A Nova Zelândia, um pequeno país com menos de cinco milhões de habitantes e baixos índices de violência, foi abalada na passada sexta-feira. Um homem de 28 anos, sozinho, entrou em duas mesquitas fortemente armado e disparou. Ao todo, matou pelo menos 50 pessoas e feriu outras 34. A sua motivação era apenas uma: matar o maior número de muçulmanos possível. Na sequência da tragédia, os neo-zelandeses uniram-se em múltiplas vigílias e outras demonstrações de solidariedade com a comunidade islâmica do país. Os exemplos de apoio multiplicam-se: dos políticos aos cidadãos comuns, passando pelos líderes religiosos, são várias as declarações dos que defendem união e solidariedade. Mas, num país que se olha agora ao espelho, também há quem se pergunte: havia sinais de que um ataque destes poderia acontecer? Na comunidade islâmica neo-zelandesa, há quem pense que sim.
Por todo o país, sucederam-se os eventos de solidariedade ao longo do fim-de-semana. Só em Wellington, capital do país, o principal evento reuniu cerca de 12 mil pessoas e contou com a participação de vários políticos e representantes de organizações como a Federação Islâmica. “A razão pela qual nós mudámos dos EUA para aqui foi porque queríamos um país seguro e agora de repente questionamo-nos: ‘Tomámos a decisão certa?'”, questionava-se Hussain Suleman, um dos muçulmanos presentes na vigília, à Rádio NZ. Muitos muçulmanos juntaram-se à vigília, como algumas jovens que transportavam cartazes com a frase: “A Nova Zelândia é a nossa casa”.
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Além dos eventos públicos, vários neo-zelandeses agiram de muitas formas para tentar demonstrar solidariedade com a comunidade, enviando flores e mensagens de apoio às mesquitas, como contou à NPR Zulfiqar Haider Butt, presidente da Associação de Muçulmanos de Manawatu: “Todo o dia, no dia a seguir ao ataque, recebi telefonemas e mensagens. As pessoas deixaram cartões no portão da mesquita, flores e… Os não-muçulmanos têm aparecido a chorar e a pedir desculpa por este ato. Temos recebido muito apoio”, afirmou.
Também a recolha de fundos para apoiar as vítimas e as suas famílias prossegue. Ao todo, só numa das páginas oficiais de recolha, já é possível ver que foram doados quase seis milhões de dólares.
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Do hijab da primeira-ministra aos gestos dos cidadãos anónimos
A primeira-ministra neo-zelandesa, Jacinda Ardern, protagonizou outro momento de solidariedade com a comunidade islâmica local que sensibilizou muitos muçulmanos. Em visita à comunidade muçulmana de Christchurch no sábado, um dia depois do ataque, Ardern apareceu vestida com a cabeça coberta por um hijab, o véu tradicional usado por várias muçulmanas, e declarou que o país estava “unido no luto”. Uma das fotos dessa visita tornou-se popular nas redes sociais, com muitos muçulmanos a elogiarem o gesto. Kirk Hargreaves, o fotógrafo da autarquia local que apanhou Ardern de rosto consternado, declarou ao Sydney Morning Herald ter percebido de imediato que esta seria uma imagem marcante.
É de certa forma uma foto religiosa, com uma mistura de simbolismo religioso. Parece um vitral, há o hijab muçulmano e há cores da religião hindu. É uma foto universal”, afirmou.
Among the many faces & stories I’ll remember from the #ChristChurchMosque tragedy, I will never forget Prime Minister Jacinda Ardern. What a remarkable leader. Not only did she ban assault weapons following the incident, she’s offered financial assistance to the victims familes. pic.twitter.com/LT7cCqjPhK
— Faiza N. Ali (@faiza_n_ali) March 17, 2019
Outros gestos de solidariedade de cidadãos anónimos tornaram-se notícia. Como o do casal de um subúrbio de Christchurch que decidiu fazer uma recolha de comida halal para doar aos familiares das vítimas que esperavam por notícias nos hospitais. “Sentimo-nos muito felizes por poder ajudar”, declarou o marido Yoti Ioannou à Agência France-Press. “Vamos trabalhar para continuar a ajudar de forma consistente as famílias.”
Já Lianess Howard, uma jovem de Wellington, ofereceu outro tipo de ajuda. Num post de Facebook que se tornou rapidamente popular, propôs o seguinte: “Se alguma mulher muçulmana em Wellington se sentir insegura neste momento: eu posso caminhar contigo, posso esperar na paragem de autocarro contigo, posso sentar-me no autocarro contigo ou acompanhar-te enquanto vais às compras.”
