A Procuradoria-Geral da República (PGR) decidiu publicar na sua página da internet o parecer do Conselho Consultivo sobre o caso familygate. A pedido de António Costa, o órgão da PGR analisou as implicações legais dos contratos adjudicados a familiares de diversos membros do Governo e não teve dúvidas em dar razão ao primeiro-ministro: o regime de incompatibilidades e impedimentos não pode ser interpretado de forma literal.
Ou seja, o Conselho Consultivo considera que as sociedades em que os membros do Governo tenham diretamente participações diretas acima dos 10% não podem ter contratos com o Estado. Se ganharem tais contratos, então o ministro ou o secretário de Estado com tal participação societária terá de demitir-se.
O caso muda de figura, contudo, quando estão em causa os familiares dos membros do Governo, sendo que a questão essencial passa por saber se os ministros ou secretários de Estado tutelam serviços que adjudicaram contratos públicos aos respetivos familiares. Por exemplo, o jurista Eduardo Paz Ferreira poderá ter contratos com o Estado desde que a entidade adjudicatária não seja tutelada pela sua mulher Francisca Van Dunem (ministra da Justiça), aplicando-se o mesmo raciocínio aos familiares dos ministros Pedro Nuno Santos e Graça Fonseca.
Leia aqui o parecer na íntegra.
“Senhor Primeiro-Ministro
Excelência:
I. Introdução
I. 1. Dignou-se Vossa Excelência solicitar a este Conselho Consultivo[1] a emissão de parecer, ao abrigo do preceituado na alínea a) do artigo 37.º[2]do Estatuto do Ministério Público[3], tendente ao esclarecimento das questões aí enunciadas, explicitamente reconduzidas à interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 10.º, n.º 3, da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, que estabelece o Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos[4].
Alegadamente, na base da formulação do pedido, esteve o facto aí destacado, segundo o qual:
“Foram recentemente veiculadas por diversos órgãos de comunicação social notícias que obrigam a ponderar a aplicação, amplitude e efeitos do regime de impedimentos aplicável a sociedades, previsto no artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, e o correspetivo regime sancionatório, previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 10.° da mesma lei”.
Nesta ótica, a título de fundamentação da necessidade da emissão de parecer por este Corpo Consultivo e em prol da pertinência das questões suscitadas, o pedido enfatizou, nomeadamente, que:
“Os regimes substantivo e sancionatório mencionados constituem uma restrição à liberdade de iniciativa económica, garantida pelo artigo 61.° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que proíbem um leque de condutas que a Constituição genericamente permite.
Tratando-se de uma restrição a um direito fundamental, a mesma deverá obedecer aos vários crivos que a Constituição impõe, em especial, no n.º 2 do seu artigo 18.º
Assim, a restrição deve ter por efeito e como fundamento a salvaguarda de um direito ou interesse constitucionalmente protegidos. No caso, o interesse salvaguardado será a imparcialidade da Administração Pública, especialmente prevista no n.º 2 do artigo 266.° da Constituição.
A restrição deve, contudo, respeitar o princípio da proporcionalidade, o que, tendo em conta a letra do artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, não parece estar devidamente acautelado, nos termos que seguidamente se expõem.
Em primeiro lugar, este regime não garante a exigência constitucional de adequação. Por outras palavras, a restrição à liberdade de iniciativa económica aqui operada nem sempre será idónea a garantir a imparcialidade da Administração Pública. Bastará pensar no caso que tem sido objeto das referidas notícias: não se afigura apto à garantia da imparcialidade da Administração Pública proibir que uma empresa, em que o filho do Secretário de Estado da Proteção Civil tem uma participação social minoritária, celebre contratos com pessoas coletivas de direito público que não estão em nenhuma relação de dependência administrativa ou política com o mesmo Secretário de Estado, como é o caso da Universidade do Porto ou do município de Vila Franca de Xira.
Em segundo lugar, a vertente da necessidade não parece estar cumprida. Isto significa que é excessiva a restrição à liberdade de iniciativa económica, se entendida em termos tais que se estenda a sociedades em que pais, filhos ou irmãos de titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos tenham uma participação minoritária e que abarque a celebração de contratos com toda e qualquer entidade pública, mesmo que não esteja sujeita ao poder de direção, superintendência ou tutela por parte desses titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos. Neste contexto, será possível configurar medidas menos gravosas que permitam garantir a imparcialidade da Administração Pública.
