Estamos numa sala de estar aconchegante. Não importa se é a maior sala de espetáculos do país, ou que o sofá desta sala esteja todo ele ocupado com 12 mil pessoas. Também não importa que o homem em palco seja uma das maiores estrelas da história do rock. Durante duas horas e quinze minutos desta quinta-feira, Eddie Vedder foi aquele velho amigo que regressa de tempos a tempos. Podemos ficar anos sem falar — já não ouvimos os seus discos com tanta frequência, maldizemos os últimos, reclamamos o preço do bilhete. Mas quando ele chega, é como se sempre tivesse estado aqui. Na aparelhagem, no streaming, nas memórias das diferentes fases da nossa vida, as boas e as más.
Sentado numa cadeira, rodeado pela sua mala de viagem cheia de autocolantes (entre os quais um do Surf Camp de Ribeira d’Ilhas, onde gosta de surfar quando vem a Portugal), pelas suas guitarras e um ukulele, lê-nos uma cábula em português para nos dizer que é um prazer ver-nos. “Vocês sabem que eu gosto de cá estar.” Sabemos. E por isso devolvemos o afeto. Antes do concerto, um texto no ecrã avisa-nos de que, “dada a intimidade dos concertos a solo de Eddie Vedder”, não é permitido fotografar ou filmar, para que estas distrações não interfiram com a experiência de todos. E quando Vedder desce do palco e fica a centímetros das primeiras filas, não se veem telemóveis no ar, que um pedido de um amigo é mais importante do que uma foto para o Facebook.
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Conhecemo-lo em 1996, nos dois concertos míticos de Pearl Jam em Cascais, revimo-lo mais nove vezes nos 23 anos seguintes. A primeira vez que atuou a solo foi em 2012, no improvável Meo Sudoeste. Havia dúvidas sobre se um concerto tão intimista podia funcionar ali. Mas o seu carisma e talento conquistaram do início ao fim as 30 mil pessoas no recinto.
A experiência correu tão bem que se repetiu em 2014, no festival Super Bock Super Rock. Problemas técnicos por causa da chuva ditaram que o concerto só tivesse começado às duas da manhã. Mas, se havia cansaço, Vedder soube dissipá-lo. Eram 4h20 da manhã quando um homem sozinho num enorme palco, acompanhado por guitarras, ukulele e um punhado de histórias, se despediu, em total ovação. Perto disto, uma arena com 12 mil pessoas é canja.
Desta vez, o vocalista dos Pearl Jam escolheu atuar numa sala fechada, fazendo-se acompanhar por um quarteto de cordas, Red Limo, que abriu sozinho o concerto com uma adaptação belíssima de “Alive” para dois violinos, uma viola de arco e um violoncelo. Da segunda e última vez que tocaram sozinhos, fazendo a transição para o encore, protagonizaram um dos momentos mais especiais do concerto, ao interpretarem “Jeremy”, com o público a tentar acompanhar com as suas vozes. A ideia de diversificar e enriquecer o espetáculo de um homem sozinho em palco era boa. Mas, quando esse homem concentra naturalmente tanta atenção, quer pela sua voz, quer pelo talento nas guitarras que tocou ao longo da noite (e cujo som estava mais alto, sobrepondo-se ao do quarteto), fica a sensação de que o espetáculo não beneficiou tanto do instrumental extra que tinha ao dispor quanto a ideia prometia. Mas beneficiou muito do conforto e da intimidade de uma sala, que um festival nem sempre propicia.
Nesta sala de estar aconchegante, o anfitrião está bem-disposto e com a voz em boa forma. Da mala de viagem, tira algumas das melhores canções do seu disco de estreia a solo, Into The Wild, como “Far Behind”, logo a abrir o alinhamento. Passa por diferentes fases da carreira dos Pearl Jam, como a popular “Just Breathe”. Mas ele sabe que os amigos que tem à sua frente são fiéis, e por isso brinda-os com músicas menos conhecidas, numa sequência de arrepiar.
