“Atravessamos um momento grave.” Foi assim que Michel Barnier, o principal negociador europeu para a questão do Brexit, abriu a sua intervenção da manhã desta quinta-feira na audição parlamentar perante os deputados portugueses. O negociador-chefe francês optou assim por ir direto ao momento presente e às consequências do chumbo do acordo negociado entre Theresa May e os líderes europeus no Parlamento britânico. “Foi uma votação de repúdio claro. Mas este voto maioritariamente negativo conjuga posições muito diferentes e às vezes até contraditórias”, apontou. Razão pela qual não teve dúvidas em afirmar: “Cabe agora ao Governo britânico dizer como encara as coisas.”

A bola está agora firmemente colocada do lado de Londres. Foi essa a posição que Michel Barnier tentou passar aos deputados das comissões parlamentares dos Assuntos Europeus, Negócios Estrangeiros e Economia, nesta audição conjunta. E não escondeu qual seria o desfecho preferido por Bruxelas: “Digo que é um momento grave o que atravessamos, porque o tratado permanece para nós o melhor possível.”

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A gravidade da situação, contudo, não é suficiente para forçar Barnier a pronunciar-se sobre uma possível extensão da aplicação do Artigo 50º, que determina que o Reino Unido sairá da União Europeia (UE) a 29 de março. Questionado várias vezes pelos deputados, o negociador-chefe nunca respondeu taxativamente sobre qual seria a posição da UE face a um pedido do Governo britânico para alargar o prazo até à saída: “Eles não colocaram o pedido. A questão que se pode colocar é quanto tempo e para quê, mas ainda nao foi apresentada”, comentou Michel Barnier ao ser confrontado com essa pergunta. Nem a perspetiva de esse alargamento poder significar um problema para a inclusão ou não do Reino Unido nas listas para as eleições europeias levou Barnier a emitir uma opinião sobre essa matéria.

Foi o Governo britânico que escolheu a data [de saída], não fomos nós. É por isso que nunca falei em adiamento, nem farei qualquer outro comentário sobre a política interna britânica. Não é o meu papel”, afirmou.

Aquilo que ficou mais claro é qual a posição que a UE poderá assumir daqui para a frente, quando May regressar a Bruxelas com uma nova proposta de acordo — o chamado “Plano B”, que deverá ser votado em Westminster a 29 de janeiro. “A minha linha vai no sentido de encontrar um acordo e penso que é possível. Simplesmente, temos de ver as coisas a mexer”, sentenciou o negociador europeu.

Michel Barnier participou ainda num almoço de trabalho com o primeiro-ministro António Costa, de onde os dois responsáveis políticos saíram alinhados, e irá ainda participar no Conselho de Estado desta noite. “Disse ao primeiro-ministro português e direi logo no Conselho de Estado que mantemo-nos calmos, mantemo-nos tranquilos e continuaremos a trabalhar com transparência, com diálogo e com determinação”, reforçou o negociador-chefe da UE. “A responsabilidade agora é do Parlamento britânico, de dizer o que pensa do tratado negociado.” E acrescentou, em inglês: “The clock is ticking” (o relógio está a contar).

Bruxelas está disposta a ceder no acordo? Sim, mas apenas num sentido

A expressão “linhas vermelhas” acabou por dominar grande parte da audição perante os deputados nacionais. Questionado pelos representantes do PS, do PSD e do Bloco de Esquerda sobre qual a abertura de Bruxelas para renegociar o acordo e em que pontos, Michel Barnier optou por deixar claro que a Europa está disposta a negociar — mas apenas se os britânicos moverem parte das suas linhas vermelhas.

“Podemos ser mais ambiciosos”, garantiu, citando até uma declaração do último Conselho Europeu que se comprometia a “acompanhar” a ambição dos britânicos “imediatamente”, se eles demonstrarem vontade para tal. Na prática, isso significa que Bruxelas está disponível para negociar um tipo de relação mais próxima do Reino Unido com a UE, como, por exemplo, um modelo semelhante ao que a Noruega tem com o resto da Europa (como defendem alguns deputados britânicos). “Todos estes modelos estão disponíveis”, garantiu Barnier, sublinhando que muitas das linhas vermelhas do Reino Unido não são partilhadas pelos europeus — “eles próprios fecham portas”, atirou.

Isso não significa, no entanto, que os europeus estejam dispostos a ceder em sentido contrário — no de manter um simples acordo comercial com os britânicos mas dando-lhes, contudo, mais benesses do que a outros. “São os britânicos que abandonam a UE. E têm a responsabilidade de preservar aquilo que somos”, declarou o principal negociador de Bruxelas, destacando que o mercado único tem de manter-se indivisível: comum para produtos, serviços, capitais e pessoas. “Há razões objetivas, não se trata de uma ideologia”, garantiu Barnier, acrescentando que o mercado único “não é apenas um supermercado, é um ecossistema” que dá vantagens à UE como um todo.