Em terceiro lugar, tendo em conta o descrito, o escrutínio do cumprimento da vertente da proporcionalidade em sentido estrito seria escusado, por se já concluir pela inconstitucionalidade da restrição. Note-se, porém, que mesmo assim o equilíbrio entre os custos e benefícios que a restrição à liberdade de iniciativa económica acarreta se mostra desproporcional.
Parece, assim, que é necessário definir os termos em que se pode compatibilizar o disposto no artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, com o princípio da proporcionalidade, numa interpretação conforme à Constituição”.
A acrescer, o pedido debruçou-se sobre uma outra questão, conexa com a primeira, explanada nos seguintes termos:
“Suscitam-se iguais dúvidas de interpretação relativamente ao regime sancionatório previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 10.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto.
Tratando-se de uma sanção ao incumprimento de um regime de impedimentos, há que reter as particularidades dos impedimentos jurídicos, designadamente a respetiva natureza circunstancial. Dito de outra forma, os impedimentos jurídicos implicam a proibição de atuação ou intervenção em casos concretos, atendendo ao seu contexto e tendo em vista a garantia da imparcialidade. Assim sendo, tem de ser relevada a conduta pessoal do titular do cargo político ou alto cargo público no caso concreto. De outra forma, tratar-se-ia de um regime de incompatibilidades, que se afere em termos abstratos e absolutos. Este entendimento parece ser conforme ao que foi expresso no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 35/92, segundo o qual o distanciamento intelectual e volitivo do titular do cargo público “há de por certo relevar na definição, referente à culpa, da responsabilidade consequente”.
Deste modo, e para efeitos da aplicação da sanção prevista, entende-se ser necessária a aferição de uma conduta volitiva no incumprimento do dever de imparcialidade da Administração Pública. Ora, a interpretação com uma base exclusivamente literal dos preceitos legais em questão, conjugada com um eventual automatismo na respetiva aplicação, levaria a sancionar um titular de cargo politico ou alto cargo público por algo que não depende do próprio, isto é, por uma conduta que não é sua, de que pode nem ter conhecimento e que não tem meios para evitar”.
Na esteira destas considerações introdutórias, e à guisa de conclusão, entendeu Vossa Excelência formular as seguintes questões:
“1.ª — Como deve ser interpretado o impedimento estabelecido pelo artigo 8.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, em termos conformes à Constituição? Uma interpretação exclusivamente literal do referido preceito, que conduzisse à aplicação de uma sanção por factos não imputáveis ao titular de cargo político ou alto cargo público e fora do seu controlo, não buliria com os ditames de proporcionalidade decorrentes do n.º 2 do artigo 18.° da Constituição?
“2.ª — Tendo em conta o entendimento do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, expresso no Parecer n.º 35/92, deve entender-se que a aplicação das sanções previstas no n.º 3 do artigo 10.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, é automática ou, pelo contrário, carece de uma avaliação casuística quanto ao eventual envolvimento e censurabilidade do titular de cargo politico ou alto cargo público em questão?”.
Tais questões jurídicas, a que cumprirá dar uma cabal resposta, constituem, assim, o objeto da análise a que se procederá no presente parecer.
I. 2. Preliminarmente, como ressalta do articulado na exposição em que se funda o pedido de parecer, alude-se, em termos genéricos, a casos divulgados através dos meios de comunicação social. Foram, pois, essas notícias que, assumidamente, despoletaram a necessidade da dilucidação da problemática subjacente: da sanção aplicável aos titulares dos cargos políticos ou altos cargos públicos cujos familiares detêm participações no capital social de empresas que celebraram contratos com o Estado ou demais entidades públicas, à revelia do disposto no artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto.
Mas, examinado o pedido formulado, constata-se, sem margem para dúvidas, que, não obstante o relato dos casos concretos consista o pano de fundo onde se inscreve esta problemática, o mesmo é vago, impreciso e genérico.
Efetivamente, alude-se ao facto de “não se afigura[r] apto à garantia da imparcialidade da Administração Pública proibir que uma empresa, em que o filho do Secretário de Estado da Proteção Civil tem uma participação social minoritária, celebre contratos com pessoas coletivas de direito público que não estão em nenhuma relação de dependência administrativa ou política com o mesmo Secretário de Estado, como é o caso da Universidade do Porto ou do município de Vila Franca de Xira”.
