A nossa literatura foi incapaz, após o 25 de Abril, de produzir o grande romance sobre os anos do fim do antigo regime, do PREC e da acalmia pós-revolucionária, a saga literária que falasse das profundas alterações políticas, económicas, sociais e de costumes das últimas décadas no nosso país, através da vida de um homem, uma mulher ou uma família. Curiosamente, o livro que ficou mais perto de o fazer foi escrito não por um romancista mas sim por um politólogo e empresário: Novembro, de Jaime Nogueira Pinto, embora a ação seja muito limitada no tempo, entre 1973 e 1975. Noutro país, Novembro já teria dado uma série de televisão ou um filme, mas não podemos contar com isso em Portugal porque Jaime Nogueira Pinto é de direita, tem a ideologia “errada”.

É um filme, “A Herdade”, de Tiago Guedes, que vem tapar essa enorme brecha deixada pela literatura. Com um pequeno (mas importante) prólogo passado nos anos 50, a ação de “A Herdade” vai do tempo de Marcello Caetano até à década de 90, passa-se no Ribatejo, na grande propriedade de João Fernandes (Albano Jerónimo), o potentado local, uma personagem que em vários pormenores poderia remeter para o toureiro e grande proprietário rural João Branco Núncio, que em vida foi conhecido como “O Califa de Alcácer”, mas que o realizador e Rui Cardoso Martins, autores do argumento, quiseram que existisse por si só, sem se referir a qualquer outra pessoa concreta, morta ou viva.

[Veja o “trailer” de “A Herdade”:]

João Fernandes é quem transporta consigo o enredo e a mochila trágica de “A Herdade”. Com ele, é quero, posso e mando. É o rei da região, até tem um pequeno castelo numa ilhazinha. Ele cuida com a toda a atenção do seu pequeno império, das suas terras, dos seus rendeiros e empregados, e estes respondem com dedicação e lealdade. Só se sente bem na herdade, com os seus cavalos, e a seduzir todas as mulheres que lhe passem à frente. A sua ideologia é a sua propriedade, a sua política tudo aquilo que a proteja e beneficie. Ao longo do filme, vamos vê-lo enfrentar, primeiro, as pressões de um regime em agonia para que apareça publicamente a apoiá-lo, e depois os ventos de loucura do PREC, com as suas turbas de ocupadores de terras. E a todos João Fernandes consegue sobreviver, mantendo a integridade do seu latifúndio.

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[Veja o realizador, o ator principal e o produtor no Festival de Toronto:]

Exímio a enfrentar o mundo exterior e a moldá-lo à sua vontade, João Fernandes é um fracasso dentro de portas com a família. Pouco à vontade com a expressão de sentimentos e o quotidiano da intimidade, parco em gestos de carinho para com a mulher, Leonor (Sandra Faleiro), ríspido com o filho enfermiço, que considera fraco e indigno do seu sangue, tolhido pela herança de um pai duro ao ponto da insensibilidade perante o suicídio de um filho, a sua incapacidade para ser tão bom marido e pai como é administrador da herdade, aliada às consequências das suas aventuras extra-matrimoniais e às circunstâncias da normalização pós-revolucionária, vão acabar por minar tudo em seu redor. E levar à implosão do seu mundo.

[Veja um excerto do filme:]

Tiago Guedes filma esta saga familiar portuguesa que cavalga várias décadas e abrange dois regimes políticos, repercutindo os abalos e as mudanças sofridas pelo país inteiro, como se fosse um “western” da lezíria, revelando influências não só deste género como também de um certo cinema italiano de recorte social, mas sem sacrificar a identidade da fita. Pelo seu fôlego narrativo, pelo gosto e capacidade de romanesco, pela elaboração dos retratos humanos e psicológicos e pela interação das personagens, recusando traços grossos, esquematismos e condenações morais (ver a relação entre João Fernandes, Joaquim, o seu capataz, e Rosa, a mulher deste), pela tangibilidade das pessoas, paixões e emoções, e pela robustez cinematográfica e dramatúrgica, “A Herdade” é um filme muito especial na história do cinema nacional, e do pós-25 de Abril. E não pouco por estar firmemente ancorado numa história que fala de nós, portugueses, das nossas vidas e do nosso passado recente.

[Veja um excerto do filme:]

Liderado pelo intenso e concentrado Albano Jerónimo no papel de João Fernandes, com uma interpretação que passa em grande parte pela forma de olhar e por aquilo que a personagem não diz e guarda  para si, ao invés de verbalizar e deitar cá para fora (o subentendido é a figura de estilo que domina este filme), muito bem acompanhado por Sandra Faleiro em Leonor, a pacientíssima e sofredora mulher do latifundiário, que reflete no seu modo de estar tudo o que tem que engolir, remoer e aguentar ao longo de anos e anos de passividade e angústia, e por Miguel Borges no fiel e sorumbático Joaquim, o elenco de “A Herdade”, dos primeiros papéis aos mais secundários e fugazes, dos atores mais veteranos aos mais verdinhos, é de uma coesão, uma dedicação e uma qualidade invulgares.

A única dissonância de “A Herdade” tem a ver com a representação das figuras ligadas ao antigo regime. Quarenta e cinco anos depois do 25 de Abril, já é mais do que tempo para o cinema português – e não só ele –se libertar de vez dos estereótipos com barbas bíblicas dos pides façanhudos, dos governantes ridículos e dos militares tirânicos tão do gosto do antifascismo jurássico. É a ressalva solitária que se faz a um filme onde os seus autores mostram, em tudo o resto, que sabem que o mundo não é feito a preto e branco rígido, mas sim de uma enorme, complexa e surpreendente variedade de cambiantes.