Questionado pelos jornalistas na conferência de imprensa com Michel Barnier, após o almoço de trabalho, o primeiro-ministro António Costa tentou clarificar esta posição, dizendo que não está em causa uma renegociação do acordo, mas sim uma revisão da posição do Reino Unido relativamente ao tipo de relação que quer ter com a UE: “Se o Reino Unido desejar expressar uma relação mais ambiciosa com a UE, estamos disponíveis. O que gostaríamos mesmo é que o Reino Unido continuasse na UE; não fomos nós que pedimos ao Reino Unido para sair”, relembrou Costa.

Também na questão do backstop — que é um dos pontos essenciais a que a grande maioria dos deputados britânicos se opõe, inclusivamente aliados de May como os unionistas norte-irlandeses do DUP — Barnier demonstrou que a Europa está satisfeita com a solução encontrada. “Esta é uma situação essencialmente humana: não vamos voltar a construir uma fronteira, está fora de questão“, disse, aludindo ao Acordo de Sexta-Feira Santa e à situação histórica do conflito das duas Irlandas. “O problema é que, se não há uma fronteira terrestre, temos de encontrar meios para fazermos o controlo [aduaneiro].”

“Aquilo que fizemos foi encontrar uma solução”, explicou, referindo-se à “apólice de seguro, [que funciona] da mesma forma que há um seguro para uma casa” que é o backstop. O mecanismo entraria em vigor se não fosse encontrada uma alternativa, mantendo todo o Reino Unido dentro de uma união aduaneira com a UE: “É temporário, mas pode ser utilizado durante o tempo necessário, até encontrarmos nas nossas futuras relações uma solução.”

Cenário de não-acordo pode trazer problemas: “O Brexit não é ‘business as usual'”, diz Barnier

Outra das questões levantadas pelos deputados foi a da situação referente aos cidadãos, estabelecida como máxima prioridade tanto pela UE, como pelo Governo nacional e pelo Parlamento. Ao todo, cerca de 400 mil portugueses vivem atualmente no Reino Unido e menos de 30 mil britânicos residem em Portugal.

O acordo, voltou a sublinhar Barnier, seria a melhor solução para garantir os direitos destas pessoas, já que colocou “garantias jurídicas” num processo “que é um pouco como um divórcio e que cria muitas incertezas”. Tendo em conta que o cenário de um não-acordo continua, no entanto, em cima da mesa, a posição de Bruxelas é a de, a par da preparação dos vários planos de contingência a nível comunitário, aconselhar os Estados-membros a considerarem os britânicos no seu país como “residentes legais” e a esperar que haja a mesma abertura da parte do Reino Unido — como fez o Governo português, anunciando essas medidas na semana passada.

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“A minha convicção pessoal é que dos dois lados existe uma vontade positiva de tratar os cidadãos de forma prioritária e corretamente — penso que essa é a posiçao do Reino Unido”, afirmou. Contudo, Barnier concedeu num ponto: “Não será a mesma certeza jurídica que está plasmada neste tratado.” Os efeitos de uma saída sem acordo seriam difíceis para os países europeus, mesmo com todos os planos de preparação em vigor:

Temos de dizer a verdade: o Brexit nao é business as usual, nomeadamente no que diz respeito à economia e ao comércio”, afirmou o ex-comissário europeu.

Barnier aproveitou ainda a oportunidade para mostrar o seu descontentamento com a decisão dos britânicos: “Lamento profundamente o Brexit. Até hoje ninguém conseguiu mostrar o valor acrescentado do Brexit, ninguém”, disse. Contudo, sublinhou que respeita a vontade manifestada no referendo e rejeitou a sugestão de que possa estar a ser revanchista na negociação, repetindo que “não há chantagem, não há pressão, não há manobras nem ameaças”.

A sua postura ao longo deste processo, garantiu ao Parlamento, tem sido apenas a de “aplicar a vontade britânica, defendendo os direitos dos europeus”. É esse o princípio orientador de um negociador que, perante os deputados, se afirmou como “um homem político. “Não como um super-tecnocrata de Bruxelas”, afiançou.

Já depois dos encontros, o negociador-chefe da UNE para o Brexit insistiu, no Twitter, que “o tempo está a acabar” e que “o Reino Unido terá de clarificar a sua posição. Barnier disse ainda que se sente “honrado” por participar no Conselho de Estado, a convite de Marcelo Rebelo de Sousa, e de reunião com o primeiro-ministro, a Assembleia da República e os parceiros sociais.