“Ama Romanta – Uma Utopia Que Fazia Discos” arranca com uma entrevista a Anamar sobre o primeiro ano da editora criada por João Peste e fala sobre a forma como ambos são a mesma coisa e misturam-se. As imagens são de época e fazem parte de vídeos que Manuel Mozos e Maria João Guerreiro (irmã de João Peste) filmaram para serem mostrados na festa do primeiro aniversário da Ama Romanta. Vasco Bação e Carlos Mendes fazem bom uso deles. Há uma inocência e um poder de época das imagens que mostram a importância de desenterrar os arquivos e criar algo diferente a partir deles. E é este um dos principais motivos de interessa para este tipo de produção documental.
Numa época de “tendências”, é razoável assumir que os documentários musicais realizados em Portugal estão enquadrados no espírito dos tempos. Os festivais de cinema são uma boa plataforma para serem mostrados e publicitados; a produção destas obras tem tido um crescimento positivo nos últimos anos, tanto para televisão como para cinema (embora, raramente, tenham estreia comercial). Esqueça-se a mania da “tendência” e perceba-se esta realidade de falar da música portuguesa, passado e presente, como uma verdadeira necessidade.
A secção IndieMusic desta edição do IndieLisboa oferece muito material para reflexão. Algumas das obras selecionadas para o festival expressam, mais do que o objeto que retratam, a necessidade e a urgência de criar história através dos arquivos audiovisuais disponíveis.
[um resumo do que pode ser visto na secção IndieMusic:]
A pop que estava guardada
Um dos grandes exemplos é a projeção de três documentários de Edgar Pêra, diretamente dos seus “Arquivos Kino-Pop”, que representam um conjunto de treze episódios que irá para o ar em breve no Canal 180. Passarão no festival (8 de Maio, São Jorge – Sala Manoel de Oliveira, 19:00) os episódios 1, 4 e 13, que dizem respeito a Pedro Ayres Magalhães, Manuel João Vieira & Os Irmãos Catita e Farinha Master. As imagens são todas dos arquivos pessoais de Edgar Pêra que, há vários anos, procurava uma forma de os disponibilizar ao público e de os manter vivos. Após várias tentativas falhadas, surgiu a oportunidade de passarem no Canal 180 que, segundo Edgar Pêra, “é um canal independente e fazia todo o sentido fazermos tudo dentro dessa estética.”
Esta primeira série dos seus “Arquivos Kino-Pop”, dedicada aos anos 1980, nasce da vontade do realizador de partilhar os seus arquivos, um projeto que começou por iniciativa própria: “O exemplo das bandas DIY foi uma inspiração. No cinema, na altura, as pessoas estavam à espera dos concursos, ninguém pensava em pegar numa câmara e fazer filmes por iniciativa própria. E havia uma grande desconsideração pela câmara de vídeo nos anos 1980. No Rock Rendez-Vous perguntavam sempre quando é que eu levava uma câmara a sério”. A persistência compensou. Edgar Pêra tem agora um extenso arquivo de imagem de música portuguesa que percorre várias décadas. Os “Arquivos Kino-Pop” nascem de uma vontade de partilhar: “Quero partilhar os arquivos, não quis estar a complicar com a montagem. É para as pessoas puderem ver e consultar mais tarde online”.
Como ama uma editora
Vasco Bação, 26 anos, foi espicaçado pelo seu amigo Carlos Mendes para fazer um documentário sobre a Ama Romanta, “Ama Romanta – Uma Utopia Que Fazia Discos” (9 de Maio, São Jorge – Sala Manoel de Oliveira, 19:00), uma editora independente que foi um milagre criado por João Peste na segunda metade da década de 1980. Entre os depoimentos do presente e as imagens de arquivo há um resgate de um momento muito específico da música portuguesa. Vasco Bação fala-nos precisamente disso: “Havia uma perspetiva crítica e um pensamento sobre a altura que se vivia que hoje já não existe. Não oiço e nem consigo imaginar os artistas da pop portuguesa atual a terem um discurso, a serem críticos e a falarem sobre a ética da mesma forma. O que é curioso, porque eu acho que os problemas éticos se mantêm: se a música é ou não é comercial, para quem estamos a fazer a música? Ou o próprio discurso sobe a ditadura cultural, o João Peste acha que ainda existe, e que hoje é pior do que no passado.”
