Título: O Comboio da Noite
Autor: Martin Amis
Editora: Quetzal
Páginas: 160
Preço: 16,60€

O Comboio da Noite chegou às livrarias a 19 de julho. A editora descreve-o como uma história “arrebaradora”, “em que nada é o que parece”

Em 1980, a Ellery Queen’s Mistery Magazine publicou, com data de 10 de março, um numero comemorativo do seu 39.º aniversário. Ao lado de nomes consabidos como Patricia Highsmith, Edward D. Hoch, Otto Penzler ou Whit Masterson e vários outros menos conhecidos, o sumário incluía uma surpresa: um “conto” policial (?) de Norman Mailer (as aspas são da própria redação da revista). Este tinha por título “The Locust Cry”, isto é, “O grito do gafanhoto”. Em vez dos antetítulos vulgares, a revista dizia “a ??? by Norman Mailer”, e depois a redação desfazia-se em explicações: “Não haverá deteção (psiquiátrica)? Não haverá crime (por implicação)? Mas para quem ainda não esteja convencido de que haja deteção ou crime, não há um mistério (na verdade, mais do que um)?”. O nome no frontispício de um escritor amplamente consagrado como autor de “verdadeira” literatura era uma espécie de medalha.

A linha entre aquilo que é reconhecido como “literatura” e a chamada “literatura popular” é em muitos casos ténue. Graham Greene escreveu alguns dos seus melhores livros sob a designação, não sei se irónica, de Entertainments: A Gun for Sale: “Brighton Rock”, “Third Man” e “The Ministry of Fear”. Meros entretenimentos, sem valor literário? Norman Mailer não foi totalmente convincente na sua exuberante incursão na literatura criminal (Tough Guys Don’t Dance), mas escreveu noutro género dito menor, o thiller de espionagem, aquele que é um sério candidato a ser um dos seus melhores livros de ficção (Harlot’s Ghost), senão um dos melhores romances da literatura contemporânea americana, ponto final. Podíamos continuar esta conversa. De resto, um dos fundadores da literatura detetivesca é também uma das figuras maiores da literatura americana, Edgar Allan Poe. E, sem irmos mais longe, o que são os romances de Dashiell  Hammett ou, sobretudo, os de Raymond Chandler? Simples exemplares de um género menor?

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Martin Amis foi, em tempos que já lá vão e até numa idade relativamente provecta, um enfant terrible das letras inglesas. Hoje está muito longe de ser uma criança –- e, ainda menos, terrível. Sem risco de estragar qualquer surpresa, eis o entrecho de O Comboio da Noite (transcrevo da contracapa desta edição, viva a preguiça!):

“Mike Hoolihan, uma mulher polícia de uma cidade americana é confrontada com a morte suspeita da jovem Jennifer Rockwell. Mike conhecera-a: muito bela, inteligente, amorável, gregária, adorada por toda a comunidade [e uma mulher de uma felicidade esfuziante, poder-se-ia acrescentar]. Encontrá-la morta em casa com um tiro na cabeça, foi um choque, e grande a perplexidade quando todos os indícios apontaram para o suicídio. Tom Rockwell, pai de Jennifer e antigo chefe de Mike, fora o amigo que a ajudara a reabilitar-se de um vício alcoólico quase fatal – e não iria descansar enquanto não encontrasse uma explicação satisfatória”.

Durante a sua cura, Jennifer, ainda miúda, fazia-lhe companhia muitas vezes. Sempre foi uma espécie de oposto da protagonista, o contraste começa logo pelos nomes: Mike, nome de homem, Jennifer, nome de menina. E aqui, sim, há deteção, há crime (fora outras considerações, há ou houve ordenamentos jurídicos, alguns bem próximos de nós e dos nossos dias, em que o suicídio é ou foi um crime previsto e punido pela lei). Há, certamente, mistério (mais que um!). Muito bem.

O Comboio da Noite é narrado na primeira pessoa pela mulher polícia. Este é o maior desafio escolhido por Martin Amis: o filho de Sir Kingsley Amis (glória, talvez menor, mas glória, sem dúvida, da literatura inglesa moderna), da aristocracia boémia londrina, educado em Oxford, fala neste livro pela voz de uma mulher americana de meia-idade, grandalhona, não especialmente letrada, pouco convencionalmente feminina sob muitos aspetos (é frequentemente confundida com um homem quando fala pelo telefone com alguém). É um desafio ousado e em grande parte falhado. Sente-se sempre o esforço do ventríloquo no monólogo de Mike Hoolihan, que às vezes assume quase a posição do narrador tradicional (na extensa e documentada dissertação sobre o suicídio, por exemplo; é menos sólido e mais forçado, o interlúdio sobre “bipolaridade”, nome mais asséptico vulgarizado hoje para a maleita dos maníaco-depressivos e que na América é uma espécie de ominosa e enigmática maldição). Quando dois personagens muito distantes um do outro, usam a mesma expressão “if not you, who? “, “se não tu, quem?”, a carpintaria range. (A expressão, de que Ronald Reagan fez um uso famoso, é “if not us, who, if not now, when?”, “se não nós, quem, se não agora, quando?”).

Um crítico inglês que gostou muito deste livro de 1997, escreveu, ao tempo: “Este novo livro é um romance de estilo americano, duro, noir, Chandleresco”. Negro, é, sem dúvida, mas não é certo que o estilo seja americano. “As ruas eram negras com algo mais do que noite”, escreveu Raymond Chandler algures. Aqui, o negrume é outro. Estaria mais na linha do que o malfadado Jim Thompson levou ao paroxismo na sua descabelada galeria de psicopatas do que do estilo de Chandler. Em qualquer caso, juste retour des choses: para gabar um literato inglês, mesmo que a despropósito, usa-se um adjetivo tirado do nome de um autor saído da pulp fiction americana.