Enviado especial a Pequim

Do Palácio de Belém à Cidade Proibida vão quase 10 mil quilómetros de distância. E numa visita, este domingo de manhã, pela história da China imperial, Marcelo Rebelo de Sousa quis deixar claro que também politicamente a distância há-de andar mais ou menos por aí: “Ninguém em democracia quer ser Imperador. Não faz o meu género. E acabou mal, como sabem”, disse aos jornalistas a meio do passeio pela zona principal daquela que é hoje uma das mais importantes atrações turísticas da cidade.

Do poder absoluto à rígida estratificação social, Marcelo não encontra pontos em comum com este período do Império do Meio. E seguramente, sendo quem é e tendo o estilo que tem, também não os encontrará na invisibilidade e silêncio cultivados por sucessivos imperadores chineses. Mas isso não quer dizer que o Presidente esteja descansado com a situação oposta, com a qual os imperadores nunca tiveram de lidar, o excesso de exposição mediática: “Há hoje meios de acesso instantâneo ao que se passa na liderança do poder político que não havia naquela altura nem no começo das democracias. A dúvida agora é até onde isso irá ao longo do século XXI. Parará algures? Ou com formas instantâneas de comunicação social ao acesso de qualquer pessoa, tudo o que é o exercício do poder político e tudo o que respeita aos titulares do poder político passa a ser conhecido instantaneamente em todo o mundo?”

Sim, leu bem. O rei das selfies e do comentário diário, tem andado a refletir sobre os possíveis efeitos negativos que uma presença constante nos media pode ter na democracia: “Deixa de ser só eleitoral, de tantos em tantos anos, e passa a ser mais participativa por um lado, e por outro mais mediática, muito mais preocupada com o controlo do poder político. E isso, tem exigências muito grandes, tem vantagens e também tem algumas desvantagens”.

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O risco à grande exposição do poder político, diz Marcelo, é o de “haver porventura cada vez menos disponíveis para isso. Porque obriga o próprio e todos os que o rodeiam a pagar um preço. Por outro lado, significa também um escrutínio e um controlo do poder político muito mais apertado, o que é oposto ao que se passava aqui no Império, como pudemos verificar.”

As novas ideias chinesas para investir em Portugal

Estas declarações foram feitas aos jornalistas logo a seguir ao Presidente da República ter assinado, numa mesa decorada com o amarelo, cor do Imperador, o livro de honra:

“Saúdo em nome do povo português a China e presto homenagem à sua história e ao seu povo  recordando muitos séculos de pacífica convivência com Portugal”

Estávamos perto do fim da curta visita. Marcelo tinha chegado à hora marcada e entrou por um portão reservado apenas a altas individualidades, que dá acesso direto à zona principal da Cidade Proibida, onde se realizavam as cerimónias mais importantes do calendário chinês.

Atravessado o portão, percebe-se que não foi por acaso que a Cidade ganhou esse nome. Espaço de trabalho e residência do Imperador, o complexo muralhado a toda a volta era vedado à população, e por isso proibido. Construído há 600 anos, ocupa perto de um milhão de metros quadrados e tem cerca de 900 edifícios dentro das muralhas. Para além do Imperador, da Imperatriz e respetiva família, viviam aqui dentro as concubinas, os eunucos, os oficiais do governo e os conselheiros do Imperador.

Um deles, Xu Risheng, nome chinês do missionário jesuíta Tomás Pereira que nasceu perto de Famalicão em 1946, e que durante quase 40 anos integrou a corte do Imperador Kangxi, da dinastia Qing. Pereira foi mais do que um especialista estrangeiro, tendo sido chamado a Pequim por causa dos seus conhecimentos em música e astronomia. Dirigiu o Observatório Astronómico, ensinou matemática ao Imperador, divulgou a música ocidental na China e chegou a ter um papel de consultor político e diplomático.