No desenvolvimento do raciocínio vertido no pedido, menciona-se, do mesmo passo, o caso de sociedades em que pais, filhos ou irmãos de titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos têm uma participação minoritária e que celebraram contratos com entidades públicas que não estão sujeitas ao poder de direção, superintendência ou tutela por parte desses titulares.
Assim, as situações específicas, esquematicamente versadas, são mencionadas imprecisamente, no intuito de assinalar as incongruências de uma interpretação meramente literal, não tendo sido concretizadas com a suficiente densidade fáctica, de modo a que pudessem constituir o ponto de referência à volta do qual se centraria o nosso estudo e se desenharia, a final, uma proposta de solução hermenêutica.
Destarte, cumpre acentuar que, neste parecer, não se curará de versar sobre casos concretos cuja factualidade não foi sequer alegada e carreada para o processo.
De resto, este Corpo Consultivo nunca seria a sede própria para apurar e recolher matéria de facto, restringidos que se mostram os seus poderes, exclusivamente, à dilucidação da matéria de direito.
Neste enfoque, convoca-se o teor do mencionado preceito do artigo 37.º do Estatuto do Ministério Público[5], que delimita a esfera de competências deste Conselho Consultivo, circunscrevendo-a às questões de legalidade e, daí, abstraindo dos parâmetros de oportunidade e mérito.
Debrucemo-nos, pois, em primeira linha, sobre os preceitos postos em causa, de modo a dirimir as questões sob consulta, acima enunciadas.
II. Da Lei aplicável
II. 1. O objeto da consulta, indicado pela entidade consulente, foi claramente circunscrito à questão da interpretação e aplicação dos artigos 8.º e 10.º, n.º 3, da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, e à problematização da sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa[6], sob o enfoque do princípio da proporcionalidade, com assento no artigo 18.º, n.º 2, da mesma Lei.
No percurso que nos propomos realizar, começaremos por analisar o artigo 117.º da Constituição da República Portuguesa, que, no seu n.º 2, contempla o estatuto dos titulares de cargos políticos.
Este preceito dispõe o seguinte:
Artigo 117.º
(Estatuto dos titulares de cargos políticos)
1. Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas ações e omissões que pratiquem no exercício das suas funções.
2. A lei dispõe sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos, as consequências do respetivo incumprimento, bem como sobre os respetivos direitos, regalias e imunidades.
3. A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respetivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato.
Analisando o âmbito de previsão deste preceito, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA manifestaram o entendimento de que “A noção que melhor parece corresponder à razão de ser deste preceito constitucional é aquela que considera cargos políticos todos aqueles aos quais estão constitucionalmente confiadas funções políticas (sobretudo as de direção política)”[7].
E, em anotação a este normativo, JORGE MIRANDA comenta que:
“No artigo 50.° a Constituição fala em cargos públicos, aqui em cargos políticos, e é óbvia a diferença de extensão. Cargos políticos correspondem a uma espécie dentro daquele género, caracterizados não tanto pelo exercício da função política ou governativa do Estado (contraposto à função administrativa e à jurisdicional) quanto pelo significado político da designação dos seus titulares.
Em democracia, todos os cargos relativos à definição do interesse público e à direção política devem assentar no princípio da representação política.
Mas não é necessário que sejam todos de eleição direta; basta que, não o sendo, os seus titulares sejam designados por quem seja diretamente eleito pelo povo”.
Desenvolvendo este conceito, PEDRO LOMBA refere, por seu turno, que:
“Titulares de cargos políticos são todos aqueles que recebam, de forma direta ou indireta e independentemente do modo de designação do cargo em causa, funções, poderes ou competências fundadas e enquadradas na Constituição. (…) O critério relevante para a identificação dos titulares de cargos políticos parece ser, portanto, o do desempenho de funções políticas e não apenas o da legitimidade para a prática de atos políticos”[8].
No domínio da jurisprudência dimanada do Tribunal Constitucional, chama-se à colação o Acórdão n.º 468/96, de 14 de março de 1996, no Processo n.º 87/95, onde se refere:
“(…) No caso vertente, o mais rigoroso regime de incompatibilidades e impedimentos estatuído na Lei nº 64/93 há de reportar-se a situações em que a dignidade e a responsabilidade dos cargos políticos ou altos cargos públicos exige uma dedicação reforçada e uma isenção superior dos respetivos titulares.
