Não há construtor que não aproveite a oportunidade para adquirir um modelo da concorrência, para depois desmontá-lo com a finalidade de conhecer os seus segredos e os seus trunfos. Isto é ainda mais evidente quando em causa está um veículo disruptivo, que inove no que quer que seja, preocupando ainda mais os adversários. Os construtores alemães são tidos como os melhores do mercado, mas os veículos eléctricos apanharam-nos de surpresa, a necessitar de uma tecnologia que desconheciam e, como tal, que não controlavam. E daí que rapidamente se conhecessem histórias de como a Mercedes teve acesso a um Model X quando estava a desenvolver o seu EQC, exactamente o mesmo que fez a Audi, para preparar o e-tron.
Caça aos segredos
Se os Model S e Model X da Tesla surpreenderam os fabricantes tradicionais – ao provar que era possível produzir um carro a bateria que fosse apelativo, rápido e com uma autonomia respeitável –, foi o mais pequeno e mais barato Model 3 que os assustou, pela rentabilidade que promete, e consegue, a fazer fé nas contas da marca. Daí que não seja de espantar que um construtor alemão, desconhecido até há bem pouco tempo, tenha adquirido há cerca de um ano duas das primeiras unidades do Model 3 Long Range, a única versão à venda na altura, que depois expediu por avião para a Alemanha. Quem publicou a história foi o jornal alemão Süddeutsche Zeitung, em Fevereiro de 2018, onde revelou igualmente que o construtor (que continuava a não ser revelado) pagou 185.000€ por cada unidade, ou seja, quatro vezes mais do que o preço do modelo no mercado norte-americano, tudo para ter acesso aos segredos antes dos restantes. Sendo que esta verba tem de ser multiplicada por dois e adicionada ao custo do transporte de avião, entre outros pormenores.
Mas os jornalistas do Süddeutsche Zeitung chegaram à fala com engenheiros da marca envolvida na importação dos dois Model 3, que lhes confessaram o seu espanto depois de desmontarem o Tesla peça a peça. “Os nossos técnicos ficaram especialmente impressionados pela electrónica associada à motorização e baterias, por ser compacta, expansível, totalmente integrada, modular, facilmente acessível, bem protegida, com custos razoáveis e espantosamente inteligente sob diversos aspectos. Este foi o veredicto dos técnicos, com o qual concordaram integralmente os responsáveis pela produção.” Ou seja, declarações que, até pela quantidade de elogios, até o próprio Elon Musk, CEO da Tesla, teria pudor em verbalizar. Porém, os engenheiros da marca em causa não ficaram por aqui, acrescentando que o fabricante americano tinha “aperfeiçoado o design minimalista”, para de seguida revelar que esse minimalismo foi estendido a todo o veículo, pois “só há um motor, uma engrenagem para a frente e outra para trás, e apenas um circuito de arrefecimento para todo o sistema”.
Mas, afinal, que construtor alemão ficou tão impressionado depois de desmontar e testar à exaustão o Model 3? Isso continuou no segredo dos deuses, até alguém ter decidido dar uma entrevista… sem o mínimo constrangimento.
Os problemas da Porsche e da Audi
O holandês Bram Schot é novo na Audi, mas é verdadeiramente o homem ao leme, pelo menos desde meados de 2018, quando assumiu o lugar de chairman do conselho de administração da Audi AG, supervisionando marketing e vendas. Schot é também um homem prático, que diz o que pensa sem rodeios. Numa recente entrevista ao site alemão Manager Magazin (a 24 de Janeiro de 2019), o chefe da Audi tece uma série de considerações sobre a sua própria marca, algumas bem difíceis de ouvir para quem está ligado ao construtor alemão, não se inibindo de fornecer também alguns dados interessantes em relação aos veículos eléctricos da Audi e aos desenvolvidos sob a liderança da Porsche.
Em relação ao SUV e-tron, cuja fabricação já começou e que deverá chegar em breve aos principais mercados europeus, inclusivamente ao português, Bram Schot foi crítico:
O primeiro eléctrico da Audi não só chegou tarde, como é demasiado caro, depois de mais de 2.000 milhões de euros de desenvolvimento.”
