A 26 de maio de 1993, o Olímpico de Munique recebia a primeira final da novíssima Liga dos Campeões. O poderoso AC Milan de Van Basten, Baresi, Rijkaard e Maldini encontrava um Marselha que tinha sido finalista vencido dois anos antes — perdeu com o Estrela Vermelha de Belgrado nas grandes penalidades — e que queria juntar a glória europeia aos sucessos a nível interno. Os franceses acabaram por vencer com um golo solitário de Boli no final da primeira parte e Didier Deschamps e Fabian Barthez tornaram-se o capitão e o guarda-redes mais novos a sagrar-se campeões europeus até então. O Marselha, tetracampeão francês entre 1988 e 1992, tinha a Europa na mão. Até que tudo se descobriu.

Bernard Tapie, político francês e ministro do Urbanismo do primeiro-ministro Pierre Bérégovoy durante a presidência de François Mitterrand, foi presidente do Marselha entre 1986 e 1994. Adepto do clube desde criança, decidiu pegar no Marselha pelo topo e torná-lo uma potência francesa e europeia. Para isso, apontou o alvo à conquista da então Taça dos Campeões Europeus e depois da Liga dos Campeões e formou um plantel dedicado a isso mesmo, com as contratações de jogadores como Jean-Pierre Papin, Deschamps, Desailly, Rudi Völler e Cantona. No banco técnico, muniu-se das mesmas elevadas exigências e entre os onze treinadores que passaram pelo Marselha na era Tapie estão Beckenbauer, Gérard Gili e Raymond Goethals. Papin foi mesmo o nome maior dessa golden age do Marselha e acabou por vencer a Bola de Ouro em 1991, sendo ainda hoje o único elemento da história do clube a ser considerado o melhor jogador do mundo.

O fim — e a derrocada — desse período de excecional sucesso do Marselha começou ainda em 1993, o mesmo ano em que se tornou o primeiro clube francês de sempre a sagrar-se campeão europeu. O Valenciennes, clube modesto da segunda metade da Liga francesa, acusou o Marselha no geral e Bernard Tapie em particular de viciar o resultado do jogo entre as duas equipas: o objetivo, dizia o Valenciennes, seria poupar os principais jogadores para os compromissos europeus mas garantir, ainda assim, a vitória. O caso foi exposto por Jacques Glassmann, Jorge Burruchaga e Christophe Robert, três jogadores do Valenciennes, que acusaram Jean-Jacques Eydelie, médio do Marselha (e atual treinador do Limoges), de os contactar e pedir, a troco de uma elevada recompensa monetária, que perdessem e não lesionassem nenhum jogador adversário. O caso, denominado nas instâncias judiciais como l’affaire VA-OM, impediu que o Marselha participasse nas competições europeias do ano seguinte, despromoveu a equipa à segunda Liga francesa e ainda retirou o título francês de 1992/93 — que completaria o pentacampeonato e que acabou por não ser atribuído, já que o PSG, segundo classificado, recusou ser considerado campeão.

A equipa que venceu o AC Milan na final de Munique: Barthez, Sauzée, Desailly, Völler, Boli; Angloma, Pelé, Deschamps, Boksic, Jean-Jacques Eydelie e Éric Di Meco

Bernard Tapie foi forçado a demitir-se, condenado a dois anos de prisão e multado em 20 mil francos. Glassmann, Burruchaga e Robert foram condenados a penas de prisão — assim como Eydelie, ainda que a do médio do Marselha tenha sido pena suspensa. Tapie só cumpriu seis meses da pena e o escândalo de corrupção foi ficando esquecido com o avançar dos anos 90 e o início do novo milénio — e abafado por outros, como o da Bundesliga ou o que envolveu a Juventus. O Marselha só voltou à principal Liga francesa em 1996, com Rolland Courbis enquanto treinador e Laurent Blanc já no plantel, e a passagem de Bernard Tapie pela presidência do clube foi continuamente e propositadamente esquecida pelas direções que se sucederam. Mas, no final da passada semana, voltou a parecer 1993 no Stade Vélodrome.

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Marc Fratani, braço direito de Tapie durante 30 anos — na política, nos negócios e no futebol –, deu uma longa entrevista ao Le Monde e decidiu contar os segredos mais bem escondidos do sucesso do Marselha no final dos anos 80 e início dos 90. Fratani, que cortou ligações com Tapie em 2016, foi o homem mais próximo do empresário durante três décadas e assistiu, da primeira fila, aos crimes que o então presidente do clube francês cometeu para colocar o Marselha no topo do futebol mundial. Mais do que corrupção e suborno a jogadores e árbitros, Fratani colocou em cima da mesa uma medida chocante e que deixou o futebol francês surpreendido.

“Tapie é uma pessoa que não tem limites. Para chegar a algum lado é capaz de qualquer coisa. Uma vez participei no suborno a um árbitro. Foi num jogo com o PSG em Paris. No dia seguinte, encontrei-me com ele no local discreto que tínhamos combinado. Naquele jogo, os jogadores do PSG foram desestabilizados com o uso de uma droga psicotrópica: Haldol. Usámos seringas ultra finas, e o produto foi injetado numas garrafas de água que sabíamos que eles iam beber no balneário”, revelou Marc Fratani ao jornal francês, que ainda assim não esconde que durante muitos anos foi “fascinado” por Tapie e pela sua “força e convicção”, tendo passado 30 anos a “protegê-lo, por todos os meios, de todos aqueles que lhe queriam fazer mal”.

Bernard Tapie em setembro de 2018. O antigo empresário, político e dirigente desportivo continua a participar em conferências e mesas redondas, principalmente sobre empreendedorismo

Fratani contou ainda um outro episódio desse mesmo período, desta feita antes de um jogo com o Rennes. Baltazar (que passou também pelo FC Porto) e Pascal Rousseau, avançado e guarda-redes do Rennes, adormeceram na viagem entre Marignane e Marselha depois de terem bebido um sumo de laranja no hotel que, de acordo com as declarações dos dois jogadores depois do jogo, tinha um “sabor estranho” e deixou-os com um “cansaço extremo”. O Rennes acabou por perder 5-1 em casa do Marselha e Baltazar e Rousseau, os dois jogadores mais importantes da equipa, cometeram vários erros ao longo do jogo.

Bernard Tapie, atualmente com 76 anos, respondeu rapidamente às acusações de Marc Fratani e disse ao antigo colaborador que para comprovar a história que contou ao Le Monde terá de “dizer o nome” do árbitro do jogo com o PSG que mencionou — ignorando as restantes alegações.”Há idiotas que vão querer acreditar nisto porque lhes agrada, há outras pessoas que terão consciência. Se ele comprou um árbitro, deve dizer o seu nome, dizer onde, quando e quem lhe deu o dinheiro…não tenho mais comentários a fazer”, afirmou o antigo presidente do Marselha.

Numa altura em que o Marselha está no quarto lugar da Liga francesa — a 25 pontos do líder PSG mas a cinco do Lyon, que é terceiro — mas já foi eliminado da Taça de França, da Taça da Liga francesa e da Liga Europa (onde ficou no último lugar do Grupo H com apenas um ponto conquistado), o clube volta a ser abalado pela memória do período mais bem sucedido da história a nível desportivo mas que é também a época mais negra de sempre a nível legal, institucional e reputacional. Afastado do Marselha há mais de 20 anos, Bernard Tapie continua a provocar ondas de choque à volta do clube que foi campeão pela última vez em 2009/10.