(…) Por outra parte, há de reconhecer-se que o legislador ordinário goza de uma considerável margem de discricionariedade – não de arbitrariedade -, proveniente do mandato democrático que lhe foi conferido, para selecionar os fatores relevantes para a inclusão ou exclusão de titulares de altos cargos públicos no universo a que associa um mais rigoroso regime de incompatibilidades e impedimentos.
Tendo em vista a prossecução do interesse público e o respeito pelos direitos e interesses dos cidadãos e visando assegurar a observância dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade no exercício das funções dos órgãos e agentes administrativos, o legislador ordinário pode definir um regime de incompatibilidades e impedimentos mais ou menos rigoroso e aplicável a um universo pessoal mais ou menos vasto”[9].
Igualmente relevante, para a dilucidação deste conceito de “cargos políticos”, é o que se extrai da fundamentação jurídica do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 382/2007, de 3 de julho de 2007, no Processo n.º 652/07:
“Como se referiu no Acórdão n.º 637/95 deste Tribunal (publicado no Diário da República, I Série‑A, n.º 296, de 26 de dezembro de 1995, p. 8092, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32.º vol., p. 139, e com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“Reconhecendo ser complexa a densificação do conceito de «cargos políticos», Gomes Canotilho e Vital Moreira sustentaram, em comentário a este novo preceito, que tal conceito não podia reconduzir‑se ao de «órgãos de soberania»: por um lado, os titulares destes últimos «abrangem os titulares da função jurisdicional, que parece não devem considerar‑se titulares de cargos políticos; por outro lado, os cargos políticos não se resumem aos órgãos de soberania, visto que do artigo 121.º decorre que os cargos políticos não têm de ser estaduais, podendo ser cargos das regiões autónomas ou do poder local» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., Coimbra, 1985, p. 83). Os mesmos constitucionalistas alertavam para o facto de que os titulares de cargos políticos não eram «só aqueles que têm um estatuto constitucionalmente definido de imunidades e prerrogativas; estas só vêm definidas quanto aos titulares de alguns órgãos de soberania, sendo inequívoco que nem só eles são titulares de cargos políticos. A noção que melhor parece corresponder à razão de ser deste preceito constitucional é aquela que considera cargos políticos todos aqueles aos quais estão constitucionalmente confiadas funções políticas (sobretudo as de direção política)» (ob. cit., ibidem).
Passou a ser, pois, isento de dúvidas que o Presidente da República, os Deputados à Assembleia da República, os membros do Governo, os conselheiros de Estado, os membros dos governos e das assembleias regionais, os Ministros da República para as Regiões Autónomas e os membros de órgãos de poder local eram qualificados como titulares de cargos políticos. Não havia, assim, que fazer apelo a normas de direito infraconstitucional para preencher esse conceito (veja-se, por exemplo, a Lei n.º 4/83, de 2 de abril, sobre o controlo da riqueza dos titulares dos cargos políticos).
Este n.º 2 do artigo 120.º da Constituição consagrou, assim, uma «imposição legiferante» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º vol., p. 85), no sentido de os órgãos legislativos competentes concretizarem o estatuto dos titulares de cargos políticos, relativamente aos aspetos indicados (deveres, responsabilidades e incompatibilidades, direitos, regalias e imunidades).[10]”
Desta resenha podemos surpreender que se trata de uma noção aberta e compreensiva, que pode ser restringida ou ampliada, consoante o objeto e âmbito da matéria a regular e a consequente opção do legislador em abranger no seu regime determinados cargos, excluindo outros, em função dos específicos interesses em presença.
Reflexo da elasticidade desta designação é o facto de a própria lei, em diversos diplomas, enumerar os cargos que, consoante os casos, considera abrangidos na sua previsão. Veja-se, nomeadamente, a Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que tipifica os crimes da responsabilidade dos titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos[11] e, outrossim, a Lei n.º 64/93, de 26 de agosto[12], que nos ocupa, cujos âmbitos subjetivos não se mostram de todo coincidentes.
II. 2. O citado preceito constitucional, no seu n.º 2, impõe ao legislador o estabelecimento e a conformação de um estatuto próprio e exclusivo dos titulares de cargos políticos, que defina e regule os respetivos direitos, regalias e imunidades e, bem assim, os seus deveres, responsabilidades e incompatibilidades e as consequências do respetivo incumprimento[13].
Por força deste comando constitucional, a Lei n.º 9/90, de 1 de março, veio definir o regime das incompatibilidades de cargos políticos e altos cargos públicos, que representa justamente o diploma que antecedeu a Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, ora em causa.
