O tema do debate era o subsídio do Estado aos jardins-infância. Mas a verdadeira dúvida era se o IBM Debater — o software de argumentação gerido pelo computador Big Blue, da IBM —  conseguia ser mais persuasivo do que Harish Natarajan, finalista do Campeonato Mundial de Debate de 2016 e recordista para o maior número de vitórias oficiais em debates de sempre. No final da noite, a audiência votou a favor do humano. O computador defendia o financiamento governamental.

O IBM Debater apresentou-se em palco como uma caixa negra com um molde oval iluminado a azul, que fazia a vez de uma cara. Argumentava contra Natarajan através de uma voz sintetizada, num discurso articulado similar ao de assistentes digitais como a Siri, da Apple, ou o Google Assistant. “Ela”, disse o moderador do debate, John Donvan, tratando o computador no feminino, “foi surpreendentemente carismática. Soava muito natural”. A argumentação baseava-se tanto em dados estatísticos como em teorias éticas: “Dar oportunidades aos menos afortunados deve ser uma obrigação moral para qualquer ser humano“, afirmou a certa altura o computador. O IBM Debater chegou a incluir piadas no seu discurso.

O debate seguiu regras tradicionais e cada lado teve 15 minutos para se preparar (tendo o IBM Debater a vantagem de aceder a milhões de publicações académicas, estudos científicos e análises sociológicas da questão nesse espaço de tempo). Depois, cada participante tinha seis turnos intercalados para argumentar, responder ao adversário e fechar o debate. Ganhava quem conseguisse que mais membros do público mudasse de opinião.

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No início da noite, 79% dos presentes eram a favor do subsídio estatal aos jardins de infância. No final, com influência dos argumentos apresentados por Natarajan, o valor tinha caído 17 pontos percentuais, para 62%. Mesmo vencendo, Harish Natarajan ficou impressionado com as capacidades do computador: “O que me marcou foi o valor potencial do IBM Debater quando combinado com um ser humano”, disse à CNET.

Pode experimentar uma versão limitada do programa online

À porta fechada, desde que começou a ser desenvolvido, em 2011, que o programa da IBM já debateu contra dezenas de humanos para se treinar. Esta foi a segunda aparição pública do software: antes, tinha argumentado com sucesso a favor da tele-medicina, contra Dan Zafrir, e perdido por pouco a defesa da exploração espacial, frente a Noa Ovadia. Desta vez, o adversário era mais difícil — estava “noutro nível”, nas palavras do responsável pelo projeto, Ranit Aharonov — portanto, a equipa de desenvolvimento da IBM sabia que a derrota era possível.

O sistema completo é, em termos físicos, um servidor extremamente poderoso (com um total de 28 núcleos, ou cores, de processamento e 768 GB de memória RAM, 24 vezes o disponível num Macbook Pro, por exemplo). O servidor principal está ligado a quatro servidores de apoio, cada um com 64GB de RAM e 4TB disponíveis para armazenamento (e cheios com bases de dados dedicadas ao tema do debate). Do lado digital, a inteligência artificial cumpre três objetivos: compreender o discurso de um adversário (de forma a poder responder-lhe); construir e articular um discurso claro e sustentado; e criar modelos virtuais que representem dilemas e polémicas humanas (para que tenha uma base de conhecimento de onde possa derivar um argumento). Quanto mais treinar, melhor será capaz de debater e deve ultrapassar eventualmente as capacidades humanas.

Mas se não tem uma licença da IBM nem cinco servidores à mão pode sempre experimentar uma versão limitada do serviço online. O Speech by Crowd é um projeto online de crowdsourcing de opiniões. A IBM propõe um tema sobre o qual o público pode apresentar argumentos. Depois de alguns dias a receber a “sabedoria da multidão”, o computador organiza a informação que recebeu por factualidade, relevância e força e gera uma conclusão sobre o tema, expressa através de um gradiente entre os dois extremos trazidos a debate (como se devemos ou não travar o desenvolvimento de carros autónomos). Foi esta versão que esteve exposta e acessível ao público na CES 2019.

Já é hábito ter computadores da IBM a competir com os melhores humanos

O IBM Debater é o mais recente esforço da IBM para provar que os seus programas conseguem ganhar não só a um humano como aos melhores dos humanos. Quando estiver a funcionar plenamente deveajudar as pessoas a raciocinar mostrando argumentos convincentes e factuais enquanto limita a influência de emoções, ambiguidades e preconceitos“, explica a IBM na página em que apresenta o software. As aplicações comerciais podem ir do debate político a debates que versem sobre temas como “ajudar uma empresa a compreender as queixas de funcionários”, adiantou o diretor do programa. Por agora, o IBM Debater quer provar que consegue ganhar sistematicamente debates contra os melhores oradores do mundo.

Watson a competir no Jeopardy (Getty Images)

O desafio atual é a evolução de uma série de conquistas anteriores da empresa. O programa específico do IBM Debater nasceu do Watson, um computador construído para jogar o popular concurso televisivo americano Jeopardy!

Em 2006, o investigador da IBM Charles Lickel estava a jantar fora com colegas quando o restaurante inteiro ficou silencioso. Toda a gente estava vidrada na televisão da sala a ver mais uma vitória de Ken Jennings no Jeopardy!. O americano acabaria por conquistar o concurso 74 vezes seguidas. Charles Lickel decidiu que conseguia fazer melhor e propôs o desenvolvimento do Watson. Em 2011, o computador derrotou Ken Jenning e outro dos melhores jogadores de Jeopardy de sempre Brad Rutter. Ganhou um milhão de dólares numa edição especial do programa.

