Com o corpo curvado para a frente e olhos presos ao chão, Iuri, 27 anos, só se emocionou quando ouviu a mãe dizer que, dos três filhos, ele foi o único a quem nunca precisou mandar estudar. Licenciado em Contabilidade e Finanças, o marido de Diana Fialho, que está também a ser julgado no Tribunal de Almada por homicídio e profanação de cadáver, chegou a ter notas finais de 20 valores depois de ter sofrido uma depressão nervosa.
Esta segunda sessão do julgamento da morte da professora Amélia foi praticamente toda focada nele, com um punhado de testemunhas a atestaram que era um ótimo rapaz. “Muito dócil e muito meigo”, descreveu a dona da escola de condução onde tirou a carta. Muito “estudioso”, atestou, por seu turno, a bibliotecária do Instituto Politécnico de Setúbal. Um “amigo”, declarou uma colega.
A descrição das testemunhas não explica como poderá Iuri ter cometido um crime hediondo com a companheira Diana Fialho, naquele mês de setembro de 2018. Mas o seu advogado, Alexandre Martins, ainda o tentou através da psiquiatra que o seguiu no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa.
— É possível determinar o estado psicológico em que se encontrava o Iuri?, perguntou o advogado
— Eu só vi o Iuri em 2016, duas vezes, logo nunca poderia determinar qual o estado mental em 2018. Nesta altura ele estava muito deprimido, mas foi medicado, tratado, e deixou a medicação, respondeu a psiquiatra Maria Helena Esteves.
O advogado insistiu várias vezes na questão, para perceber se a depressão profunda que Iuri sofreu, e para a qual foi medicado, poderia ter deixado mazelas no seu estado psicológico. Mas a resposta que queria ouvir não chegou. “Tinha uma depressão intensa. O facto de uma pessoa ter uma depressão não vai justificar tudo o que possa fazer”, justificou a médica, até que o juiz interrompeu. “Não volta a fazer essa pergunta, a testemunha já respondeu várias vezes”, disse, visivelmente irritado o juiz Nuno Salpico,
Seguiu-se o procurador do Ministério Público que fez questão de referir que, apesar da depressão, Iuri acabou por terminar o curso em 2017 com “nota de alto mérito”. Teve notas 18 e dois 20, como mostra o certificado de habilitações. Aliás, a própria mãe do arguido garantiu que ele tem emprego garantido mal seja libertado. E que facilmente se reinsere na sociedade.
O advogado de Iuri insistiu sempre com o coletivo de juízes que o arguido não falaria por estar a ser medicado. “Não consegui falar com a médica do estabelecimento prisional para perceber como está”, alegou durante a manhã. Já no final da sessão, a meio da tarde, o advogado reiterou que Iuri não estava bem psicologicamente e que nem a data sabia dizer. Ainda assim, o juiz arriscou abordá-lo para esclarecer algumas questões que não ficaram claras nos relatórios sociais — e que suscitaram dúvidas dos advogados.
Ao juiz, Iuri Mata acabou por esclarecer, então, que quando estudava ganhava uma bolsa de 250 euros. Já na cadeia não tem ocupação profissional e que é visitado pela mãe, pela tia e pela irmã. Nalguns dias recebe visitas da avó e de um ou outro amigo, como lembrou a mãe em surdina sentada na audiência. Num discurso muito claro disse que, quando acabou o curso, estagiou em dois gabinetes de contabilidade. Não ganhou mais de 100 euros por um mês de estágio. “Antes de conhecer a minha sogra, antes disto tudo trabalhei como lojista”, disse também, sem nunca ser questionado sobre a sua intervenção no crime. Iuri lembrou ainda que trabalhou como operário fabril durante três meses, ainda no ano 2018. Aqui ganhou 350 euros por mês.
Aos esclarecimentos de Iuri, numa voz pausada e calma, seguiram-se os de Diana. A suspeita do homicídio da mãe adotiva levantou-se para responder às questões do juiz, mais uma vez sem tocar nos contornos do crime. Contou que, desde novembro, faz tapetes de Arraiolos na cadeia e que em março fez mesmo um contrato por não ter outros meios de subsistência.
Respondeu também ao juiz que ao longo da sua vida recebeu por duas vezes acompanhamento psiquiátrico: uma delas tinha 14 anos e foi quando a avó, mãe de Amélia, morreu. “Sofri muito porque a relação com a minha avó era muito boa. A minha mãe estava sempre a trabalhar e foi com a minha avó que eu aprendi tudo. A minha avó faleceu praticamente na minha mão”, disse. Aos 18 anos foi-lhe diagnosticada outra depressão. “Na altura não estava a conseguir acabar o curso e tinha a autoestima muito em baixo”, explicou.
Iuri perguntou a amiga da vítima como chegava “às coisas dela”
Antes de serem ouvidas as testemunhas abonatórias de Iuri, esteve em tribunal uma professora que era amiga de Amélia e que acompanhou Diana e Iuri à PSP para formalizar queixa do alegado desaparecimento de Amélia. A testemunha confessou que nos últimos tempos se tinha afastado de Amélia porque o seu comportamento tinha mudado. “Não sei se era pela relação com a filha, se era por motivos de saúde”, disse.
