Agustina Bessa-Luís, um dos nomes maiores da literatura portuguesa contemporânea, morreu esta segunda-feira, aos 96 anos. A notícia, avançada pela TSF, foi depois confirmada oficialmente pelo Círculo Literário Agustina Bessa-Luís, uma associação sem fins lucrativos, criada pela família da autora, que pretende ser lugar de encontro de leitores e admiradores da sua obra.
Agustina estava afastada da vida pública há vários anos por motivos de doença. A sua obra, maioritariamente inacessível no mercado, começou a ser republicada em 2017 pela Relógio d’Água, que na altura a descreveu como “uma das mais vastas e importantes da nossa literatura”. Durante a sua longa carreira literária, a escritora editou romances, peças de teatro, contos infantis e ensaios biográficos. Sobre os seus livros, disse um dia: “É uma confissão espontânea que coloco no papel”.
O velório da autora irá decorrer na terça-feira, na Sé Catedral do Porto, a partir das 10h30. De acordo com a informação disponibilizada pelo Círculo Literário Agustina Bessa-Luís, será também aí que, pelas 16h, serão celebradas as Exéquias Solenes, presididas por D. Manuel Linda, Bispo do Porto. Agustina será depois sepultada no cemitério do Peso da Régua, apenas na presença da família. O Governo decretou um dia de luto nacional para esta terça-feira.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já reagiu à morte da autora de A Sibila. Numa nota divulgada no site da Presidência, Marcelo declarou que “há personalidades que nenhumas palavras podem descrever no que foram e no que significaram para todos nós. Agustina Bessa-Luís é uma dessas personalidades”.
“Como criadora, como cidadã, como retrato da força telúrica de um povo e da profunda ligação entre as nossas raízes e os tempos presentes e vindouros. De ‘antes quebrar do que torcer’ testemunhou, com o rigor inexcedível da sua escrita, nunca corrigida, o fim de um Portugal e o nascimento de outro. Um e outro feitos do Portugal eterno. E é a esse Portugal eterno que ela pertence“, afirmou o Presidente, que se curva “perante o seu génio e expressa aos seus familiares as mais sentidas condolências”.
A ministra da Cultura lamentou a morte de Agustina Bessa-Luís, “autora de uma obra tantas vezes virada para o passado mas sempre contemporânea, sempre presente, marcou a escrita em português a partir dos anos 50, inaugurando um novo espaço ficcional, à imagem de outras grandes mulheres e que, em conjunto com ela, revolucionaram radicalmente a prosa em português, como Maria Velho da Costa ou Maria Gabriel Llansol”. Num comunicado em que a longa carreira da escritora, Graça Fonseca descreveu “o legado de Agustina” como “vasto, composto por personagens, visões da história, lugares e, acima de tudo, um percurso pessoal e autoral únicos e exemplares”.
“Voltamos sempre ao local de partida”
Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa nasceu a 15 de outubro de 1922 em Vila Meã, no município de Amarante. O seu pai, o empresário Arthur Teixeira de Bessa, era gerente do Casino da Póvoa de Varzim (um dos mais antigos de Portugal) e a sua mãe, Laura Jurado Ferreira, tinha origem espanhola e mau feitio. Foi naquela zona de Amarante que Agustina passou a infância, rodeada pelos livros da biblioteca do avô Lourenço e por um ambiente e paisagem que haveriam de marcar fortemente a sua obra.
Aprendeu a ler aos quatro anos, com a professora D. Inês, “uma mistura de mulher de letras e bailarina de music-hall“, que se deslocava até à propriedade da Maia, onde então a família vivia, para dar lições ao irmão de Agustina, José Artur. Esse irmão, o único que tinha, não lhe fazia grande companhia. “Ser irmã dum único irmão é muito solitário”, confessou na sua autobiografia. Por isso, cedo descobriu nos livros uma verdadeira companhia. “Quando aprendi a ler, no mundo fez-se luz e passei a compreender tudo.”
Apesar de ter ficado conhecida como escritora, o primeiro amor de Agustina foi o cinema. Quando era pequena o pai tinha um cinema no Porto (o Jardim Passos Manuel, que depois deu lugar ao Coliseu do Porto). Arthur Bessa, tinha feito fortuna no Brasil, onde passou 25 anos. De volta a Portugal, comprou “uma parte da Rua do Ouvidor”. “Eram tempos airosos de fantasia para quem se fazia ao mundo”, disse na autobiografia O Livro de Agustina, publicado pela Guerra & Paz.
A família vivia ainda em Águas Santas, na Maia, e Agustina costumava ir todas as quintas-feiras ao cinema do Porto. Era o pai que a levava. “E deixava-me em liberdade”, contou em 2003 a Anabela Mota Ribeiro.
“Havia um café-concerto, uma sala de exposições, um jardim, onde se projetava cinema no Verão. Foi esse enamoramento da imagem, antes da escrita, que tive como campo de descoberta.”