Mas o desafio mais famoso da história da empresa foi a série de embates entre o computador Deep Blue e o melhor jogador de xadrez do mundo à época, Garry Kasparov. Em 1997, o Deep Blue seria o primeiro computador do mundo a derrotar um campeão mundial ao longo de um jogo completo. Mas as mediáticas horas de jogo foram apenas o culminar de anos de trabalho.

Garry Kasparov vs. Deep Blue em 1996 (AFP/Getty Images)

A IBM começou a desenvolver um super-computador para jogar xadrez em 1986, a partir de um protótipo construído por dois universitários no ano anterior (o ChipTest). Originalmente Deep Tought, seria renomeado Deep Blue por razões de marketing, num trocadilho com a alcunha da empresa (Deep Blue).

O Deep Blue funcionava pela força de processamento puro: era um sistema de inteligência artificial à Antiga (uma GOFAI, Good Old-Fashioned Artificial Intelligence), que analisava o estado da partida e testava o máximo de jogadas possíveis até concluir qual era a jogada ideal. Quanto mais poderoso fosse o computador a alimentar o Deep Blue, melhor jogava xadrez. Quando enfrentou o russo Garry Kasparov, em 1996, era capaz de processar 100 milhões de posições por segundo, o que o tornaria equivalente ao nível de jogo do campeão mundial.

O computador ganhou a primeira partida. O humano venceu a segunda. Empataram outras duas e o campeão mundial ganhou as duas hipóteses finais quatro pontos a dois. Ganha Garry Kasparov. Resistem os humanos como campeões terrestres de xadrez.

A IBM não se deu por contente com a derrota. Quando voltou à carga, em 1997, a empresa apresentou o Deeper Blue, capaz de avaliar 200 milhões de posições por segundo e de planear até vinte jogadas em avanço. Quando desenvolveram o programa, os cientistas da IBM conseguiam dizer ao Deep Blue o que fazer se o Rei estivesse em perigo, mas era o Deep Blue que calculava o índice de perigo para o Rei a cada momento de jogo. Para acertar as variáveis, o programa treinou repetidamente contra si próprio e estudou 700 mil jogos profissionais. O grão-mestre de xadrez Joel Benjamin ajustou os parâmetros do computador e os grão-mestres Miguel Illescas, John Fedorowicz, e Nick de Firmian contribuíram para dar ao computador uma base de dados com 4 mil variações na sua jogada de abertura.

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Foi este adversário que Garry Kaparov encontrou em 1997. O jogo fez-se ao longo de seis dias. Desta vez, o humano ganhou a primeira partida e o computador ficou com a segunda. Empataram três partidas seguidas antes do Deep Blue. E, à décima sétima jogada da partida final, ganha o Deep Blue, jogando uma variação que tinha sido introduzida na base de dados horas antes do encontro. Três pontos e meio a dois pontos e meio, ganha o robô e perdem a coroa os humanos.

Garry Kasparov acusou a IBM de fazer batota e pediu um novo jogo. A empresa recusou e desmantelou fisicamente o Deep Blue. Era o fim para o computador, mas o apenas o início para os sistemas de inteligência artificial. De outras empresas surgiriam programas mais eficientes como o Houdini, Rybka, Deep Fritz e o Deep Junior. A programação das inteligências artificiais passou a ser mais elegante, deixando a força bruta para desenvolver simulações de “redes neurais” e processos de autoaprendizagem. E os jogos mudaram. A Google dedicou-se a ensinar as suas inteligências artificias a competir no go (um jogo chinês de estratégia considerado mais complexo do que o xadrez). Surgiu o AlphaGo, e daí o Master, o AlphaGo Zero e, finalmente, o Alpha Zero (capaz de jogar go, xadrez e shogi). Em 2017 umas das variantes mais fracas do programa era capaz de bater o campeão mundial Ke Jie em três partidas sem resposta.

Chegou a ser desenvolvida uma variante do xadrez com regras mais difíceis para os computadores aprenderem, o Arimaa, criado em 2002. O objetivo era tão claro que os criadores do jogo passaram a organizar uma competição anual entre humanos e computadores. Em 2015, os melhores jogadores do mundo foram derrotados pelo software Sharp e anunciaram que os robôs já eram melhores do que os humanos também nesta variante.

A tecnologia da IBM é testada em jogos, mas tem aplicações comerciais

Os jogos mediáticos do Deep Blue chamaram a atenção para a IBM e deram força ao desenvolvimento de inteligências artificiais. O IBM Debater já está a ser transformado num produto comercial para facilitar a comunicação dentro de empresas e auxiliar oradores públicos. E até o software criado para jogar Jeopardy!, o Watson, se transformou numa plataforma de inteligência artificial utilizada por empresas em todo o mundo. A primeira aplicação foi a assistência no diagnósticos de cancros em hospitais americanos.

Portugueses ganham concurso mundial da IBM com inteligência artificial para detetar incêndios

Foi exatamente com base nesta tecnologia que os portugueses da Compta criaram um serviço para a previsão, deteção e combate de incêndios, o Bee2FireDetection. É o primeiro serviço comercial de deteção de incêndios com base em inteligência artificial e foi distinguido pela própria IBM no concurso mundial Watson Build (concorreram cerca de 400 empresas em sub-competições regionais).