Nos últimos 11 anos — entre 2008 e 2019 — foram assinados quase 1200 contratos públicos entre a Proteção Civil e prestadores de serviço privado. Da totalidade dos contratos, perto de 85%, ou seja, mais de 900 contratos, foram celebrados por ajuste direto, sem que o Estado abrisse a todas as empresas privadas a oportunidade de concorrer pela prestação remunerada de um serviço à Proteção Civil. As contas foram calculadas pelo semanário Expresso, que as revela na sua edição deste sábado.

Além de noticiar que a larga maioria dos contratos foram feitos com recurso ao regime de ajuste direto (em que o Estado encomenda a uma empresa particular um serviço que considera necessário), o Expresso acrescenta que só no último ano e meio, desde início de 2018, foram feitas 31 adjudicações da Proteção Civil com recurso a um outro regime de contratos públicos, o de consulta prévia. Este regime serviu, por exemplo, para celebrar os contratos entre Estado e privados que resultaram na polémica compra de material de sensibilização e propaganda para proteção contra incêndios no âmbito do programa público “Aldeia Segura, Pessoas Seguras”.

Entre o material adquirido no âmbito do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras” estavam golas antifumo cuja capacidade de proteção foi colocada em causa quer por peritos, quer pelo fornecedor das golas (que revelou ao Observador que chegou a propor fazê-las com um material que garantia maior grau de proteção, mas o Estado optou pela solução tomada por uma questão de preço) quer pela própria Proteção Civil, que considerou que as golas, envolvidas num programa de proteção, serviam afinal apenas para “sensibilização” da população que vive em aldeias de especial risco de incêndios.

Incêndios. Proteção Civil distribuiu 70 mil “golas” inflamáveis às populações

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A solução encontrada para assegurar o investimento público em material de sensibilização contra incêndios foi a opção de fazer uma consulta prévia a empresas que o Estado terá considerado adequadas para a produção do material de sensibilização (a escolha veio a recair numa empresa especializada sobretudo no setor do turismo de natureza). Desde 2018 que esse novo procedimento de consulta prévia — que não é exatamente nem ajuste direto nem concurso público — deu origem a 31 contratos, todos avaliados entre 20 mil e  75 mil euros, os limites que exigem uma consulta do Estado ao setor privado (a pelo menos três empresas) para a realização do investimento.

O modelo de “consulta prévia”, podendo ter em muitos casos mais virtudes do que o modelo de ajuste direto, não está imune a críticas. Alguns especialistas ouvidos pelo Expresso consideram-no, aliás, problemático. Para o advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Pedro Fernández Sánchez (ouvido pelo semanário), o regime que obriga o Estado a ouvir três empresas antes de atribuir a uma delas um contrato “não garante que haja livre concorrência nem evita a fraude, porque pode haver concertação entre empresas. Na verdade, a consulta prévia passou a ser o nome que se dá agora a um ajuste direto em que o convite é enviado a três entidades em vez de apenas a uma. O resto — a tramitação e os prazos — é igual.”

A 26 de julho, o Observador e o Jornal de Notícias noticiaram que o Estado tinha comprado golas antifumo para rosto e pescoço que eram, na verdade, inflamáveis, tendo distribuído mais de 70 mil unidades em aldeias em zona de especial risco de incêndio. O negócio passou, daí em diante, a ser escalpelizado mais ao pormenor: foi noticiado que as empresas privadas a quem o Estado encomendou material de sensibilização tinham relações ao PS, que as golas foram vendidas acima do preço de mercado, que o adjunto do secretário de Estado da Proteção Civil estava envolvido no processo de indicação das empresas privadas que forneceram o material (demitiu-se posteriormente) e que houve contratos celebrados entre uma empresa do filho do secretário de Estado. A partir daí, foi revelado que uma empresa do filho do secretário de Estado da Proteção Civil celebrou contratos com o Estado e que também uma empresa de um familiar do ministro Pedro Nuno Santos celebrou contratos com o Estado enquanto o filho estava no Governo.

Na sequência destas notícias, o primeiro-ministro António Costa pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República para esclarecer dúvidas sobre a impossibilidade de familiares de titulares de cargos políticos terem negócios com o Estado. Costa questionava como alguém poderia ser “responsabilizado, ética ou legalmente, por atos de entidades sobre as quais não detém qualquer poder de controlo e que entre si contratam nos termos das regras de contratação pública, sem que neles tenha tido a menor intervenção”. De seguida, o Observador recordou que Costa alterou a lei em questão em 1996, sem levantar dúvidas sobre a norma que agora questiona.

Filho do secretário de Estado da Proteção Civil fez contratos com o Estado. Lei prevê demissão