrigações para com o Estado e qual a base legal. O relatório da IGF foi divulgado na íntegra na terça-feira pela RTP.

IGF diz que é alvo de denúncias caluniosas

A Inspeção-Geral de Finanças confirmou ao final de terça-feira as diligências efetuadas pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária, que diz terem sido feitas no âmbito da designada “operação BUG”, e manifesta “a sua confiança na rápida conclusão das investigações em curso, com vista a pôr termo às atividades ilícitas contra órgãos e instituições do Estado”.

Recordando comunicados já feitos sobre alegadas irregularidades na instituição, a IGF refere que “comunicou às autoridades judiciárias comportamentos indiciadores da prática de atos ilícitos por parte de alguns trabalhadores”. E diz que foi em resposta a essas queixas que “órgãos e instituições públicas, incluindo a IGF, foram alvo de denúncias caluniosas com indícios de origem interna, as quais foram, igualmente, comunicadas ao Ministério Público, encontrando-se em curso as respetivas investigações.”

A instituição liderada por Vítor Braz garante estar disponível “para prestar às autoridades judiciárias toda a colaboração e informação que fosse considerada relevante para a descoberta da verdade e para a cessação da atividade criminosa, bem como tem instaurado os respetivos processos disciplinares exigidos pela lei, incluindo alguns, na sequência dos resultados de investigações do Ministério Público”.

A IGF é o órgão de controlo interno do Estado e é responsável por investigar suspeitas de irregularidades em entidades públicas, para além de assumir funções de fiscalização de contas, despesas e funcionamento dos serviços públicos, incluindo autarquias. O Ministério das Finanças que tutela a IGF ainda não anunciou quaisquer medidas na sequência das investigações judiciais.

Questionado esta terça-feira pelo jornalistas, o ministro Mário Centeno confirmou que o seu gabinete não tinha sido informado previamente sobre as diligências das autoridades judiciais. E acrescentou que o funcionamento das instituições, e também da IGF, será totalmente preservado no contexto que se colocar nos próximos dias”. Centeno afirmou que o Ministério irá continuar a acompanhar a situação.

Atualizado às 13.25 com comunicado da Inspeção-Geral de Finanças.