Ouvir os músicos a colocarem estas questões (através dos vídeos de Manuel Mozos) ou ver atuações de Tózé Ferreira, Sei Miguel ou Telectu (imagens do arquivo de Vítor Rua) criam uma importante ponte com o presente, sobre a necessidade de reflexão na cultura atual – musical, mas não só; portuguesa, mas não só – e a importância de preservar estes arquivos: são imagens únicas de momentos que não se voltarão a repetir. Claro que o passado não se volta a repetir, mas estes arquivos preservam uma identidade e uma memória do rock, da cultura popular portuguesa, que corre o risco de ser apagada pela ausência de uma metodologia de preservação.
Eles, elas, o punk e o rock
“Um Punk Chamado Ribas” (6 de Maio, São Jorge – Sala Manoel de Oliveira, 19:00), de Paulo Antunes, e “Ela É Uma Música” (10 de Maio, São Jorge – Sala Manoel de Oliveira, 19:00), de Francisca Marvão, são mais dois dos filmes que criam um discurso sobre o passado do rock português. O primeiro documenta a vida de João Ribas, um filme que esteve em produção durante quatro anos e que entrevista uma série de figuras que conviveram de perto com um dos principais dinamizadores do punk em Portugal, líder de bandas como os Ku de Judas, Tara Perdida ou Os Censurados.
[trailer de “Um Punk Chamado Ribas”:]
Para Paulo Antunes, “é um filme de homenagem, pode ser a minha costela de fã a falar. Queria mostrar o João Ribas a quem não o conhece, porque eu acho que ele foi extremamente importante para o rock português. Queria mostrar a sua influência e a sua importância”.
“Ela é uma Música” não se concentra numa figura mas em várias: as mulheres que fizeram o rock português desde a década de 1950 até à atualidade. Parte de testemunhos vivos para desenterrar o passado e contar uma história que nem sempre é palpável devido à falsa assunção de que o rock é um universo maioritariamente masculino. Ora adivinhem? Não é. O documentário de Francisca Marvão cria uma ponte entre passado e presente para mostrar exatamente isso.
[trailer de “Ela é uma Música”:]
Como dança uma cidade
Rita Maia e Vasco Viana trazem uma proposta bem diferente com “Batida de Lisboa” (4 de Maio, São Jorge – Sala Manoel de Oliveira, 19:00 e 6 de Maio, Culturgest – Pequeno Auditório, 10:30), sobre uma música que existe na capital e nos seus subúrbios e que, segundo Rita Maia, “não poderia existir noutro sítio que não aqui”. “Batida de Lisboa” é um encontro de diferentes gerações (antigos músicos e produtores jovens) e de diferentes origens (Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé) sobre um género musical que tem atravessado fronteiras.
[trailer de “Batida de Lisboa”:]
Rita Maia, que reside em Londres há quinze anos, e que viveu entre Londres e Lisboa ao longo dos últimos três anos para filmar “Batida de Lisboa”, quis fazer o documentário “que mostrasse o que se passa agora em Lisboa. A ideia surgiu com o meu trabalho de DJ. Vivo em Londres há quinze anos mas sempre mantive contacto com o que se passa cá, fui acompanhando a evolução desta música. Como começou a ter interessa lá fora, muitas pessoas começaram a contactar-me por informações e assumiam algumas coisas que não era verdade. E eu fartei-me disso, de dizer que não é bem isso. Por isso quis fazer um documentário de dentro e de fora, de alguém que vive em Londres, que está de fora, mas que cresceu aqui e conhece um bocado da realidade. É uma peça documental do que se passa agora em Lisboa e, por isso, não quisemos que existisse voz-off ou um background histórico. É um documentário de música, o resto aparece porque faz parte disso, da música e das pessoas que fazem a música.”