A redação primitiva desta Lei, no que tange aos preceitos dos artigos 8.º e 10.º em análise, viria a ser alterada, respetivamente, pelas Leis n.º 28/95, de 26 de agosto e n.º 42/96, de 31 de agosto[14], dela passando a constar o seguinte:
Artigo 8.º
Impedimentos aplicáveis a sociedades
1 – As empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10/prct. por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas.
2 – Ficam sujeitas ao mesmo regime:
a) As empresas de cujo capital, em igual percentagem, seja titular o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva nas condições do artigo 2020.º do Código Civil;
b) As empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, direta ou indiretamente, por si ou conjuntamente com os familiares referidos na alínea anterior, uma participação não inferior a 10/prct..
Artigo 10.º
Fiscalização pelo Tribunal Constitucional
1 – Os titulares de cargos políticos devem depositar no Tribunal Constitucional, nos 60 dias posteriores à data da tomada de posse, declaração de inexistência de incompatibilidades ou impedimentos, donde conste a enumeração de todos os cargos, funções e atividades profissionais exercidos pelo declarante, bem como de quaisquer participações iniciais[15]detidas pelo mesmo.
2 – Compete ao Tribunal Constitucional proceder à análise, fiscalização e sancionamento das declarações dos titulares de cargos políticos.
3 – A infração ao disposto nos artigos 4.º, 8.º e 9.º-A implica as sanções seguintes:
a) Para os titulares de cargos eletivos, com a exceção do Presidente da República, a perda do respetivo mandato;
b) Para os titulares de cargos de natureza não eletiva, com a exceção do Primeiro-Ministro, a demissão.
Adianta-se que é esta a redação atualmente em vigor, sobre a qual incidirá a nossa análise.
Na verdade, a Lei n.º 64/93 irá ser revogada pela recente Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que aprovou o novo regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
Todavia, repete-se, por força do seu artigo 26.º, a mesma entrará em vigor, tão-somente, no primeiro dia da XIV Legislatura da Assembleia da República.
Nesta conformidade, por força dos princípios hermenêuticos vertidos no artigo 12.º do Código Civil[16], não subsistem quaisquer dúvidas de que a análise, a que se procederá neste parecer, terá forçosamente que ser efetuada sob a égide da lei vigente, constante da mencionada Lei n.º 64/93.
III. Da interpretação conforme à Constituição
Em primeira linha, pugna a entidade consulente pela necessidade de in casu compatibilizar o disposto no artigo 8.º, da Lei n.º 64/93, com o princípio da proporcionalidade, por recurso a uma interpretação em conformidade com a Lei Fundamental.
Destarte, importa debater em que consiste e se é curial o recurso a essa interpretação, no caso em presença, mormente à luz dos ditames de proporcionalidade decorrentes do n.º 2 do artigo 18.° da Constituição da República Portuguesa e, na hipótese afirmativa, apurar quais as consequências para a aplicação do direito no caso em presença.
Este Corpo Consultivo já teve oportunidade de se pronunciar sobre esta matéria, nomeadamente, no âmbito do Parecer n.º 9/2014, onde, fazendo apelo aos ensinamentos de KARL ENGISCH[17], se enfatizou que:
“Perante normas polissémicas ou plurissignificativas, especialmente nos casos «em que de antemão se consente uma interpretação mais restritiva e uma interpretação mais extensiva», o intérprete deverá «decidir-se a favor daquele sentido da letra que conduza à compatibilidade da disposição legal interpretada com a Constituição e os seus princípios».
A interpretação conforme à Constituição traduz-se em que a referência do sentido de cada norma ao ordenamento jurídico global «chama a campo uma ‘interpretação sistemática’, fá-la correr em auxílio de uma pura ‘interpretação gramatical’», tendo de particular «o facto de aquela referência ou conexidade do sentido render tributo simultaneamente à elevada hierarquia e à grande capacidade irradiante da Constituição»” [18].
Versando sobre a interpretação conforme à Constituição, comenta, impressivamente, JORGE MIRANDA:
«Trata-se, antes de mais, de conceder todo o relevo, dentro do elemento sistemático da interpretação, à referência à Constituição. Com efeito, cada disposição legal não tem somente de ser captada no conjunto das disposições da mesma lei e no conjunto da ordem legislativa; tem outrossim de se considerar no contexto da ordem constitucional; e isso tanto mais quanto mais se tem dilatado (…) a esfera de ação desta como centro de energias dinamizadoras das demais normas da ordem jurídica positiva (…).
