Enviada especial a Luanda
Foi quando despiu pela primeira vez as vestes de Presidente da República, para assumir as de professor, que o professor-presidente teve o primeiro banho de multidão na viagem a Luanda. A “aula” foi na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, onde Marcelo já chegou a dar umas aulas antes de ser Presidente, e o auditório foi pequeno para todos os curiosos.
À saída, dezenas de pessoas acotovelavam-se no corredor estreito (mas revestido a passadeira vermelha) que separava a porta do auditório da porta da rua. Não eram mais do que 100 metros, mas Marcelo demorou a percorrê-los. De resto, a história já é conhecida: selfies, abraços, beijinhos, Marcelo a salvar jovens que estavam a ser barrados pelos braços dos seguranças e que tudo o que queriam era um minuto de fama ao lado do Presidente português, registado no ecrã do seu telemóvel.
Marcelo deu-lhes o minuto que queriam, e seguiu viagem. Antes, deixou recados a diversos setores durante uma sessão de perguntas/respostas naquela faculdade onde já lecionou. Foi aí que confessou que há certas preocupações que um Presidente tem de levar para o “travesseiro”, na medida em que — por mais que quisesse — não tem poder legislativo nem executivo. O tema era violência doméstica, e Marcelo afirmou que Portugal pode estar perante uma “escalada” de violência doméstica muito devido à “cultura dominante em setores-chave” que encara a violência doméstica não como “violência” mas sim como “tradição”.
Lembrando que Portugal assinala esta quinta-feira um dia de luto nacional como protesto pelo facto de, nos primeiros meses deste ano, se ter assistido àquilo que parece ser uma “escalada em termos de violência doméstica”, Marcelo fez uma crítica velada a um setor-chave, que pode ser entendido como o setor judicial, e, mais concretamente, o juiz Neto de Moura, que esta quarta-feira foi transferido para uma secção cível do tribunal do Porto por ter estado debaixo de fogo nos casos que julgou de violência de homens contra mulheres. “É bom que haja leis que previnam e reprimam estes crimes, e que haja instituições que o façam, mas a cultura cívica é muito importante. Porque se a cultura dominante for, em setores-chave, uma cultura que crie condições e que ache natural a violência doméstica, achando que é tradição, que é uma realidade justificada, então não conseguiremos dar passos significativos”, disse.
Numa pergunta de outro aluno, Marcelo falou sobre democracia: o sistema político que, por mais incipiente que seja, será sempre melhor do que qualquer ditadura “quase perfeita”. “Nas democracias mais elaboradas e experientes do mundo encontramos sempre contestações, dúvidas e exigências em termos garantias de direitos, portanto é uma luta sem fim”, admitiu, sugerindo, no entanto, que as instituições democráticas saibam adaptar-se à mudança e “olhem para o longo prazo”. Sim, é “mais difícil governar hoje do que era antigamente”, admitiu num aparente diálogo com políticos que não se encontravam na sala (à exceção dos deputados portugueses que ali estavam em representação parlamentar).
“Hoje em dia há um grande desafio que é o da democracia mediática e instantânea, e a democracia representativa não foi desenhada para responder a estes desafios”, disse.
Para o fim, uma admissão de frustração. Instado a sugerir dicas de direito constitucional para Angola, Marcelo teve de se conter. Nem sobre Angola nem sobre Portugal. Apesar de estar ali a fazer de professor, não podia esquecer-se que era Presidente. “O poder de rever a Constituição é dos deputados, e um Presidente não pode ter angústias ou reservas dessas, tem de promulgar tal como está”, começou por dizer à jovem que o questionara. Para a seguir retificar: bom, angústias pode ter, não as pode é assumir publicamente. “Fica para desabafar só para o travesseiro”, disse.