(Este artigo foi publicado, originalmente, no dia 1 de abril, depois da primeira volta das eleições presidenciais na Ucrânia. Voltamos a publicá-lo agora a propósito das suspeitas de pressão de Donald Trump para investigar os negócios do filho de Joe Biden.)
“Votei numa pessoa muito digna e qualificada.” Não fossem os microfones da legião de jornalistas a amplificar as palavras do comediante Volodymyr Zelensky e seria impossível perceber o que dizia o, na altura, ainda candidato (e, depois, Presidente da Ucrânia), após colocar o seu voto na urna nas eleições presidenciais.
A 31 de março, dia da primeira volta das eleições, Zelensky quase não conseguia chegar à cabine de voto. Não que o tentassem impedir de exercer o seu direito constitucional, numa Ucrânia onde a corrupção cresce e onde o conflito com a Rússia parece não ter fim, mas porque o comediante ucraniano, que saiu vitorioso da segunda volta das presidenciais contra o chefe de Estado que estava no poder, estava rodeado de jornalistas com câmaras e de populares com smartphones.
A popularidade de Zelensky, e que há muito se espelhava nas audiências dos seus programas televisivos, teve reflexos também no número de votos que angariou. Com 41 anos de idade e zero de experiência política, Ze — como lhe chamam os seus apoiantes — encostou os opositores a um canto.
Foi o grande vencedor da primeira volta, com 30% das cruzes nos boletins, enquanto que Petro Poroshenko, atual presidente do país, não passou dos 18,5%. Yulia Timoshenko, antiga primeira-ministra e que cumpriu dois anos de uma pena de prisão de sete, por abuso de poder, ficou pelos 14% de votos e sem lugar na segunda volta, o que a levou a falar em fraude eleitoral.
Vocês estão prestes a começar uma nova vida: sem corrupção, sem subornos. Uma vida num novo país, um país de sonho. Acreditamos que tudo vai correr bem e que vamos ganhar, mas são os ucranianos que têm de decidir”, afirmou Zelensky, citados por vários órgãos de comunicação social ucranianos.
Na segunda volta, a 21 de abril, a vitória seria confirmada: Zelensky teve 73,2% dos votos, contra os 25,3% de Petro Poroshenko. Tomou posse como presidente da Ucrânia a 3 de junho.
A vitória nas eleições foi notícia em todo o mundo e agora Zelensky voltou a ser, por causa do caso que ameaça Donald Trump e que deu origem a um processo formal de impeachment. O presidente ucraniano terá sido chantageado pelo homólogo norte-americano: Trump pediu a Ze “o favor” de mandar investigar o filho de Joe Biden — o democrata mais bem colocado, até agora, para disputar as eleições de 2020 —, ao mesmo tempo que congelava vários milhões de euros de ajuda à Ucrânia.
Ze, o candidato que já foi Presidente de faz-de-conta
Já Poroshenko ocupava o Palácio de Mariyinsky, quando Ze começou a “liderar” o país, novembro de 2015, na série televisiva “O Servo do Povo”.
Antes de se tornar presidente de faz-de-conta — e já chegaremos a essa história — Zelensky tinha um longo percurso na televisão, mas, primeiro, vamos recuar ainda mais na história de Volodymyr.
A 25 de janeiro de 1975, no seio de uma família judia, Volodymyr nascia no sudeste da Ucrânia, em Kryvyi Rih, um centro industrial com cerca de 600 mil habitantes. Os pais nada tinham a ver com o meio artístico: Oleksandr Zelensky era um matemático, professor responsável pelo departamento de cibernética do Instituto de Economia de Kryvyi Rih e a mãe, Rimma, era engenheira. Os números faziam parte do quotidiano da família.
Ainda antes de entrar para a escola primária, Volodymyr mudou-se com os pais para a Mongólia, devido a compromissos profissionais do senhor Zelensky, e por lá aprenderia a língua mongol. Por falta de prática, hoje o candidato a Presidente, que é casado e pais de dois filhos, já não sabe dizer uma palavra daquela língua estrangeira.
Em criança, Ze sonhava ser guarda fronteiriço. Mais tarde, desejou ser diplomata. Acabaria por estudar Direito na sua cidade natal, mas não praticou advocacia um único dia da sua vida. Foi quando decidiu participar no programa KVN, pela equipa ucraniana, que a sua vida mudou para sempre.
Para perceber a dimensão de participar neste programa, é preciso entendê-lo. O KVN — siglas de Klub Vesyólykh i Nakhódchivykh que, numa tradução livre, traduz-se por Clube das Pessoas Divertidas e Inventivas — é uma competição internacional de humor que foi transmitida pela primeira vez em 1961, ainda no tempo da União Soviética. Os participantes, normalmente universitários, competem entre si dando respostas engraçadas e apresentando sketches humorísticos.
O programa, que se mantém no ar ainda hoje, chegou a ser banido da televisão russa, mas regressou em 1986 durante a Perestroika. Pela competição, já passaram equipas dos EUA, de Israel ou da Alemanha. E, claro, a equipa de Zelensky.
