Quando decidiu mudar-se de Londres para Lisboa, no final de 2014, Clara Armand-Delille não sabia se ia ficar pela capital portuguesa “durante três meses, três anos ou 30 anos”. Foi, nas suas palavras, “um salto de fé”, mas a intuição e o desejo de uma mudança na vida profissional falaram mais alto e acabou por dar o próximo passo. Clara, que tem nacionalidade americana e francesa, deixou uma vida de quatro anos nos escritórios da Google em Londres — onde trabalhava na parte da comunicação — e mais quatro anos em empresas como a Accel e a iZettle para criar a sua própria empresa em Portugal, a ThirdEyeMedia, ligada às Relações Públicas.
“Depois de estar oito anos em Londres, percebi que queria uma mudança, mas não apenas uma mudança de trabalho. Queria uma mudança profunda e senti que tinha de ser estrutural”, começa por explicar Clara Armand-Delille ao Observador. Lisboa surgiu na lista de preferências desde o momento em que a empresária visitou a cidade em 2008, para a divulgação da Google Books e da Google News, numa altura de grande escrutínio à volta dos direitos de autor de editores e publishers na Europa. “Adorei Portugal e depois regressei algumas vezes de forma mais informal. Uma coisa que fui reparando ao longo dos anos é que o país estava a tornar-se rapidamente num mercado muito atrativo para várias indústrias, sendo uma delas a tecnologia”, explica.
Quando percebeu que queria mudar, o passo que se seguiu foi o de pensar como o iria fazer. “Procurei diferentes recursos dentro de mim. Não fui apenas pelo pensamento: ‘Como é que me preparo de novo para mais uma entrevista e mostro o que sei fazer?’. Não, foi mais do género: ‘Ok, vamos começar a utilizar outros atributos e qualidades que são importantes para mim como ser humano”, acrescentou Clara Armand-Delille. A empreendedora de 36 anos mudou-se para Lisboa “a saber e a confiar que iria descobrir o que queria quando lá estivesse”.
Quando vim a Portugal em 2008 era já muito atrativo em termos culturais, com uma profundeza histórica e estética. E também o estilo de vida é muito saudável: as pessoas gostam de caminhar, o centro da cidade não é demasiado grande e permite caminhar por lá várias vezes. Decidi mesmo dar um salto de fé e se se tivesse tornado numa pausa de três meses, confiava que depois desses três meses teria mais clareza para tomar uma boa decisão e dar um bom passo na carreira. Foi uma mudança espontânea, intuitiva e muito orgânica”, acrescentou Clara Armand-Delille ao Observador.
Em 2015, e já na capital portuguesa, Clara começou por fazer trabalhos como freelancer na sua área. Depois, começou a receber pedidos de várias empresas a questionar quais seriam as melhores formas para a divulgação do seu serviço e produto. Quando, no verão desse mesmo ano, já tinha “as mãos cheias com clientes”, a empreendedora percebeu que era necessário responder ao desafio e à lacuna do mercado. Para isso, criou a ThirdEyeMedia, uma agência de relações públicas especializada em tecnologia, startups, scaleups e fundos de investimento. Cinco anos depois, a empresa de Clara conta com clientes em cidades como Londres, Nova Iorque, Paris, Berlim, Madrid, Milão e Lisboa e está a recrutar mais profissionais da área para se juntarem à equipa de cinco pessoas que já existe.
“O medo de falhar chega porque vemos muito fracasso espetacular à nossa volta”
A experiência de trabalho em empresas como a Google deu a Clara valências que ainda hoje utiliza no seu próprio negócio. “Enquanto funcionária, tive todo o tipo de chefes, diretores, gestores, porta-vozes com quem trabalhei, todos com diferentes capacidades”, explicou ao Observador. Dessa gestão, Clara trouxe uma forma diferente de liderança da sua própria equipa, acreditando que com uma gestão positiva e de empoderamento da equipa todos saem a ganhar. Até porque, acrescenta, a sua empresa é constituída por empreendedores “que estão a aconselhar outros empreendedores”. “É isso que digo muitas vezes à minha equipa”, sublinha.
Clara Armand-Delille acredita que há uma diferença entre liderança e gestão e é isso que diz ter em conta enquanto líder da ThirdEyeMedia. “A gestão trata basicamente de supervisionar os funcionários que estão a exercer tarefas repetitivas e verificar a performance e taxas de trabalho. E a liderança consiste mais em mostrar o caminho, a direção estratégica que queremos encaminhar e dizer: ‘Agora tu, quem quer que sejas, vais trabalhar nisso, vai e chega lá, mas da tua própria forma, ao teu próprio ritmo. Se tiverem que o fazer à minha maneira, então não há motivo para estarem aqui”, explicou.
Mas o medo do fracasso neste tipo de negócios — quando se salta de cabeça para um sítio desconhecido e por conta própria — não aumenta nestas situações em particular? Clara admite que sim, mas garante que tem “imensa confiança na nova e na próxima geração”. E explica: “O medo de falhar chega porque vemos muito fracasso espetacular à nossa volta, mesmo no sistema político”. O segredo, conta, é aceitar que o fracasso “está ao nosso redor” e pode acontecer. “Faz parte da vida e correr riscos, pensar criativamente e abraçar as nossas múltiplas valências”, acrescentou.
