Enviado especial ao Vaticano

O cardeal alemão Reinhard Marx, arcebispo de Munique e presidente da conferência episcopal da Alemanha, alertou este sábado, dirigindo-se aos líderes católicos reunidos no Vaticano para discutir os abusos sexuais na Igreja, para a necessidade de ter um sistema legal na Igreja Católica que opere nos mesmos padrões de qualidade que a justiça civil, “estabelecendo procedimentos transparentes”.

Na mesma conferência, integrada no encontro subordinado à proteção dos menores na Igreja, o alemão lembrou como em tempos a hierarquia católica na Alemanha manipulou e eliminou documentação referente a sacerdotes que tinham sido acusados de abuso sexual, e pediu aos bispos do mundo inteiro transparência na forma como lidam com estes casos, afirmando mesmo que a Igreja deve divulgar publicamente estatísticas sobre o número de casos de abuso registados numa diocese ou país, com o máximo de detalhe possível, para diminuir a desconfiança institucional que rodeia a Igreja Católica neste assunto.

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Num discurso em que sublinhou a importância de procedimentos administrativos justos e transparentes na Igreja Católica, Marx sublinhou: “O abuso sexual de crianças e jovens deve-se, não em pouca medida, em abusos de poder na área administrativa. No que toca a este assunto, a administração não contribuiu para realizar a missão da Igreja, mas pelo contrário, ocultou, desacreditou e tornou-a impossível. Ficheiros que podiam ter documentado estes atos terríveis e nomeado os responsáveis foram destruídos, ou nem sequer foram criados”.

“Deliberadamente, os procedimentos e processos estipulados para a investigação de ofensas não foram seguidos, mas sim cancelados e deixados de lado. Os direitos das vítimas foram efetivamente espezinhados e deixados aos caprichos de indivíduos. Isto são tudo coisas que contradizem tudo aquilo que a Igreja devia significar”, acrescentou o cardeal alemão.

O arcebispo Charles Scicluna é o principal investigador do Vaticano para os abusos sexuais

Mais tarde, numa conferência de imprensa após os trabalhos da manhã, Reinhard Marx viria a detalhar aquilo a que se referiu, explicando que apenas recordou as conclusões de um estudo encomendado pelos bispos alemães sobre a questão dos abusos sexuais. Em 2014, lembrou Marx, todos os bispos alemães foram questionados, de forma anónima, sobre quais “os perigos sistemáticos que facilitaram os abusos, independentemente da culpa pessoal do criminoso”.

“Este relatório, resumidamente, mostra que em cada diocese houve determinados documentos que foram manipulados, que não continham o que tinham de conter. Mas não há responsabilidades exatas, porque não havia nomes concretos”, lembrou o cardeal, sublinhando que se tratou de um estudo científico feito com total anonimato. “Por exemplo, um sacerdote que vinha de outra diocese e que tinha sido acusado de abusos sexuais que sistematicamente não estavam referidos nos autos”, exemplificou.

O arcebispo de Munique, que na sexta-feira se encontrou em privado com um grupo de 16 vítimas de abuso sexual que vieram a Roma contar as suas histórias paralelamente à cimeira, explicou que na sua diocese há muitos anos passou a exigir mais documentação sobre o clero. “Se alguém vem de outro país e é enviado para a minha diocese para trabalhar, em quero ter toda a documentação pessoal de toda a atividade sacerdotal dessa pessoa. Parece uma coisa simples, mas não é. Muitas vezes, os superiores diziam apenas: ‘É uma pessoa excelente’. Mas isso não é suficiente”, disse o prelado, voltando a sublinhar que apenas tinha informações relativas à Alemanha.

Fim do segredo pontifício para casos de abuso?

Em discussão na manhã deste sábado esteve também a aplicação do segredo pontifício — o nível mais alto de sigilo determinado pelo Vaticano — aos casos de abusos sexuais, com o cardeal Marx a defender o fim desta prática. “Qualquer objeção [à transparência total] com base no segredo pontifício só será relevante se for possível mostrar por que razões é que o segredo se devia aplicar à investigação de ofensas criminais relativas ao abuso de menores. No estado atual das coisas, não conheço nenhuma razão para tal”, disse.

Lembrando que “os princípios da presunção de inocência e proteção dos direitos pessoais e a necessidade de transparência não são mutuamente exclusivas”, o cardeal alemão sublinhou que “a transparência não significa a aceitação acrítica e a disseminação indisciplinada de alegações de abusos”. “O objetivo é um processo transparente, que clarifique e especifique as alegações, e siga os padrões genericamente aceites no que toca ao quando e ao como é que o público, as autoridades e a Cúria Romana devem ser informadas”, defendeu.