Anos depois, mudaram-se para a Póvoa de Varzim, onde a autora frequentou o colégio das Doroteias e passou a adolescência. Foi na escola que lhe surgiu o amor pela escrita. A segunda paixão de Agustina. “Descobri-me escritora muito mais tarde”, confessou a Anabela Mota Ribeiro. “Fazia redações na escola como uma futura escritora: com imaginação, com gosto de transformar, de encontrar esse reino da palavra que era fabuloso e impossível de ignorar, que fazia parte de mim.”
Se o gosto pela palavra foi importante para se se orientar enquanto escritora, o gosto por ouvir também o foi. Oriunda de uma família rural, desde cedo que Agustina Bessa-Luís se habituou a escutar histórias em torno da lareira. No fim do dia, “as pessoas reuniam-se e contavam o que se passava durante o dia e não só”.
“Depois vinham as histórias do passado, aquelas histórias que as mulheres sabem tão bem recolher e embelezar. Foi o primeiro encontro com a narrativa, essas histórias das mulheres, sobretudo as mulheres.”
E isso foi algo que lhe ficou — as memórias que tanta vez lhe serviram de inspiração. Em todas as obras de Agustina há um pouco de si, da sua infância. A vocação, porém, parece ter sido só sua. A mãe Laura lia pouco e o pai Arthur “não era de todo letrado”. “Sabia assinar o nome dele e escrever uma carta, com erros” e pouco mais do que isso. Preferia o jogo, uma das suas grandes paixões (senão mesmo a maior), a quase tudo o resto, mas “mas a verdade é que gostava de ler”.
“Gostava de livros de aventuras, romances de capa e espada, quando não fazia paciências. Desgostava-o muito eu não ter talento nenhum, nenhum para as cartas. Eu detestava as cartas, para mim não tinham interesse absolutamente nenhum. Um grande jogador, o Francisco Sousa Tavares, marido de Sophia de Mello Breyner, um dia perguntou-me: ‘A Agustina não joga?’. E eu disse assim: ‘Jogo com pessoas'”, contou a Anabela Mota Ribeiro.
Esse “jogo com pessoas” era um “dom natural”. “Nasci escritora e tenho o gosto da escrita. Depois vem a relação com o público e com todos estes fantasmas que são as memórias”, disse em entrevista Público em 2004.
Lia cada vez mais. Viciou-se na leitura, como ela própria dizia. Com o passar dos anos, Emilio Salgari e Júlio Verne foram sendo substituídos pela Madame Bovary. Agustina Bessa-Luís estava a crescer e a literatura crescia com ela. A francesa era a sua favorita, e Alexandre Dumas e Victor Hugo os autores de que mais gostava. “Como se podia escrever assim?”, interrogou em O Livro de Agustina. “Era um milagre, uma criação do mundo.”
A terceira paixão da escritora foi talvez o marido, Alberto Luís, com quem se casou em 1945. Mudou-se para Coimbra e estreou-se como romancista três anos depois, com a novela Mundo Fechado, mantendo desde então um ritmo frenético de publicação que poucos escritores portugueses conseguiram igualar. Mandou o livro “aos escritores mais famosos” — Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Miguel Torga e Teixeira de Pascoaes. Todos lhe responderam “com entusiasmo”, talvez prevendo um futuro glorioso para a Agustina Bessa-Luís que ninguém conhecia.
De regresso (definitivo) ao Porto em 1950, editou o primeiro romance, Os Super-Homens, fortemente inspirado pelos dias passados em Coimbra. Foi um “livro meio falhado”, até “pretensioso”. Foi o pai que lho pagou. “Não porque acreditasse muito em mim, mas porque não perdia a ocasião de apostar num provável vencedor.”
Nasce Agustina, a escritora perversa
Foi em 1954, com a publicação de A Sibila, que Agustina se impôs como uma das grandes vozes da literatura portuguesa contemporânea. O sucesso da obra, pela qual recebeu o Prémio Eça de Queirós (atribuído anualmente pelo Secretariado Nacional de Informação, o antigo Secretariado de Propaganda Nacional), não pareceu ter entusiasmado o pai. “Ele pareceu um pouco desiludido. Os jogadores não gostam de ganhar.”
O Prémio Eça de Queirós foi o segundo que recebeu por A Sibila. O primeiro foi atribuído pela editora Guimarães, ao qual concorreu sob o pseudónimo de Stravoguine. Agustina sempre gostou dos autores de língua russa — Gogol, Dostoievski.
“Não tenho entre os escritores russos gente que não convidasse para minha casa, para ouvir e contar histórias, para confiar sentimentos que se balançam no coração”, escreveu na sua autobiografia.
