Entrar na fábrica dos gelados Santini não é bem aquilo que uma pessoa pode imaginar. Histórias como a do mágico Willy Wonka e da sua inacreditável Fábrica de Chocolate podem fazer crer que sítios deste género, onde nascem guloseimas, são casas onde reina a purpurina e o mirabolante, mas não, a porta de entrada desta “unidade de produção” é igual à de qualquer outra fábrica e apesar de já lá dentro podermos encontrar pinturas de frutas sorridentes espalhadas pelas paredes, a verdade é que é tudo bastante cinzento, branco e metálico. Isto tudo não quer dizer, porém, que não seja uma experiência especial conhecer por dentro este autêntico ícone “gelado” que vai celebrar o seu 70.º aniversário já no próximo sábado, 4 de maio, com um “dia aberto” em que os interessados vão poder visitar todos os recantos da fábrica.

Foi em 1949 que Attilio Santini, o homem simpático e sorridente que perguntava sempre “va bene?” aos seus clientes, abriu a sua primeira gelataria no Tamariz, Estoril, e foi dessa pequena casa onde milhares de pessoas se sentaram — e lambuzaram –, de reis e rainhas a estrelas de cinema e televisão, que nasceu o ícone gastronómico que ainda hoje faz parte de um sem fim de tradições familiares. Muitos já devem ter provado sabores como a nata, o morango ou a marabunta, mas será que conhece mesmo bem esta guloseima que vai sempre nas malas de viagem de Marcelo Rebelo de Sousa quando este vai passar as férias de verão  ao Algarve (é o próprio Presidente da República que o admite)? Pode ser que sim, pode ser que não. Por via das dúvidas aqui ficam cinco pormenores curiosos que vai poder ver (e provar, atenção) in loco se alinhar — terá de pagar cinco euros (mini-cone incluído) neste “open day” que a marca tem planeado. Não se esqueça de fazer reserva em geral@santini.pt (só se aceitam grupos até dez pessoas). Entretanto, tome nota: vêm aí dois novos espaços que ainda este não vão inaugurar, algures na Grande Lisboa, e que se juntarão aos nove que já existem.

Attilio Santini na loja do Tamariz, a primeira do universo da marca.

É muita fruta

Uma das primeiras paragens desta visita passa pela zona de cargas e descargas por onde entra toda a fruta fresca que será transformada em sorbet. Sim, fruta fresca, leu bem. Nesta casa, desde o primeiro dia no Tamariz que só se utiliza  “fruta de mesa” fresca, entregue todas as segundas-feiras. Rosário Ramalheira, a Diretora de Produção da Santini, explica que esta casa não compra “fruta de refugo ou de categoria industrial”, somente aquela que qualquer um de nós poderia comprar num mercado ou frutaria. Obviamente que não podem, literalmente, ir ao mercado todos os dias comprar a matéria-prima que vão transformar — afinal, podem chegar a consumir perto de uma tonelada de fruta por dia –, mas não é por isso que têm menos pruridos no que toca à proveniência daquilo que consomem: “Diariamente recebemos convites/desafios de produtores que querem trabalhar connosco, mas eles têm sempre de garantir, à priori, todo um conjunto de características específicas como a qualidade dos solos, da água, se usam pesticidas… Tudo de forma a garantir que estamos a comprar fruta o mais fresca possível”, conta a responsável.

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Só usam fruta nacional (menos a tropical como a manga ou maracujá, por exemplo), proveniente de zonas como o Oeste, o Dão, o Algarve, o Alentejo e Ribatejo. A juntar a estes rigorosos controlos de qualidade há ainda o teste que se faz a quase todas as peças de fruta que entram nesta fábrica em Carcavelos, a medição do grau Brix, valor definido através de um refratómetro que indica o nível de doçura de cada ingrediente. “Aqui só entram os melhores!”, garante Rosário antes de prosseguirmos o tour. Já agora, caso esteja curioso, saiba (como exemplo) que no pico do verão são transformados 300 quilos de morangos por dia, 150 quilos de limões e 200 quilos de meloa.

