O ritual é algo fundamental para qualquer adepto: veste-se a T-shirt da sorte, pega-se no amuleto velho, repete-se aquele gesto que jogo após jogo garante um golo ou uma defesa. Filip Jansis é um adepto como nós e tem os seus rituais bem definidos. Em manhã de jogo, acorda cedo, bebe um café rápido e encaminha-se para o estádio. Por vezes, o caminho é longo, outras menos. Ele tenta compreender as conversas apesar da língua diferente e sentir o vibrar da cidade nas ruas envolventes. Filip está em Lisboa no dia em que há mais um derby entre Sporting e Benfica. Este será o seu jogo 140, em mais de 120 estádios, 5 continentes, 28 derbies. Já passou pelas Seychelles, Marrocos, Turquia, Brasil, entre outros países mais ou menos exóticos e confessa que sente um nervosismo estranho a cada novo derby.

Filip nasceu em 1970, na Bélgica, e viu o seu primeiro derby com apenas 11 anos: KFCO Wilrijk — Royal Antwerp Football Club. Confessa que ser de um clube é como ser casado para a vida e Petra, a sua mulher, sorri, compreendendo o que ele diz. Ela não tem ciúmes, se calhar porque vai com ele para todo o lado. Das bancadas do KFCO Wilrijk ao Brasil, têm viajado em casal por todo o lado nos últimos sete anos, embora nem sempre sozinhos. Mark e Luke, dois amigos, juntam-se muitas vezes e têm no groundhopping o melhor escape para o stress da vida de professores.

Mas o que significa então essa palavra estranha? O groundhopper é aquele amante do futebol que salta de campo em campo. Estranho, bizarro, curioso? Sim, mas é verdade. Esta espécie de turismo de bola não é nova, terá começado na década de 1970 em Inglaterra, mas tem cada vez mais adeptos. E o aumento de praticantes leva também a uma diversidade de experiências: os que só procuram estádios novos, os que só veem equipas amadoras, os que não repetem clubes, ou os apaixonados pela emoção dos derbies. Filip é um dos últimos.

Groundhopping para tótós

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Prepare a viagem com alguma antecedência mas tendo sempre em conta que as datas de jogos podem mudar ligeiramente. Nunca viaje no dia do jogo, vá antes e sinta a cidade ou vila. Em relação aos bilhetes, procure sempre comprar no site do próprio clube e/ou na liga que organiza o jogo, é mais seguro e não beneficia o mercado negro.

Doing the 92: é o sonho dos groundhoppers, visitar todos os estádios de Inglaterra e País de Gales onde decorram jogos profissionais ou amadores. Missão Impossível? Talvez, mas há sites e fóruns para ajudar o fã mais louco. Por exemplo: aqui, aqui ou aqui.

O maior derby regional do mundo: IJsselmeervogels — S.V. Spakenburg. São 3 clubes numa aldeia de 19 mil, recomenda-se o pequeno documentário da Copa 90.

Jantar com ele parece um episódio das 1001 noites, onde as histórias e experiências se repetem e e ficamos boquiabertos com os seus relatos. A pergunta da praxe: qual o melhor derby que já viste? “Melhor público deve ser o turco, o derby Besiktas – Galatasaray foi impressionante. Eles não se calam um minuto e o trajeto para o estádio, com todas as barracas e gente a fazer churrascos, é impressionante. Espera, o derby entre o Raja e o Wydad, em Casablanca, também foi especial. Tinha tudo para ser memorável, mas, infelizmente, realizou-se em campo neutro por causa de uns problemas com o governo e acabou por ter menos adeptos do que é habitual. A política mexe sempre, e demasiado, com o futebol. Mas o melhor derby tem de ser o Celtic – Rangers, é o melhor ‘You’ll Never Walk Alone’ do mundo. É cantado por todos, é espontâneo, não é uma gravação a dar o ritmo como noutros sítios.”

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Digo-lhe que vou bloquear a resposta: Celtic — Rangers, e ele responde:

“Espera, o melhor ambiente será sempre o do KFCO Wilrijk, é o meu clube. O Wilrijk é o clube do povo. São os adeptos que gerem o clube desde a bancarrota e refundação em 2013. As decisões são tomadas por todos nós. Há algo mais bonito do que isso? E jogamos no Estádio Olímpico, de 1920. O que estamos a fazer no Wilrijk é brutal, é fantástico. Controlamos o nosso clube, o clube somos nós. Repara que no futebol atual somos, quase sempre, meros clientes para o clube-empresa, mas devíamos ser vistos antes como ingredientes nesta receita mágica que é o jogo de futebol.”

A conversa com o Filip mostra que ele tem ideias muito claras sobre o mundo do futebol, aliás, sobre a indústria do futebol. “Alemanha é a Meca deste jogo. Eles pensam nos fãs. O jogo tem de ser do povo, tem de ser barato, e tem de ter álcool. Ver um jogo lá, numa divisão profissional, semi ou amadora é sempre uma experiência arrebatadora, com estádios cheios e muita emoção. O respeito pelos adeptos também se ganha com a questão dos horários e da agenda. Na Bélgica, como aqui em Portugal pelo que sei, os horários só são fechados duas semanas antes. Na Bélgica até é relativamente fácil contornar isso, o país é pequeno e cruza-se rápido. Mas se querem estádios cheios tem de pensar nos adeptos. Isto está tão diferente da década de 1980 quando comecei a ver jogos. E está diferente porque a diferença entre grandes e pequenos é cada vez maior, até na Bélgica se sente isso. Pessoalmente, acho que se podia fazer como na NBA e ter drafts, isso permitia equilibrar as contas. E poderíamos todos sonhar em ter o próximo Messi. Quem não gostaria de ter um Messi na sua equipa?”

Porém, nem tudo é perfeito no mundo do turismo de futebol, o groundhopping levanta algumas questões éticas e Filip tem perfeita noção disso. “Quando assisti ao derby de Istambul, tive um dia louco para conseguir ter um bilhete a um preço menos escandaloso. Fui levado por desconhecidos, entrei numa garagem no meio do nada, tudo para conseguir o desejado ingresso a tempo de comer e beber alguma coisa antes do jogo. Quando finalmente cheguei perto do estádio, dei por mim a conversar com um velho, um verdadeiro fanático com mais de 60 anos de histórias, a desabafar que não iria ao jogo. Os preços destes jogos grandes e a existência de sites especializados nessas coisas e ainda o mercado negro, tudo isso está a afastar os adeptos mais populares do futebol. Não sei bem o que podemos fazer nestes casos, confesso.”

A revista FourFourTwo coloca o derby Benfica-Sporting no top 30 de jogos que todo o amante de futebol deve ver ao vivo, Filip considera que esse número pode bem ser mais alto.

“Digo-te que já vi alguns derbies e o ambiente em Alvalade foi muito bom. O público, as claques, a música no estádio, eu sou do classic rock e adorei a música. E depois houve o jogo. Há melhor do que seis golos num jogo destes? Este Benfica joga muito bem, bola no pé, gostei de ver. Mas é um treinador novo, não é? Fico com vontade de ver mais jogos aqui em Portugal. Talvez um Belenenses, o clube, ou o Oriental porque adorei as cores deles. E tens de ver um jogo do Wilrijk.”

A cabeça de um groundhopper é assim, está sempre a pensar no próximo jogo. E mesmo quando lhe digo que sim, que vamos combinar isso, Filip já está a responder com uma pergunta: “Conheço um sueco que nos mete nos ultras do Raja. Queres?”