A seleção de futebol feminino dos Estados Unidos é a mais famosa do mundo. Independentemente do poderio das japonesas, do talento natural das brasileiras, do trabalho das alemãs e da superioridade tática das francesas. As norte-americanas são, e sempre foram desde que a modalidade ganhou um embalo considerável no mundo inteiro, as grandes representantes do futebol feminino. Com este facto, vem uma enorme responsabilidade. A responsabilidade de ser exemplo para os milhões de raparigas à volta do mundo que sonham ser jogadoras de futebol, a responsabilidade de lutar por melhores condições salariais e laborais e a responsabilidade acrescida de não deixar de ser a melhor equipa do mundo. Mesmo que ser a melhor equipa do mundo não signifique ser a equipa que ganha tudo.
Um Mundial que não tem a melhor do mundo e é o mais importante de sempre. Mas porquê?
As diferentes gerações da seleção norte-americana que se sucederam desde 1999, ano do terceiro Mundial de sempre de futebol feminino — organizado e conquistado pelos Estados Unidos e o primeiro a ter um impacto global –, assumiram todos esses papéis de proa na modalidade. Mia Hamm e Kristine Lilly nesse final do século XX, depois Abby Wambach, Hope Solo, Carli Lloyd e Alex Morgan. Pelo meio, foi aparecendo Megan Rapinoe. A jogadora da Califórnia, atualmente com 33 anos, nunca foi propriamente protagonista nem cabeça de série no fenómeno mediático que se tornou a seleção norte-americana: foi sempre parte das equipas vencedoras, sempre fulcral para as conquistas, sempre braço direito de todas as que faziam manchetes. Mas nunca foi a manchete. Tudo isso mudou em setembro de 2016.
Antes de um jogo particular, junto ao banco de suplentes porque não era titular, Rapinoe ajoelhou-se durante o hino nacional dos Estados Unidos. A atitude foi uma manifestação de apoio a Colin Kaepernick, o jogador de futebol americano que semanas antes tinha começado a ajoelhar-se durante o hino, antes do início dos jogos da NFL, em protesto contra a brutalidade policial no país. Na altura, Kaepernick foi duramente criticado por Donald Trump, então ainda apenas candidato pelo Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos — o apoio demonstrado pela jogadora trouxe-lhe críticas e até ondas de choque no interior da U.S Soccer, a Federação que regula o futebol norte-americano, segundo o que contou há poucos dias ao The Players’ Tribune.
“A Federação não me apoiou muito, nem publicamente nem de forma privada. Comecei a ficar de fora das convocatórias. Disseram-me sempre que não estava diretamente relacionado com o facto de me ter ajoelhado. Disseram-me: ‘Não estás no nível em que precisas de estar’. O que era verdade! Estava a voltar de uma lesão grave, não estava no meu melhor, mas a temporada de clubes tinha acabado. A única maneira de eu ficar em forma era jogar com a seleção nacional. Durante cinco meses, não fui convocada e andei um bocado perdida. Diziam-me que tinha de jogar para ficar em forma mas não tinha sítio para jogar. Boa coincidência! Por isso, sim, senti que estava quase a ser banida. Talvez seja duro, mas foi o que senti. Nunca foi explícito, mas como é que posso explicar? Parecia que tinha partido em direção ao pôr do sol e que estava tudo bem”, explicou a avançada, que atualmente representa os Seattle Reign na liga norte-americana.
A demonstração de apoio a Colin Kaepernick trouxe uma vaga de publicidade — nem sempre positiva — inédita a Megan Rapinoe. De repente, tornou-se uma das figuras do Mundial 2015 que os Estados Unidos tinham conquistado antes de Rapinoe se ter ajoelhado, tornou-se uma das figuras do Mundial 2011 que os Estados Unidos perderam na final antes de Rapinoe se ter ajoelhado e tornou-se uma das figuras da geração pós-Mia Hamm e Kristine Lilly que recuperou a mística de 1999 antes de Rapinoe se ter ajoelhado. De um momento para o outro, a jogadora começou a ser reconhecida por tudo aquilo para que tinha contribuído nos anos anteriores — de parte do grupo, Megan Rapinoe passou a ser uma individualidade. E não se sentiu minimamente inibida em aceitar o papel de responsabilidade que até aí tinha sido de Wambach, Solo, Lloyd e Morgan.