Numa lista de quatro pontos concretos sobre como aumentar a transparência da Igreja Católica na forma como investiga os abusos sexuais de menores, o cardeal alemão pediu que seja feita uma “definição do objetivo e dos limites do segredo pontifício” e sublinhou que “a Igreja não pode operar abaixo dos padrões de qualidade da administração pública da justiça se não quiser enfrentar a crítica de que tem um sistema legal inferior que magoa as pessoas”. Marx defendeu ainda “o anúncio público das estatísticas sobre o número de casos” para evitar a “desconfiança institucional” que “conduz a teorias da conspiração”, e ainda a divulgação pública dos procedimentos judiciais da Igreja.

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Na conferência de imprensa ao final dos trabalhos da manhã, o arcebispo maltês Charles Scicluna, secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé e principal investigador do Vaticano para os casos de abuso sexual, também defendeu o fim do segredo pontifício para estes casos, considerando que este é uma ferramenta “ancestral” e “pesada” que não é necessária para salvaguardar as pessoas. “O nível normal de confidencialidade, que os processos civis garantem, é suficiente para proteger a dignidade e bom nome das pessoas envolvidas”, defendeu Scicluna.

O “momento mais intenso” da cimeira e o elogio às mulheres

Também este sábado, o padre Federico Lombardi, moderador dos trabalhos da cimeira, lembrou aos jornalistas aquele que foi o “momento mais intenso” da reunião: aquele em que os participantes escutaram, na tarde de sexta-feira, o testemunho de uma mulher que sofreu abusos sexuais. De acordo com o testemunho divulgado pelo Vaticano, trata-se de uma mulher que sofreu abusos durante cinco anos da parte de um padre sem que ninguém soubesse e que foi abandonada pelo marido quando lhe contou o que tinha acontecido.

A irmã Veronica Openibo, uma das oradoras da cimeira, explicou que naquele momento “algo aconteceu naquela sala”. “Quando ouvimos o testemunho daquela mulher que falou é como se tivéssemos experimentado o que ela experimentou”, disse aos jornalistas.

A mulher contou que tinha 11 anos quando começaram os abusos. “Desde essa altura eu, que adorava pintar livros e dar cambalhotas na relva, deixei de existir”, disse aos bispos e superiores religiosos. “Pelo contrário, estão marcadas nos meus olhos, nos meus ouvidos, no meu nariz, no meu corpo, na minha alma, todas as vezes que ele me imobilizava, a mim, uma menina, com uma força sobre-humana: eu paralisava, ficava sem respirar, saía do meu corpo, buscava desesperadamente com os olhos uma janela para olhar para fora, esperando que tudo terminasse. Pensava: ‘Se não me mexer, talvez não sinta nada; se não respirar, podia morrer’.”

A irmã Veronica Openibo falou este sábado aos bispos e cardeais reunidos no Vaticano (ALESSANDRA TARANTINO/AFP/Getty Images)

“Quando terminava, eu voltava a apropriar-me daquele que era o meu corpo, ferido e humilhado, e ia-me embora, até acreditando que tinha imaginado tudo. Mas como podia eu, uma menina, entender o que tinha acontecido? Pensava: ‘Seguramente é culpa minha’ ou ‘o que fiz para merecer este mal?'”, lembrou a mulher, que durante o resto da vida teve problemas alimentares e foi hospitalizada diversas vezes.

A sobrevivente lembrou, depois, o momento em que, com 26 anos, deu à luz pela primeira vez. “Flashbacks e imagens voltaram a trazer-me tudo à cabeça. O parto parou e o meu filho ficou em perigo. Não consegui dar-lhe de mamar por causa de todas as recordações terríveis que me vinham à memória. Acreditava que estava a enlouquecer. E então confiei no meu marido, confiança que depois foi usada contra mim durante a separação quando, por causa do abuso sofrido, ele pediu que me fosse tirado o poder paternal por ser uma mãe indigna”, lembrou a mulher, antes de contar como falar do assunto e denunciar o caso a ajudou a recuperar a sua vida.

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O arcebispo Charles Scicluna explicou este sábado aos jornalistas que “aquela narrativa” de uma “pessoa que sofreu muito às mãos de um padre” serviu para “transformar os corações” de todos os participantes daquela reunião. Scicluna lembrou a importância de ouvir as mulheres em todo este processo da Igreja, recordando que já na sexta-feira falou pela primeira vez uma mulher na cimeira — Linda Ghisoni — e que no sábado há duas mulheres no programa da reunião: a freira nigeriana Veronica Openibo e a jornalista mexicana Valentina Alazraki. “As mulheres trazem uma sabedoria de que nós precisamos”, admitiu o arcebispo.