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Fresco, fresquinho

Por muito que possa estar bom tempo no próximo sábado, se for uma das pessoas que vai visitar a fábrica da Santini leve um casaco consigo: Toda a unidade de produção é mantida a uma temperatura que oscila entre os 17º e os 18º, para evitar um ambiente propício à contaminação cruzada. Quase todos os funcionários andam com mais uma camada de roupa. “Começam às oito, saem às cinco e podem chegar a lavar entre 400 a 500 tubos [nome dado aos recipientes de onde são servidos os gelados e que têm uma capacidade de 6,5l]!”, afirma Rosário. O fresco que se sente na pele é importante, claro, mas o que se prova nos gelados é essencial.

A primeira loja dos Gelados Santini, no Tamariz, Estoril.

No ponto anterior já deu para perceber que a importância de detalhes como este em relação à fruta (nem sequer é pasteurizada, para que não se percam propriedades organolépticas) é essencial, mas a verdade é que esta é uma preocupação transversal. “Não colocamos nenhum tipo de aditivo alimentar nos nossos produtos, nem mesmo os naturais. Usamos leite fresco, nata fresca, vagens de baunilha e não extrato… O nosso caramelo é feito à moda antiga, com açúcar derretido em tachos de cobre e até a menta do nosso sabor “Depois das oito” cumpre esses requisitos de frescura. Compramos no Cantinho das Aromáticas e é infusionada, para garantir um sabor mais intenso.” O mais curioso é que tudo isto é feito assim… Há 70 anos. Não é por acaso que já na altura do senhor Attilio Santini havia letreiros nas lojas que diziam “Todos os produtos elaborados nesta casa são totalmente puros e admitem-se todas as espécies de análises“.

A infelicidade dos diabéticos

A chamada “Sala da Receita” é onde os ingredientes já semi-transformados são misturados de acordo com as receitas secretas da família Santini. É nessa divisão forrada a batedoras em inox, com um grande “Il Gelati Piu Fini Del Mondo” (um dos mantras da marca) que Rosário explica “ser muito difícil” a Santini conseguir ter um gelado próprio para diabéticos. Porquê? É simples: “Qualquer açúcar que não seja a sacarose é considerado aditivo alimentar, como nós não utilizamos nenhum, apenas o açúcar normal, é só ele que garante ser possível emulsionar o produto [o que lhe dá a cremosidade]. Se não o fizermos ficamos só com um granizado”, conta a Diretora de Produção. Esta realidade acontece com todos os sabores da marca mas, já agora, é interessante explicar que dentro dessa palete quase inesgotável existem apenas quatro variedades base: os sorbets, os com base de nata, leite e baunilha.

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Os primeiros já foram explicados, a tal mistura simples de fruta em polpa/sumo com açúcar. Os com base de nata dão origem “a sabores mais densos” como a marabunta (uma espécie de stracciatella), o coco ou a amêndoa torrone; as variantes com base de leite são normalmente “mais soft” e funcionam como sustentação de sabores como doce de leite, ovo, iogurte, queijo mascarpone… No fundo, é como Rosário diz: “Quando o ingrediente, por si só, já tem alguma consistência, usamos uma base de leite para que não fique muito pesado.” Finalmente, a base de baunilha (a única que leva ovo e é pasteurizada), que é a preferida para sabores de frutos secos — todos eles nascem de uma pasta feita dos mesmos, torrados, que são moídos num moinho de pedra por um parceiro da marca geladeira — porque lhes confere mais “cremosidade”.

Sabores à maneira (e à medida)

A guia é perentória: “se não é possível arranjar matéria-prima de qualidade, não se faz esse sabor”, outro dos princípios base desta casa. O facto de ser tudo feito numa relativa pequena escala, com uma enorme componente de manufatura, leva a que a capacidade de produção desta casa seja sempre inferior à de outras que usam processos mais industriais e produtos menos frescos. A própria dimensão da infra-estrutura chega a ser condicionante, especialmente no verão, época mais intensa, de maior procura e que torna impossível haver tanta variedade de sabores ou inovação. “No inverno, como temos menos volume de produção, conseguimos ter mais variedade de sabores, alguns deles mais fora da caixa. No verão temos de nos ficar pelos sabores mais clássicos e sazonais — essencialmente com fruta fresca.”