Segundo ele, “será necessário produzir mais de 600.000 unidades do e-tron para atingir break-even, valor que é visto agora como uma ilusão”. De recordar que o e-tron é fabricado sobre uma plataforma de veículos convencionais com motores de combustão, a MLBevo, que serve do A4 ao A8, passando pelos Q5, Q7 e Q8, além do Lamborghini Urus, Volkswagen Touareg e Porsche Cayenne. E o recurso a uma plataforma não projectada de raiz para veículos eléctricos – a solução que a Porsche estava a desenvolver e que usa no Taycan, só estaria disponível dois anos depois do arranque do projecto e-tron – constituirá sempre uma limitação importante. Um pouco à semelhança do que a Mercedes está a fazer com o EQC.
Pára tudo!
Mais uma vez de acordo com Schot, “os engenheiros da Audi e da Porsche, que trabalham em conjunto na nova arquitectura para veículos eléctricos, a Premium Platform Electric (PPE), tiveram que alterar a PPE porque o Model 3 está melhor do que eles pensavam”. Tão melhor que todos os modelos topo de gama (eléctricos) previstos para todas as marcas do Grupo Volkswagen foram adiados. De 2021, a data originalmente lançada, passaram para 2022 (por enquanto).
Mas como é que os responsáveis pelo desenvolvimento da PPE se aperceberam que a plataforma que deveriam lançar dentro de dois anos estava atrasada em relação a um modelo de 2017?
Só há duas formas de conhecer, de forma tão pormenorizada, os custos do Model 3, sendo que a primeira está afastada à partida, pois passaria por perguntar directamente a Elon Musk e esperar que ele estivesse virado para a partilha. A segunda é comprar um Model 3, desmontá-lo e realizar uma análise completa de reverse engineering (engenharia reversa)…
Na opinião do homem forte da Audi, os resultados da análise ao mais pequeno dos Tesla revelou que os custos da PPE eram demasiado elevados quando comparados com os da marca americana. Ao que tudo indica, estariam cerca de 3.000€ acima do que a Tesla conseguiria atingir. Ainda segundo Schot, a Porsche declarou-se pronta a encaixar o prejuízo devido à tecnologia inferior – o que não admira, uma vez foi o construtor e Estugarda que assumiu a liderança do processo, segundo as declarações de um alto responsável à Automotive News Europe. Sucede que esta posição não colheu o apoio das restantes marcas que vão recorrer à PPE, da Audi à Lamborghini, passando pela Bentley.
Uma das partes da plataforma que mais contribuiu para a vantagem da Tesla tem a ver com as baterias, sendo conhecido o avanço dos americanos neste domínio. Este foi outro dos motivos que levou a Audi e a Porsche a atrasar a entrada ao serviço da PPE. Retomando as conclusões dos técnicos, reveladas pelo Süddeutsche Zeitung, é possível concluir que o problema com a PPE pode ser mais vasto do que meramente uma questão de custos.
E qual é a situação do Porsche Taycan?
O modelo que vai ser o primeiro eléctrico da Porsche nunca é directamente referido, mas a realidade é que recorre à plataforma denominada J1, que serviu de base para a elaboração da nova PPE, que ‘encalhou’ nos problemas que já mencionámos. Se a J1 foi a base da PPE, só por milagre estaria num estágio superior ou seria mais eficiente em qualquer domínio, o que levanta algumas dúvidas em relação à performance e/ou rentabilidade do modelo.
Tão grave quanto isso, a Porsche tomou a liderança no que respeita aos eléctricos desportivos e topos de gama, desenvolvendo a tecnologia de que todas as outras marcas do Grupo Volkswagen iriam beneficiar. Esta confiança na capacidade tecnológica da Porsche era como que um atestado de competência, que agora se vê colocado em causa pelas afirmações de Bram Schot. Caso a Porsche consiga finalmente conceber a PPE com o mesmo nível de eficiência do Model 3, é bom recordar que “apenas” igualou, em 2022, o desempenho de um modelo de 2017, ou seja, terá 5 anos de atraso.