Clara, licenciada em Ciência Política mas com mestrado em Relações Públicas, acredita também que ser freelancer é uma forma de trabalho cada vez mais segura, uma vez que “há indústrias inteiras que são alteradas quase de um dia para o outro pelo setor da tecnologia” e que, por isso, “quando se trabalha de forma independente tende-se a ter uma base de clientes mais alargada, trabalha-se com várias pessoas e isso acaba por dar mais segurança”.
A empreendedora destaca ainda o caminho em direção a um mercado com múltiplas valências que facilita uma adaptabilidade às rápidas mudanças de paradigma: “Normalmente, o que acontece com frequência é termos um trabalho, mas o que realmente gostamos de fazer pode estar ali. Há um livro, o “Side Hustle” que argumenta que para isto se tornar numa forma de rendimento é necessário pensar estrategicamente. Conheço uma pessoa que tem um talkshow de rádio e também é um rapper. Eu própria sou também professora certificada de yoga e tenho uma empresa de Relações Públicas”.
Principal desafio? Garantir que as empresas “continuam europeias e não sejam compradas pelos EUA ou Ásia”
Os dados mais recentes divulgados durante o Lisbon Investment Summit, que se realizou em junho e onde Clara também marcou presença, indicam que em 2018 as startups portuguesas atingiram os 485 milhões de euros de investimento de capital de risco e que em nove anos o número de capitais de risco em Portugal duplicou de 24 para 48. Para a empreendedora, o crescimento dos números acaba por ser um reflexo de tudo o que tem acontecido nos últimos anos. “Foi muito interessante ter chegado numa altura em que o ecossistema estava a crescer rapidamente. E continua a crescer em termos de startups e no número espaços de coworking, aceleradoras e fundos disponíveis”, explica.
Um dos aspetos positivos que Clara destaca no ecossistema português é a facilidade com que se cria uma startup quando comparada a alguns países, uma vez que “o Governo fez um ótimo trabalho em remover alguns dos obstáculos burocráticos para se montar um negócio”.
Mas nem tudo está resolvido. Apesar de admitir a existência de uma diferença entre Europa e Estados Unidos no que toca ao valor dos fundos de investimento das empresas, a grande preocupação que a responsável da ThirdEyeMedia destaca no atual ecossistema europeu passa por outro ângulo: “É mais sobre ver além dos fundos e do crescimento destas empresas para empresas maiores e permitir que elas continuem europeias e que não sejam compradas pelos EUA ou pela Ásia”. “Se perguntar a uma scaleup ou a investidores que investem numa scaleup o que é que os deixa acordados durante a noite esses são os tópicos, sem dúvida”, acrescentou.
“Seria bom ver mais homens denunciarem situações de desigualdade”
Um dos temas que nos últimos anos tem estado em cima da mesa para debate passa pela desigualdade de género no mundo do trabalho, que também inclui o espetro da tecnologia e startups. Clara admite que questões como as denunciadas pelo movimento #MeToo e a descriminação de género, incluindo a nível salarial, “são absolutamente uma realidade destruidora e que precisa de ser denunciada” e acrescenta que é importante que os profissionais que gerem o seu negócio assegurem que a “cultura no negócio que estão a liderar seja saudável, positiva e empoderadora”. “Queremos uma cultura que seja positiva, justa, onde não exista enviesamento”.
Claro que ao longo do meu percurso também encontrei discriminação. Em determinadas situações foi muito flagrante e em outras foi mais oculto e subliminar. E essas situações são as mais perigosas, são aquelas que por serem mais suaves são mais difíceis de apontar. Está a afetar as mulheres na tecnologia? Sem dúvida. Já senti isto de forma próxima? Absolutamente”, acrescenta Clara.
O importante, acrescenta, é expor cada vez mais os problemas e levar a um maior debate sobre este tópico. “Há inúmeros estudos que mostram que qualquer tipo de diversidade no local de trabalho é uma situação win-win porque, obviamente, ao ter uma mentalidade diversificada a trabalhar num produto ou serviço ele torna-se mais ajustável às pessoas”, sublinha, acrescentando que gostava de ver mais homens a falarem e a exporem casos que conheçam. “Atualmente, tudo isto ainda é muito encabeçado por mulheres, mas acho que é a natureza de qualquer causa: quantas mais pessoas falarem, mais estão envolvidas. Por isso sim, seria ótimo ver mais homens denunciarem situações de desigualdade”, acrescenta.
Sobre conselhos para quem pretende ou está a pensar em criar um projeto próprio, Clara não tem uma regra a sugerir, mas há um comentário que tem a fazer: “Talvez tivesse competências para lançar este negócio um pouco mais cedo, mas o caminho pessoal que tive de fazer para olhar para as minhas competências e tornar as minhas ideias em algo vendível levou-me algum tempo. Às vezes, há um processo de maturação que precisa de acontecer dentro de nós para sermos capazes de dar o próximo passo. E, às vezes, não podemos saltar isso”, conclui.