A Família Real espanhola estava entre os clientes assíduos da Santini quando vivia no Estoril.

Apesar de todos estes limites, há sempre exceções, quer isto dizer que mediante negociação entre a Santini e o cliente é possível encomendar sabores específicos. Marta de Botton, representante da família que hoje detêm 50% deste negócio (conquistou essa posição em 2009, partilha-a com a família Santini, personificada pelo neto do fundador, Eduardo Santini), explica que esta porta está sempre aberta, apesar de requerer sempre um grande processo de negociação já que é preciso definir pormenores como qual o sabor específico que o cliente quer? Ele fornece a matéria-prima base ou não? Aquilo que pretende choca com as bases identitárias do produto Santini? A quantidade justifica os eventuais constrangimentos na produção? Tudo isto são questões a ter em conta que tanto podem fazer oscilar o “sim” ou o “não” como justificam a flutuação do preço. Apesar disso, Marta conta ainda que já fizeram gelados de sabores como azeite, tremoço, tinta de choco e até citronela, “para o restaurante Insólito”. Há quem faça pedidos para casamentos ou eventos de empresas, por exemplo, sendo que em ambos os casos até pode estar em cima da mesa haver uma espécie de carrinho de onde se possa servir os sabores pedidos.

A fábrica das bolachas e outras iguarias

“Cone ou copo?” — não há questão mais icónica que esta quando se fala de uma gelataria. O Santini não é diferente e é a primeira opção dessa pergunta que também tem toda uma história interessante. Apesar de estarmos na unidade de  Carcavelos, esta não é a única que produz materiais Santini, há ainda a chamada “Fábrica da Bolacha”, em São João do Estoril. Dedicada ao que próprio nome indica, é neste espaço que se fabricam todas as bolachas que servem de cone, por exemplo, mas também aquelas que podem ter um rebordo de chocolate e que são espetadas, se o cliente assim quiser, numas belas bolas de gelado. Rosário explica que a receita utilizada nos dias de hoje é a mesma que Attilio Santini criou em 1949 e desde então nunca mudou. Apesar de “durante 4o anos” estas formas crocantes terem sido feitas por uma empresa parceira, a produção regressou à alçada da casa principal, sendo produzidos, atualmente, cerca de cinco mil cones por dia, todos eles feitos à mão. “A bolacha é cozinhada numa máquina de waffles e quando ainda está mole é colocada nuns moldes para ser fechada”, explica. É nesta mesma casa que também são feitas as tartes de amêndoa que há relativamente pouco tempo passaram a figurar no menu desta gelataria. Quem supervisiona a sua feitura é a chefe da unidade de produção, Nazaré Santos, que se limita a seguir a receita criada pelo filho, João. Isto leva-nos à última etapa da visita à fábrica da Santini de Carcavelos.

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“Olá, eu chamo-me João Santos e sou o responsável pela pastelaria”, explica um jovem de pano amarrado à cabeça e farda branca. João já fez de tudo nesta empresa, até condutor da carrinha de entregas já foi, mas êxitos como a tal torta de amêndoa atualmente confecionada pela sua mãe encaminharam-no para este cargo de maior responsabilidade. É também das suas mãos que nasceu grande parte de outro sucesso recente da marca, os bombons recheados com gelado. Rosário, que continuou a acompanhar a visita, não hesita ao dizer que este projeto foi um dos mais desafiantes da empresa e demorou “quase dois anos” a ser desenvolvido. “Estamos a misturar duas coisas — chocolate e gelado — que são quase como azeite e água”, conta João como forma de realçar a principal dificuldade associada à sua tarefa (também supervisiona a feitura dos bolos de gelado feitos a pedido e dos mini-bolos). “Os bombons são feitos em quatro fases”, afirma. Primeiro é preciso “fazer as cabeças, para se conseguir distinguir os sabores [cada cor corresponde a um dos nove sabores disponíveis]”, e só depois é que são feitas “as capas envolventes”, o corpo da guloseima. Os dois processos que se seguem “têm de ser feitos ao mesmo tempo” e consistem no enchimento do chocolate (gelado depositado através de sacos de pasteleiro) e no tapar do mesmo, para que nada saia cá para fora.