No romance — que segue a história de Quina, a protagonista, natural da zona de Amarante e inspirada na tia de Agustina, Amélia, irmã do seu pai — a autora conjugou o intuitivo e o simbólico, criando uma linguagem narrativa e estilos únicos. Além de autores pós-simbolistas, como Raul Brandão, em A Sibila é ainda possível encontrar influências de Camilo Castelo Branco, escritor por quem Agustina tinha um fascínio particular.
Esse fascínio levou-a a explorar, ao longo dos anos, a herança camiliana a nível dos temas e também da técnica narrativa, escolha que levou Eduardo Lourenço a associá-la à corrente neo-romântica. Ao longo da vida, Agustina dedicou também ao autor de Amor de Perdição vários textos e ensaios (reunidos em livro em 2008, numa edição da Casa das Letras), e incluiu-o como personagem num dos seus romances mais famosos, Fanny Owen.
Publicada em 1979, a obra gira em torno de José Augusto, um homem rico e culto que se apaixona pela inglesa Fanny Owen. O romance serviu de inspiração ao filme Francisca (1981), de Manoel de Oliveira, amigo de Agustina e com quem a escritora trabalhou de perto. A longa metragem foi galardoada com o Grande Prémio do antigo Instituto Português de Cinema (IPC), em 1983.
Manoel de Oliveira adaptou ainda para o cinema muitas outras obras de Agustina Bessa-Luís, como é o caso de Vale Abraão, num filme homónimo de 1993, e As Terras do Risco (a que chamou O Convento), de 1995. Este último contou com a participação dos atores Catherine Deneuve e John Malkovich. Em 1998, realizou ainda Inquietude, inspirado no romance A Mãe de um Rio, tendo recebido o Globo de Ouro para a melhor realização um ano depois.
Além de romances, a autora escreveu também peças de teatro, guiões de televisão, várias biografias romanceadas (de Santo António a Florbela Espanca) e literatura infantil, numa roda-viva de publicações que parecia inesgotável. Incansável, conciliou a atividade literária com muitos outros projetos. Foi membro do Conselho Diretivo da Comunidade Europeia dos Escritores, de 1961 a 1962, e diretora de O Primeiro de Janeiro, um jornal diário portuense, entre 1986 e 1987. Nos anos 90, fez parte da direção do Teatro Nacional de D. Maria II, em Lisboa, e foi membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social.
Recebeu a primeira grande distinção, o grau de Grande-Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada, em 1980. A esta seguiram-se muitas outras: a Medalha de Honra da Cidade do Porto, em 1988, e o grau de Oficial da Ordem das Artes e das Letras de França. A 26 de janeiro de 2006, foi elevada ao grau de Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio.
Ganhou por duas vezes o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE) — em 1980, com O Mosteiro, e em 2001 com O Princípio da Incerteza — Jóia de Família, obra que também foi adaptada para o cinema por Manoel de Oliveira sob o título O Princípio da Incerteza. Em 2004, recebeu o Prémio Vergílio Ferreira (atribuído pela Universidade de Évora) pela sua carreira como ficcionista e o Prémio Camões, o mais alto galardão das Letras portuguesas.
Segundo o júri da 26º edição do Prémio Camões, “a obra de Agustina Bessa-Luís traduz a criação de um universo romanesco de riqueza incomparável que é servido pelas suas excecionais qualidades de prosadora, assim contribuindo para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”.
Agustina tinha 81 anos e mais de 50 livros publicados, um número impressionante dentro do panorama literário português. Na altura, em entrevista ao Público, admitiu que nunca lhe tinha ocorrido que, um dia, pudesse deixar de escrever. “Primeiro, não tenho medo de nada”, afirmou, admitindo que nem da morte se deve ter medo. “Quem tem medo de morrer… enfim, era melhor não nascer.”
“Não adianta nada ter medo ou não da morte. Nós todos morremos, mais tarde ou mais cedo. Ainda não se inventou um ser humano que possa durar 500 anos. Então temos que enfrentar e trabalhar como se fosse sempre o primeiro dia.”
Dois anos depois depois, e pouco depois de terminar a sua última obra, A Ronda da Noite, Agustina Bessa-Luís decidiu retirar-se da vida pública devido a problemas de saúde. Apesar disso, continuou a somar galardões, admitindo sempre, com alguma ousadia, que preferia ganhar o Nobel da Paz ao da Literatura. Para a escritora, era impossível alcançar através da escrita algo de duradouro. Como uma cura para uma doença.
O mais recente, o Prémio Eduardo Lourenço (atribuído pelo Centro de Estudos Ibéricos da Guarda), chegou em 2015 em “reconhecimento da sua grande projeção nacional e internacional”. Para o júri, Agustina, “expoente máximo da cultura portuguesa e ibérica”, “valorizou na sua obra a profunda consonância com a grande tradição cultural ibérica, capaz de integrar e compreender Cervantes e Fernão Mendes Pinto, Nuno Gonçalves e Vélasquez”.