A professora recordou que, naquele domingo, quando apresentaram queixa à polícia, foi Diana quem falou, enquanto Iuri estava ao pé delas e nada dizia. Só fora da esquadra é que ele disse uma frase que ficou presa à sua memória: “Se ela tiver mesmo desaparecido, agora como é que chegamos às coisas dela?”.
A testemunha fez questão de partilhar outra informação que não lhe “sai da cabeça”. Perante o coletivo, e de costas para os arguidos, contou que Amélia adotou Diana porque queria ter alguém a quem deixar os seus bens. “Com que idade foi isso?”, indagou o procurador do Ministério Público. “Penso que foi com 12 anos”. Diana abanou a cabeça negativamente do banco dos réus, foi a única manifestação que teve. Mantendo sempre uma postura calma, quase indiferente ao seu próprio julgamento. Mesmo quando a testemunha disse que mãe e filha se incompatibilizaram e que ela quis mudar o testamento.
Tribunal quer deserdar Diana. Defesa fala de queixas de parte a parte
Este testemunho foi feito logo após o juiz abrir a sessão, com mais de uma hora de atraso, e anunciar uma alteração aos crimes imputados à arguida. O juiz Nuno Salpico comunicou que vai acrescentar à acusação contra Diana Fialho a pena acessória de declaração de indignidade sucessória. Ou seja, o magistrado quer que, caso seja condenada por homicídio e profanação de cadáver, Diana não tenha direito aos bens da mãe. O que tornará a tarefa mais difícil para os familiares que se constituíram assistentes e que lhe pedem , agora, 100 mil euros.
Segundo a lei portuguesa, só é possível deserdar um filho em três casos muito específicos: ter sido condenado por um crime grave e intencional contra o pai ou a mãe, ter sido condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho também contra os pais, ou caso o filho recuse a alimentação dos mesmos. O juiz Nuno Salpico entende que caso seja condenada por homicídio e profanação de cadáver, Diana deve também ser declarada a indignidade sucessória como pena acessória.
Já depois de ouvir as testemunhas, o juiz anunciou que, à tarde, seria ouvida a última testemunha e que seguiram para alegações finais. Os advogados contestaram a rapidez do julgamento, lembrando que tinham feito requerimentos e que ainda se queriam pronunciar sobre o relatório social. “Em termos probatórios nada vale, só valem os relatórios periciais e novas testemunhais”, lembrou Nuno Salpico. Os advogados insistiram que não entendiam a rapidez do julgamento. “O tribunal tem a obrigação de indeferir o que é dilatório. Não vejo necessidade de ver o julgamento ser prolongado por muito mais tempo”, respondeu o juiz presidente.
Entretanto o Ministério Público acrescentou ao processo uma informação já solicitada pela defesa de Diana: as queixas apresentadas na PSP por agressões de Amélia contra a filha e de Diana contra a mãe. Havia queixas de parte a parte. O tribunal, mais uma vez, chamou à atenção para o facto de se tratarem apenas de queixas e não de condenações em tribunal.
O tema voltou à barra já na parte da tarde, em que a sessão começou novamente com atraso. A testemunha que era suposto ser ouvida, uma professora primária de Diana, não foi encontrada ou localizada pela GNR. Mas a defesa da arguida, argumentando que era essencial para o caso, comprometeu-se em tentar encontrá-la até à próxima sessão. Já a defesa de Iuri voltou a lembrar que o julgamento não poderia terminar sem que se pronunciasse sobre os requerimentos que entretanto entraram no processo.
À semelhança da manhã, voltaram a esgrimir-se argumentos entre juiz e advogados sobre a importância dos atos e se valeria a pena atrasar o julgamento por causa deles, dando a entender que em nada influíam na decisão final. “É preciso bom senso”, advertiu o magistrado, que acabou por marcar para sexta-feira, dia 12 de julho, a última sessão de julgamento. Nesse dia ouvir-se-á a testemunha que ninguém encontra, se a advogada a encontrar. E de seguida serão as alegações finais.
Diana deu conta do desaparecimento nas redes sociais depois de a matar
O crime aconteceu em setembro de 2018 e foi descoberto depois de Diana Fialho, filha adotiva de Amélia, ter anunciado via rede social Facebook o desaparecimento da professora. Dizia que a mãe tinha sido vista pela última vez no dia 1 de setembro, sábado, entre as 21h00 e as 22h00. “Avisou que iria sair e desde então que não temos notícias dela. O telemóvel encontra-se desligado e não há meio possível de contacto”, lia-se na publicação.
A forma como a rapariga falou com as autoridades e se desdobrou em entrevistas foi logo considerada suspeita pela Polícia Judiciária que, dias depois, acabaria por relacionar o aparecimento de um cadáver carbonizado com o desaparecimento de Amélia. Diana e o marido foram logo detidos como os principais suspeitos do crime. Ambos viviam na mesma casa de Amélia.
Dois familiares da vítima, a tia Laura Fialho e o primo, constituíram-se assistentes no processo e pedem aos alegados homicidas uma indemnização de 100 mil euros. Na primeira sessão foram ouvidas uma dezena de testemunhas, entre elas os investigadores da PJ que descreveram como encontraram no apartamento de Amélia roupa com sangue e lixívia.