Ainda nos seus tempos de universidade, com 17 anos, Volodymyr juntou-se ao grupo ucraniano do KVN. Acabaria por criar a sua própria equipa, o Kvartal 95, cujo sucesso o levaria a fazer digressões pelos países que compunham a antiga União Soviética. Desentendimentos com o KVN, levaram a que o Kvartal 95 se autonomizasse: a equipa que divertia os ucranianos com pequenos ensaios de stand-up ao estilo do Leste, passou a produzir programas televisivos. Estava dado o primeiro grande passo para que Ze se tornasse um dos mais conceituados e bem sucedidos empresários da TV ucraniana.
A curva foi em sentido ascendente. Escreveu programas, apresentou-os e entrou na versão ucraniana do “Dançando com as Estrelas”. Mas há 10 anos, a participação na sua primeira longa metragem valeu a Zelensky o reconhecimento de uma fatia mais abrangente do público.
https://www.youtube.com/watch?v=IWQ7noi6i00
“Lyubov v Bolshom Gorode” (tradução livre: “Amor na Grande Cidade”, de 2009) era uma comédia romântica, cheia de estrelas queridas dos ucranianos e que teve sucesso de bilheteiras suficiente para chegar à terceira sequela. As participações no grande ecrã continuaram, aumentando a influência de Zelenski de dia para dia, enquanto que a sua série “Swat”, de 2008, ia atingindo audiências tão elevadas que chegou à sua sétima temporada.
Pelo meio, a arte imitava a vida. Em 2015, a sua produtora Kvartal 95 tinha a ideia para “O Servo do Povo”. Vasily Goloborodko, um professor de história de Kiev, torna-se famoso depois de um acesso de raiva. Enquanto o professor critica tudo o que se passa à sua volta, sem poupar nos palavrões, um estudante filma-o. A partir daí, as redes sociais fazem o resto e Goloborodko, interpretado por Zelensky, é eleito Presidente da Ucrânia. A série tornou-se o programa com maior audiência do país e em dezembro de 2017 a equipa do Kvartal 95 registou o nome no Ministério da Justiça como partido político.
A ideia, na altura, era impedir que terceiros usassem o nome com propósitos políticos cínicos. Hoje, foi pelo partido político “O Servo do Povo” que Zelensky se tornou presidente a sério.
Foi um ano depois, poucos minutos antes da meia-noite, que Volodymyr Zelensky se posicionou frente às câmaras do canal 1+1 para anunciar a sua candidatura a presidente. No dia seguinte, no mesmo canal, estreava-se a terceira temporada de “O Servo do Povo”.
Uma campanha pouco tradicional
“Aqui não houve campanha política”, disse Zelensky, poucos dias antes de os ucranianos irem a votos, dirigindo-se a uma multidão de apoiantes, num recinto cheio, onde cabem cerca de 30 mil pessoas. “Para que é que havia de haver campanha? Vocês são todos pessoas espertas, sabem o que fazer no dia 31 de março, certo?”
A campanha de Ze foi tudo menos convencional. Fugiu das grandes entrevistas, dos debates com os seus opositores e focou toda a campanha nas redes sociais, em especial no Youtube, e na luta contra a corrupção. Mesmos as suas intervenções junto do eleitorado estiveram mais próximas de espetáculos de comédia do que comícios partidários.
A atmosfera aqui é tal que se o Petro [Poroshenko] estivesse aqui, provavelmente também votaria em mim”, disse num desses momentos, transmitido em streaming no Facebook e citado pelo Financial Times.
Pelo caminho, a terceira temporada de “O Servo do Povo” estreou-se em cima da data da votação presidencial — provavelmente fazendo mais pela eleição de Zelensky do que qualquer tempo de antena tradicional.
Enquanto analistas e a classe política ucraniana foram desvalorizando Ze e as suas hipótese de vir a liderar o país, as sondagens continuavam a pô-lo no topo das preferências dos eleitores. E nem mesmo as acusações de que mais não será do que um fantoche do oligarca ucraniano Igor Kolomoyski, que detém 70% do canal 1+1, fizeram o povo mudar o sentido de voto.
A verdade é que ninguém sabe exatamente de onde veio o dinheiro que sustentou a campanha de Ze e que o próprio tem dito sempre que foi suportada por amigos. Porém, ressalve-se que a família está longe de ter problemas financeiros: segundo a imprensa ucraniana são proprietários de cinco apartamentos em Kiev e uma casa de campo.
Na altura, questionado sobre futuros encontros com líderes mundiais, Zelensky não parecia estar intimidado. Sobre Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, disse de forma lacónica que “são ambos a mesma coisa”, não temendo futuras reuniões. Sobre Vladimir Putin, presidente da Rússia, com quem já disse que só se encontrará depois de a Crimeia ser devolvida à Ucrânia, foi mais incisivo: “Se me encontrar com Putin, dir-lhe-ei: ‘Finalmente devolveu-nos os nossos territórios. Mas quanto é que está preparado para pagar pela sua ocupação?’”