Primeiro, recupera o cântico “Portugal, Portugal”, que nasceu nos concertos em Cascais, inspirado no público português, e que a cada regresso vai sendo lembrado, com mais ou menos letra, e que é mais um sinal desta longa amizade. Segue para “Drifting”, lado B que os Pearl Jam tocaram apenas cinco vezes ao vivo em toda a sua carreira. A meio, Vedder simula uma conversa telefónica de um surfista que finge ao patrão estar doente, num dia em que as ondas estão demasiado boas. Hoje, nós somos a onda. Chega-nos “I’m Open”, do velhinho No Code, tocada apenas 13 vezes pelos Pearl Jam. Depois “Off He Goes”, sobre isto de ser livre, de estar hoje num sítio e amanhã partir em busca de algo mais — quem sabe uma onda. “Long Nights”, uma estreia nesta digressão, assim como “Satellite”, canção do seu álbum Ukulele Songs, escrita para os conhecidos West Memphis Three, presos injustamente durante 18 anos e entretanto libertados. “Black”, hino dos corações partidos, com a ajuda de Glen Hansard na guitarra acústica, a somar às cordas dos Red Limo. Ainda não recuperamos o fôlego e ouvimos os primeiros acordes de “Parting Ways”, outra daquelas pérolas raras do cancioneiro de Pearl Jam.
A certa altura, Vedder apercebe-se de que há uma criança na segunda-fila que adormeceu encostada ao pai. Brinca a pedir silêncio para não a acordar, depois quer saber o seu nome e fica a saber que a Inês, assim se chama, faz anos. Canta-lhe os parabéns, desce à grade, oferece a cara para receber um beijinho, dá-lhe a sua harmónica e a Inês já está bem desperta, mesmo que seja ainda muito nova para perceber a canção que lhe é oferecida.
Com os adultos, partilha meia dúzia de copos com o vinho tinto que vai bebendo ao longo da noite. Em “Society”, o ecrã gigante mostra uma lareira. Não se ouve o crepitar, mas conseguimos imaginar, tal como já imaginamos que Vedder é um de nós e que somos os melhores amigos, tal como imaginamos que o mundo é todo como esta quinta-feira à noite na Altice Arena, ao som de uma versão de “Imagine”, de John Lennon.
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O concerto termina com uma versão-apelo de Neil Young: “Keep on Rockin’ in the Free World”. As ondas diminuem, o patrão volta a tomar conta dos nossos pensamentos, a Inês vai poder dormir finalmente, a vida em breve vai voltar ao normal, e ainda bem que é assim mas custa sempre mais quando as últimas duas horas roçaram a perfeição. Vedder diz adeus, os instrumentos de cordas começam a ser retirados do palco, a sala de estar esvazia-se de pessoas mas está mais rica de boas memórias.
Alinhamento:
1. Alive (Red Limo sem Eddie Vedder)
2. Far Behind
3. Just Breathe (com Red Limo)
4. Elderly Woman Behind The Counter In A Small Town
5. I Am Mine
6. Immortality
7. Trouble (versão de Cat Stevens)
8. Wishlist/Portugal improv
9. Drifting
10. I’m Open
11. Off He Goes
12. Satellite (com Red Limo)
13. Long Nights (com Glen Hansard no baixo Red Limo)
14. Black (com Glen Hansard na guitarra acústica e Red Limo)
15. Parting Ways
16. Better Man (com versão de “Save It For Later”, de Charley, Cox, Morton, Steele, Wakeling, com Red Limo
17. Lukin
18. Porch
19. Red Limo improv-Jeremy
20. I’m So Tired (versão de Fugazi)
21. People Have The Power (versão de Patti Smith
22. Imagine (versão de John Lennon)
23. Song of Good Hope (canção de Glen Hansard, cantada com o próprio e Red Limo)
24. Smile (com Glen Hansard e Red Limo)
25. Society (com Glen Hansard e Red Limo)
26. Hard Sun (com Glen Hansard e Red Limo)
27. Indifference (20 segundos) e Rockin’ In The Free World (versão de Neil Young, com Glen Hansard e Red Limo)