Enviado especial ao Vaticano

Ficou para o final o discurso mais duro da cimeira que reúne no Vaticano 190 líderes católicos de todo o mundo, chamados pelo Papa Francisco para debater os abusos sexuais de menores na Igreja Católica. A jornalista mexicana Valentina Alazraki, correspondente da Televisa no Vaticano há 45 anos, falou durante quase uma hora a uma plateia de bispos e cardeais afirmando que a Igreja não tem “filhos de primeira ou segunda divisão” e lamentando que a hierarquia católica insista em considerar que o escândalo dos abusos sexuais é culpa da imprensa. “Os jornalistas não são nem os abusadores nem os encobridores“, atirou Alazraki.

“Para a Igreja não há filhos de primeira ou segunda divisão. Os seus filhos aparentemente mais importantes, como são vocês, bispos e cardeais (não me atrevo a dizer o Papa), não são mais importantes que qualquer menino, menina ou jovem que tenha vivido a tragédia de ser vítima de abuso por parte de um clérigo”, começou por dizer a jornalista mexicana, que já fez mais de 150 viagens apostólicas e cobriu os pontificados de cinco papas. “Perante delitos como os abusos de menores, uma instituição como a Igreja, crê que tem outro caminho para ser fiel a si mesma que não seja o de denunciar esse crime? Tem outro caminho que não seja o de pôr-se ao lado da vítima e não do abusador? Quem é o filho mais débil, mais vulnerável? O sacerdote abusador, o bispo abusador ou encobridor, ou a vítima?”

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Dirigindo-se a 114 presidentes de conferências episcopais — incluindo ao cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, que representa Portugal nesta reunião —, e a vários outros bispos, cardeais e superiores religiosos, Valentina Alazraki desafiou a plateia: “Façam-se uma pergunta. São inimigos dos abusadores e dos encobridores tanto como nós somos? Nós escolhemos de que lado estar. Vocês, fizeram-no de verdade, ou apenas de palavra? Se vocês não se decidem de maneira radical a estar do lado das crianças, das mães, das famílias, da sociedade civil, têm razão em ter medo de nós, porque os jornalistas, que queremos o bem comum, seremos os vossos piores inimigos“.

“Cubro o Vaticano desde há quase 45 anos. Cinco pontificados diferentes, importantíssimos para a vida da Igreja e do mundo, com luzes e sombras. Nestas quatro décadas, vi absolutamente de tudo. Quantas vezes me calhou ouvir que o escândalo dos abusos é ‘culpa da imprensa, que é um complô de certos meios para desacreditar a Igreja, que por trás há poderes ocultos para acabar com esta instituição’! Nós, jornalistas, sabemos que há informadores mais rigorosos que outros, e que há meios mais ou menos dependentes de interesses políticos, ideológicos ou económicos. Mas creio que em nenhum caso se pode culpar os meios de comunicação por revelar ou informar sobre os abusos”, continuou a jornalista mexicana.

Valentina Alazraki lembrou ainda as palavras de Bento XVI em 2010, no avião a caminho de Portugal: “Os abusos contra menores não são fofocas, são crimes. Recordo as palavras do Papa Bento XVI, no voo para Lisboa, quando nos disse que a maior perseguição à Igreja não vem dos inimigos de fora, mas nasce do pecado da Igreja. Gostava que saíssem desta aula com a convicção de que os jornalistas não são nem os abusadores nem os encobridores. A nossa missão é a de exercer e defender um direito, que é o direito a uma informação baseada na verdade, para fazer justiça“.

Bispos, cardeais e outros líderes religiosos católicos estão reunidos no Vaticano para debater os abusos sexuais na Igreja (ALESSANDRA TARANTINO/AFP/Getty Images)

Valentina Alazraki respondeu ainda a outra das principais críticas feitas ao trabalho dos jornalistas — a de que se focam mais na Igreja Católica do que noutras realidades. “Os jornalistas sabem que os abusos não estão circunscritos à Igreja Católica, mas têm de entender que com vocês temos de ser mais rigorosos do que os os outros, por causa do vosso papel moral. Roubar, por exemplo, está mal. Mas se quem rouba é a polícia, parece-nos mais grave, porque é o contrário do que devia haver, que é proteger a comunidade dos ladrões. Se médicos ou enfermeiras envenenam os seus pacientes em vez de os curar, chama-nos mais a atenção porque vai contra a sua ética, o seu código deontológico”, argumentou.

“Vocês sabem que estes abusos têm sido encobertos de forma sistemática, de cima a baixo. Creio que deveriam tomar consciência que quanto mais encobrem, quanto mais são como avestruzes, quanto menos informem os meios de comunicação e, por isso, os fiéis e a opinião pública, maior será o escândalo. Se alguém tem um cancro, não se vai curar escondendo o cancro dos seus familiares e amigos, não será o silêncio que o fará curar, serão os tratamentos mais indicados os que eventualmente evitaram a metástase e alcançarão a cura”, defendeu Valentina Alazraki.

A comunicação e o papel dos media na questão dos abusos sexuais na Igreja Católica tem sido um dos temas mais discutidos ao longo desta cimeira inédita, sobretudo neste terceiro dia, dedicado à transparência. Aos líderes católicos, a jornalista mexicana disse que a Igreja tem de saber gerir a comunicação durante o escândalo dos abusos, para evitar ser cúmplice dos abusadores. “Comunicar é um dever fundamental, porque ao não o fazerem, vocês convertem-se automaticamente em cúmplices dos abusadores. Ao não dar a informação que poderia prevenir que estas pessoas cometessem outros abusos, não estão a dar às crianças, aos jovens e às suas famílias as ferramentas para se defenderem de novos crimes”, disse.

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“Certamente, a transparência tem os seus limites. Por isso, não pretendemos que nos informem de qualquer acusação a um sacerdote. Entendemos que pode e deve haver uma investigação prévia, mas façam-na com celeridade, adaptem-se à lei do país em que vivem e, se estiver previsto, apresentem o caso à justiça civil. Se a acusação se mostrar credível, devem informar sobre o que se passa, o que estão a fazer, devem dizer que afastaram o abusador da sua paróquia ou de onde exercia funções, têm que dizê-lo vocês, tanto nas dioceses como no Vaticano. Às vezes, os comunicados de imprensa da Santa Sé informam sobre uma renúncia sem explicar as razões. Há sacerdotes que saem a correr e informam os fiéis de que estavam doentes. A notícia da renúncia de um abusador deve ser dada com clareza, de forma explícita”, lamentou Valentina Alazraki.

A jornalista deixou ainda aos participantes da cimeira três conselhos concretos: pôr as vítimas em primeiro lugar, deixar-se aconselhar por especialistas e profissionalizar os serviços de comunicação da Igreja.

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Os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo, superiores de congregações religiosas e outros líderes de estruturas nacionais da Igreja Católica estão reunidos desde quinta-feira no Vaticano para debater a responsabilidade da Igreja Católica na proteção dos menores, numa altura em que a Igreja se debate com o crescente escândalo dos abusos sexuais de menores. Este sábado foi o último dia dos trabalhos. Após o discurso de Valentina Alazraki, os participantes participaram numa celebração penitencial na sala régia do Palácio Apostólico, no Vaticano. Este domingo, está prevista a celebração de uma missa conclusiva do encontro, no final da qual o Papa Francisco irá fazer um discurso que será o documento final resultante do encontro.