Também os líderes de outras religiões se mostraram solidários com a comunidade islâmica. Os bispos católicos da Nova Zelândia partilharam um comunicado — assinado com as palavras paz e salaam (paz em árabe) — onde dizem estar ao lado dos “irmãos e irmãs muçulmanos” e onde reafirmaram estar a rezar “não só pela cura dos feridos e pelo conforto aos que estão de luto, mas para que haja um alcance renovado de uns aos outros através do amor, da bondade e das boas-vindas”.
E o apoio vem até do estrangeiro. A comunidade judaica de Pittsburgh (EUA), por exemplo, decidiu fazer uma recolha de donativos para ajudar a comunidade islâmica de Christchurch. A sinagoga de Pittsburgh foi alvo de um ataque anti-semita no ano passado que matou 11 pessoas. “Infelizmente estamos demasiado familiarizados com o efeito devastador que um tiroteio em massa tem numa comunidade religiosa”, declarou Meryl Ainsman, presidente da Federação Judaica local.
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Muçulmanos relatam incidentes de violência e discriminação
Enquanto as demonstrações de solidariedade se multiplicam, muitos na comunidade islâmica da Nova Zelândia dizem que este é um bom momento para se fazer também uma reflexão sobre a situação dos muçulmanos no país. Apesar de ser uma comunidade bastante pequena — corresponde a cerca de 46 mil pessoas, ou seja, pouco mais de 1% da população —, este é um grupo em crescimento. E, de acordo com os relatos que surgiram nas últimas horas, os incidentes de discriminação a que a comunidade é sujeita podem ser mais comuns do que a maioria da população pensa.
Chlöe Swarbrick, porta-voz política dos Verdes, aproveitou para partilhar o testemunho de um amigo muçulmano, Mukseet, onde este conta os vários incidentes de discriminação que enfrentou ao longo da vida na Nova Zelândia: “Tive de manter-me calmo enquanto a minha mãe foi assediada na rua e nas lojas por usar o seu hijab. Ajudei a limpar suásticas da parede da minha mesquita local e tive de ir à minha caixa do correio e encontrar mensagens a dizer para eu voltar ao sítio de onde tinha vindo”, pode ler-se em parte do testemunho de Mukseet.
Também Anjun Rahman, do Conselho de Mulheres Islâmicas, fez declarações neste sentido. Referindo-se à mesquita que frequenta, Rahman destaca que já houve, por exemplo, “um tijolo atirado pela janela” que só não atingiu ninguém “por sorte”. “Tivemos de tapar as janelas porque as pessoas passavam de carro e atiravam coisas. Tivemos de pôr uma vedação de segurança à volta do edifício. Por isso sim, isto é a Nova Zelândia”, afirmou.
Num artigo de opinião que publicou em vários media neo-zelandeses, Rahman aproveitou para relembrar que o Conselho de Mulheres Islâmicas se reuniu em 2017 com o gabinete do primeiro-ministro e do Governo para expor as preocupações da comunidade.
A minha comunidade quer e precisa de responsabilização. Preciso que aqueles servidores públicos se sentem à nossa frente, de nós que lhes apresentámos tudo aquilo em março de 2017, e nos digam o que foi feito desde então”, escreve a ativista. “Precisamos de respostas.”
Também Susan Devoy, ex-comissária para as Relações Raciais da Comissão para os Direitos Humanos (um órgão estatal independente do Governo), escreveu um artigo de opinião onde sublinha que os muçulmanos “enfrentam ódio, abuso e extremistas” na Nova Zelândia há anos. “Muitos de nós preparam os almoços dos nossos filhos antes de os mandarmos para a escola. Os meus amigos muçulmanos preparam os filhos para o ódio assim que saírem da porta da frente”, escreve a ex-comissária, que destaca que um bom passo inicial seria o registo de crimes de ódio. O seu levantamento, até agora, não é feito de forma oficial.
Jaimee Stuart, investigadora de Psicologia da Universidade de Victoria, destacou à Rádio NZ que no seu estudo mais recente foi possível concluir que os muçulmanos são o grupo religioso pior classificado pelos neo-zelandeses. “Simbolicamente, estamos bem com o multiculturalismo, mas não gostamos do multiculturalismo de forma realista”, afirma a investigadora.
Douglas Pratt, professor de Estudos Religiosos na Universidade de Auckland, explica que a cultura de tolerância nacional tem mascarado os movimentos de supremacia branca no país que existem, “mas que são tratados como uma aberração estranha”. Estatisticamente são, por enquanto, minoritários: “É certo que podemos encontrar expressões de antipatia contra os muçulmanos”, declarou o professor à televisão canadiana CBC. “Há racismo residual, de uma forma ou de outra, nos últimos anos. Mas tem sido relativamente pouco, de forma que escapou ao radar.” Agora, tornou-se evidente da forma mais trágica, com a morte de 50 pessoas.