Francisco São Bento, presidente do Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), bem queria falar — mas já ninguém o ouvia. Diante dos microfones de praticamente toda a comunicação social nacional, a voz de um dos líderes dos motoristas em greve foi abafada pelos gritos dos seus colegas que, lá atrás, ergueram punhos e começaram a gritar: “Nem um passo atrás! Nem um passo atrás! Nem um passo atrás!”.
A mensagem era clara: os motoristas não iam desconvocar a greve marcada para depois das 23h59 deste domingo e sem fim à vista. A origem daquelas palavras de ordem, que certamente não faria parte do leque de preocupações dos motoristas, é que não era tão direta. É que aquelas palavras estão longe de terem nascido em Aveiras de Cima no ano de 2019. A sua origem remonta a Moscovo, no ano de 1942, ditas pelo homem que ali mais importa: Josef Estaline.
Em 1942, a Segunda Guerra Mundial corria de feição à Alemanha de Adolf Hitler. Nessa altura, as tropas nazis estendiam-se em todas as direções. A Norte, conseguiram ocupar países como a Dinamarca e a Noruega. A Oeste, entraram com facilidade em França, na Bélgica ou na Holanda. A Sul, tinham ainda a aliança com Benito Mussolini intacta, além de terem também uma forte penetração na Europa Central e nos Balcãs. E a Este, os nazis irrompiam a um ritmo estável, primeiro pela zona de influência de Moscovo e, depois mesmo em território da União Soviética.
Tudo isto era preocupante para Estaline. Semana após semana, a União Soviética era engolida pelos nazis, que desde 1941 cercavam Leningrado (atualmente São Petersburgo) e que também desde o final daquele ano tentavam entrar a toda a força em Estalinegrado (Volgogrado, nos dias de hoje).
Estaline respondeu a tudo isto com um diagnóstico negro, de uma sinceridade incomum para aquele ditador. “O inimigo canaliza mais e mais dos seus recursos para a frente de combate e, sem fazer contas às suas perdas, prossegue, penetrando cada vez mais na União Soviética, capturando novas áreas, devastando e pilhando as nossas cidades e aldeias, violando, matando, e roubando o povo soviético”, escreveu Estaline, na Ordem Executiva Número 227, datada de 28 de julho de 1942.
Mais do que um diagnóstico da destruição, aquela ordem executiva era um raspanete de Estaline ao Exército Vermelho. O ditador soviético não hesitou em falar de algumas das unidades da frente de combate de Sul que “foram atrás dos arautos da desgraça” e abandonaram as suas posições, “cobrindo assim os seus estandartes de vergonha”. Estaline arriscou mesmo dizer que o povo soviético “está a começar a ficar desapontado com o Exército Vermelho e a perder a fé nele, e muitos deles maldizem o exército por fugir para Este e deixar o povo sob o jugo alemão”.
“Algumas pessoas pouco informadas na frente confortam-se a elas próprias argumentando que podemos retirar para Este, uma vez que temos um vasto território, muitos terrenos, muitas pessoas, e que teremos sempre pão em abundância”, escreveu Estaline. “Com estes argumentos, eles tentam justificar o seu comportamento vergonhoso na frente de combate. Mas todos estes argumentos são totalmente falsos e jogam a favor dos nossos inimigos.”
Foi perante essa conclusão, de que a União Soviética já tinha perdido demasiado, e que os seus soldados não estavam a esforçar-se o suficiente para se baterem contra a invasão nazi, que Estaline disse: “A conclusão disto tudo é que é altura de deter a debandada. Nem um passo atrás! A partir de agora, este será o nosso lema”.
Mais à frente, Estaline concretizou:
“A partir de agora, a lei férrea da disciplina para cada agente, soldado ou comissário político deve ser ‘nem um passo atrás!’ sem ordens superiores. Comandantes de companhias, batalhões, regimentos ou divisões, tal como comissários ou oficiais políticos que retirem em debandada sem qualquer ordem superior são traidores da pátria. Vão ser tratados como traidores da pátria”.
E que tratamento seria esse? Uns parágrafos adiante, Estaline foi ainda mais específico. A partir daí, todos os comandantes que, salvo ordens superiores nesse sentido, dessem ordem às suas tropas para baterem em retirada ficariam sem todas as suas condecorações e teriam de responder perante um tribunal de guerra — faltando apenas na ordem executiva de Josef Estaline explicar que, nesse caso, seriam provavelmente executados.
Quanto aos soldados, todos os que fugissem do confronto seriam agrupados em batalhões punitivos. “Estes batalhões deverão ser enviados para as secções mais difíceis da frente de combate, dando-lhes assim uma oportunidade para se redimirem, pela via do sangue, dos crimes cometidos contra a pátria”, escreveu Estaline.
Também foi dada a ordem para que fossem formadas unidades de entre “três a cinco guardas bem armados” que, no calor do combate, teriam como função executar os “arautos da desgraça e os cobardes no local, em caso de pânico ou debandada caótica, dando assim aos soldados leais a oportunidade de cumprirem o seu dever perante a pátria”.
Esta ordem de Estaline tinha a indicação para ser lida a todos os cargos militares da União Soviética. Em 1944 esta ordem executiva foi retirada, já a guerra começava a melhorar para os Aliados, incluindo para a União Soviética, já que foi nesse ano que terminou o Cerco de Leninegrado e também a Batalha de Estalinegrado.
Ao longo da Segunda Guerra Mundial, estima-se que, entre os batalhões punitivos e a polícia política de então, o NKVD, tenham sido executados 158 mil soldados do Exército Vermelho sob acusação de tentarem retirar-se de combate sem ordens nesse sentido. Além disso, outros 450 mil soldados terão sido apanhados em fuga e, depois disso, colocados nos grupos destinados a combater nas piores zonas da frente de combate.
“Nem um passo atrás”: das manifestações de taxistas e feministas ao Call of Duty
Desde 1942 a esta parte, a expressão “nem um passo atrás!” tem sido utilizada em várias manifestações, dentro e fora de Portugal, sem que estas tenham qualquer relação com a sua origem.
Em Portugal, é frequente ouvi-la em greves, não só nesta dos motoristas, mas também nos bloqueios dos estivadores, dos taxistas contra plataformas como a Uber ou de coletivos anti-fascistas contra manifestações de extrema-direita, entre tantos outros exemplos.
Em Espanha, também é frequente ouvir “ni un paso atrás” em protestos, como aconteceu na greve feminista de 8 de março deste ano (tal como em edições anteriores) ou em manifestações a favor da independência na Catalunha — sendo que, nesse caso, as palavras de ordem são “ni un pas enrere”.
De regresso ao contexto original da frase “nem um passo atrás!”, mas noutras dimensões, também o videojogo Call of Duty retrata o momento em que um comissário diz aos seus soldados, prestes a desembarcar na batalha de Estalinegrado, que estão proibidos de recuar. O jogador que tentar fazê-lo conhecerá inevitavelmente o mesmo destino: os soldados soviéticos tratarão de disparar contra ele até que, das duas uma: ou retome a sua posição na frente de batalha ou morra.