Se o Presidente procurava pontos de identificação, aqui está um exemplo das relações antigas e próximas entre Portugal e a China (e do trabalho dos jesuítas missionários que, em Pequim, construiram a igreja de São José, onde à tarde Marcelo Rebelo de Sousa foi à missa).

É nessa frente que o Presidente português quer trabalhar nestes dias de viagem. Não só na componente de visita de Estado que começa segunda-feira, mas também nos encontros que tem promovido com agentes económicos e culturais. Esta noite tem jantar marcado com os principais exportadores nacionais para a China, o almoço foi com agentes de divulgação da língua e cultura portuguesas no território. E na noite anterior tinha recebido os principais investidores chineses a quem pediu mais presença, mas agora na terreno: “Todos falaram à vontade em frente de todos, o que não é habitual. E havia já algumas ideias que têm a ver com fábricas, indústrias, o tal investimento da economia real”.

Marcelo agradece aos “que estiveram quando outros, que teriam podido estar, não estiveram” e pede investimentos na “economia real”

Marcelo garante que recebeu apenas feedback positivo: “Estão satisfeitos com a experiência portuguesa, pensam que a economia soube ultrapassar a fase crítica e entrar numa fase de cruzeiro, o que é importante para investidores. Por outro lado estão muito empenhados em manter a sua presença e alargá-la a terceiros países, em conjunto com Portugal, em países de língua oficial portuguesa”.

O Presidente do povo (e da Harmonia Suprema)

Por esta altura, o Presidente português tinha já passado pelo Pavilhão da Paz Assegurada, onde se faziam banquetes e se recebiam reis estrangeiros, e pelo Pavilhão da Harmonia Suprema, onde se destaca o trono de talha dourada onde se sentava o Imperador. É o maior de todos, e entre os integrantes da comitiva presidencial chega a comentar-se: “Quase tão grande como o Palácio de Belém!”

Não é por isso de estranhar que os jornalistas tenham perguntado a Marcelo se alguma sala no Palácio de Belém se poderia chamar “Harmonia Suprema”.

“Todas. Com todos os presidentes. E provavelmente até com os monarcas também. Pense na primeira República, o esforço de harmonia que presidiu à atividade de inúmeros responsáveis que por lá passaram. E depois em democracia.”

E eis que, quando o assunto começa a chegar-se à fronteira da política nacional, Marcelo Rebelo de Sousa encontra aqui uma súbita semelhança com a Cidade Proibida. Os jornalistas ainda insistem, dizendo que um Imperador não tinha que negociar tanto como um Presidente, mas Marcelo evita a rasteira: “Não tinha que negociar internamente porque tinha o poder absoluto. Isso em democracia não acontece, há a chamada separação de poderes. Mas tinha que negociar com outros povos”.

A ouvi-lo com atenção (e com algum divertimento) estava o povo socialista, aqui representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, pelo ministro do Ambiente e pelo secretário de Estado da Internacionalização. Ao contrário do que tinha acontecido noutro monumento emblemático da cultura chinesa, desta vez Augusto Santos Silva manteve-se em silêncio durante quase toda a visita. Mas quando Marcelo Rebelo de Sousa comentou que os jornalistas “querem saber tudo” porque “não viveram no tempo do imperador, onde ele só dizia o que queria e só falava três vezes por ano”, Santos Silva não resistiu: “Mas o Imperador vivia numa grande tristeza. Não podia tirar selfies”.

Marcelo ou não ouviu, ou não quis responder. Pelo menos, não por palavras. O percurso da viagem estava vedado para a passagem da comitiva presidencial e por todos os lados, junto às faixas de limitação, amontoavam-se os turistas asiáticos de câmaras apontadas (A Cidade Proibida recebe anualmente cerca de 16 milhões de turistas). À saída, e antes de entrar para o carro, Marcelo viu-os e, tal como faz em Portugal, foi ter com o povo, para cumprimentar e acenar. Houve aplausos e gritos de contentamento, embora ninguém soubesse quem ele era. Mas tanta proximidade com o povo, imperador não era de certeza.