Enviado especial ao Vaticano

O arcebispo ganês Philip Naameh admitiu este sábado que a Igreja Católica esteve, em diversas situações, “demasiado confortável” para se confrontar com o seu próprio “lado negro” no que diz respeito à questão dos abusos sexuais. “Frequentemente, ficámos parados, olhámos para o outro lado, evitámos conflitos. Estávamos demasiado confortáveis para nos confrontarmos com o lado negro da Igreja“, lamentou Naameh, presidente da conferência episcopal do Gana, numa celebração penitencial presidida pelo Papa Francisco que encerrou o terceiro dia de trabalhos da cimeira dedicada aos abusos sexuais na Igreja Católica.

“Traímos a confiança em nós depositada, de modo especial em relação ao abuso no âmbito da responsabilidade da Igreja, que é substancialmente nossa responsabilidade. Não garantimos às pessoas a proteção que elas têm direito a ter, destruímos a esperança e as pessoas foram brutalmente violadas no corpo e no espírito“, disse Naameh, que falou sempre na primeira pessoa, uma formulação que reflete um dos grandes temas que marcaram os três dias de reuniões no Vaticano: a necessidade de cada bispo assumir para si próprio a responsabilidade pelas ações de toda a Igreja.

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Naameh falou durante uma breve celebração durante a qual foi escutada a passagem bíblica referente à parábola do filho pródigo, que depois de abandonar o pai reconhece os seus erros e regressa a casa, sendo recebido com festa. O arcebispo aproveitou esta passagem bíblica para recordar que todos os bispos são “irmãos”. Por isso “não somos responsáveis apenas por nós mesmos, mas também por cada membro da fraternidade e pela própria fraternidade“, disse ao Papa e aos outros bispos e cardeais presentes na cimeira, entre os quais o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente.

Sublinhando que, na parábola do filho pródigo, a situação do filho só melhora quando ele se aproxima do seu pai e reconhece os erros que cometeu, também os bispos têm de reconhecer e admitir os erros cometidos pela hierarquia da Igreja face às vítimas de abuso sexual. “Seremos capazes de fazer isso? Desejamos fazer isso? Este encontro vai desvendá-lo“, questionou. “Como ouvimos e discutimos hoje e nos dois dias precedentes, isso implica assumirmos responsabilidades, prestarmos contas e instituirmos a transparência”, acrescentou.

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O Papa Francisco também falou brevemente aos cardeais e bispos presentes, sublinhando como “a parábola do Pai Misericordioso mostra-nos que Deus oferece perdão e esperança para o futuro”. “O filho que deixou o pai de lado, não consegue ficar longe, mas sente a necessidade de reconhecer a própria culpa, arrepender-se, voltar ao pai”, disse Bergoglio. “Durante três dias falamos e ouvimos as vozes de vítimas, que sobreviveram a crimes que sofreram na nossa Igreja, como menores e jovens. Interrogamo-nos, longamente, sobre como é que podemos agir, responsavelmente, que passos devemos tomar, agora”, recordou o Papa.

“Para poder entrar no futuro com coragem renovada, temos de dizer como o filho pródigo: Pai, pequei. Temos necessidade de examinar, onde for necessário, ações concretas para as Igrejas locais, para os membros das conferências episcopais, para nós mesmos. Isso exige que olhemos sinceramente à situação que se criou nos nossos países e pelas nossas próprias ações“, afirmou Francisco.

Francisco falava visivelmente emocionado, após ele e as quase duas centenas de líderes católicos terem escutado o testemunho de uma vítima de abuso sexual, cuja identidade não foi revelada apesar de o momento ter sido transmitido pela televisão do Vaticano, e que falou em espanhol. “Quando se experimenta o abuso, quer-se pôr fim a tudo. Mas não é possível”, disse o jovem. “Não há sonho sem memórias do que aconteceu, nenhum dia sem recordações.” De seguida, o jovem, que é músico, interpretou durante vários minutos uma peça em violino, na Sala Régia do Palácio Apostólico, perante toda a liderança da Igreja Católica.

Este sábado foi o último de três dias de conferências no encontro “Proteção dos Menores na Igreja”, que serviu para debater temas como a responsabilidade dos bispos na investigação e denúncia dos abusos, a prestação de contas perante as autoridades eclesiásticas e civis, e a transparência dos procedimentos. O encontro termina este domingo com a celebração de uma missa presidida pelo Papa Francisco, que no final irá proferir um discurso que será o documento conclusivo da cimeira.

Artigo corrigido às 21h50. Uma versão anterior deste artigo atribuída, erradamente, ao Papa Francisco as frases ditas pelo arcebispo Philip Naameh, que falou noutro momento da celebração.