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Depois de se tornar uma das caras da Nike e protagonizar um anúncio da marca desportiva ao lado de Cristiano Ronaldo, assumiu a relação com Sue Bird, uma das melhores jogadoras de sempre do basquetebol norte-americano e campeã da WNBA em três ocasiões. Seis anos depois de revelar que era homossexual, em 2018, Rapinoe aceitou posar com Bird para a capa do Body Issue da ESPN — juntas, tornaram-se o primeiro casal homossexual a aparecer na capa da revista e abriram caminho para o convite da Sports Illustrated, a conhecida revista desportiva, que tornou a jogadora de futebol a primeira mulher homossexual a aparecer na edição anual de fatos de banho da publicação.
Em março, a três meses do início do Mundial que atualmente decorre em França, Megan Rapinoe voltou a assumir o protagonismo e a responsabilidade e foi uma das jogadoras da seleção norte-americana que encabeçou o processo colocado pela equipa à própria Federação. No processo, as 28 jogadoras acusam a Federação — o organismo que regula todo o futebol, masculino e feminino, nos Estados Unidos — de anos daquilo a que chamam “discriminação de género institucionalizada”. As queixas da seleção, de acordo com o New York Times, não dizem respeito somente aos salários mas também ao facto de a federação norte-americana controlar onde as jogadoras jogam e com que frequência, a forma como treinam, os tratamentos médicos que recebem e até a maneira como viajam até aos locais dos jogos. A dias do início do Campeonato do Mundo, provavelmente o último em que vai participar e onde é vice-capitã de equipa, Rapinoe levou o protesto de há três anos mais longe e garantiu que não iria cantar o hino nacional nem colocar a mão no peito.
A tomada de ação, além de continuar a ser um protesto contra a brutalidade policial, a discriminação e a desigualdade social, alarga-se agora para um formato de crítica à administração Trump, que a jogadora já atacou publicamente em diversas entrevistas — e que, entretanto, já reagiu. “Não acho que esteja correto ela não cantar”, disse Donald Trump ao The Hill, comentando depois o tema da disparidade salarial entre homens e mulheres no futebol. “Acho que tem muito a ver com a economia. Quer dizer, quem atrai mais dinheiro, de onde vem o dinheiro. Quando há grandes estrelas como o Cristiano Ronaldo…recebem muito dinheiro mas também trazem centenas de milhares de pessoas”, defendeu o presidente dos Estados Unidos. Megan Rapinoe já respondeu e garante que não irá “à m… da Casa Branca” se a seleção norte-americana conquistar o Campeonato do Mundo: até porque acha que não vai ser convidada. “Não. Não vou à Casa Branca. Não vamos ser convidadas. Duvido muito”, atirou a jogadora.
Na segunda-feira, Megan Rapinoe marcou os dois golos que garantiram aos Estados Unidos a vitória frente à seleção espanhola nos oitavos de final do Mundial e a passagem aos quartos, onde as norte-americanas vão encontrar a anfitriã França já esta sexta-feira. Entre o apoio a Colin Kaepernick, as críticas a e de Donald Trump, os títulos conquistados e as polémicas, a avançada de 33 anos deixou de estar na sombra das colegas de equipa para aparecer nas capas das revistas e dos jornais. E, como garantiu ao The Players’ Tribune, está longe de desaparecer. “Não vou partir em direção ao pôr do sol tão facilmente. Quando voltei a ser chamada à seleção no verão passado, senti finalmente que voltei ao meu antigo ‘eu’. Sei que esta pode ser a minha última aventura. Mas não tomo um único dia como garantido. Este continua a ser o trabalho mais fixe do mundo e algo com que sonhei desde que estava nas bancadas no Mundial de 99. Quero muito ganhar mais um Mundial, mais uma parada, mais uma louca after party com os meus amigos e família e toda a gente que torna tudo isto tão especial”, escreveu.