A interpretação conforme à Constituição não consiste então tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja mais conforme com a Constituição quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, embora não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental. E são diversas as vias que, para tanto, se seguem e diversos os resultados a que se chega: desde a interpretação extensiva ou restritiva à redução (eliminando os elementos inconstitucionais do preceito ou do ato) e, porventura, à conversão (configurando o ato sob a veste de outro tipo constitucional (…).
A interpretação conforme à Constituição implica, uma posição ativa e quase criadora do controle constitucional e de relativa autonomia das entidades que a promovem em face dos órgãos legislativos. Não pode, no entanto, deixar de estar sujeita a um requisito de razoabilidade: ela terá de se deter aí onde o preceito legal, interpretado conforme à Constituição, fique privado de função útil ou onde, segundo o entendimento comum, seja incontestável que o legislador ordinário acolheu critérios e soluções opostos aos critérios e soluções do legislador constituinte»[19].
Abordando esta mesma temática, ensina J.J. GOMES CANOTILHO que:
“O sentido do princípio da interpretação conforme a Constituição não deve ser apenas o do favor legis ou do favor conventionis, conducente à sua caraterização como simples meio de limitação do controlo jurisdicional (uma norma não deve considerar-se inconstitucional enquanto puder ser interpretada conforme a Constituição). Se assim fosse seria um mero princípio de conservação de normas. Ora, o princípio da interpretação conforme a Constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei. Desta forma, o princípio da interpretação conforme a Constituição é mais um princípio de prevalência normativo-vertical ou de integração hierárquico-normativa do que um simples princípio de conservação de normas”[20].
Este Autor discorre, ainda, sobre os limites jurídico-funcionais que balizam este princípio hermenêutico, assinalando, como tal, nesta vertente, a regra da preferência do legislador como órgão concretizador da Constituição.
A esta luz, os órgãos aplicadores do direito, máxime os tribunais, no seu múnus, poderão optar por um dos sentidos possíveis da lei, mas está-lhes vedado, nessa tarefa, proceder a uma revisão do seu conteúdo, assim afrontando a liberdade de conformação e concretização do texto constitucional.
Destarte, o intérprete e aplicador do direito não poderá desvirtuar o sentido e o alcance da lei infraconstitucional, com o que se salvaguardará o espaço de liberdade conformadora do legislador ordinário.
Sob este prisma, não se mostra, pois, legitimado o recurso a uma interpretação conforme à Constituição, de feição corretiva, que olvide ou desconsidere completamente, quer a letra da lei interpretanda, quer os fins legítimos visados pelo legislador, à data da sua feitura[21].
Sem prejuízo do que vem exposto, o problema pode e deve colocar-se a outro nível, situado a montante da indagação da conformidade constitucional do citado artigo 8.º da Lei n.º 64/93, o que nos remete para uma outra questão, atinente à sua interpretação, à luz da mens legis e dos demais cânones hermenêuticos elencados pela lei, no âmbito do artigo 9.º do Código Civil.
É justamente esta a problemática de que nos ocuparemos de imediato.
IV. Da interpretação do artigo 8.º da Lei n.º 64/93
IV. 1. Ab initio cumpre enfatizar que este Corpo Consultivo tem emitido inúmeros pareceres, visando lançar luz sobre a complexa tarefa da interpretação da lei, pressuposta pelo artigo 9.º do Código Civil.
Nesta matéria, por modelar, iremos valer-nos das regras hermenêuticas enunciadas no Parecer n.º 61/91, de 12/03/1992 ([22]), que se transcrevem de seguida:
(…) O limite da interpretação é a letra, o texto da norma (x1).
A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma tarefa de interligação e valoração que escapa ao domínio literal (x2).
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o «lugar sistemático» que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico (x3).
O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.
(…) Segundo a doutrina tradicional, o intérprete, socorrendo-se dos elementos interpretativos acabados de referir, acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades de interpretação: interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação revogatória e interpretação enunciativa.
Na interpretação declarativa, o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo (x4).
A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo toma em sentido limitado ou em sentido amplo as expressões que têm vários significados: tal distinção, como adverte FRANCESCO FERRARA (x5), não deve confundir-se com a de interpretação extensiva ou restritiva, pois nada se restringe ou se estende quando entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que parece mais adaptado à mens legis.
A interpretação restritiva aplica-se quando se reconhece que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica e ampla, quis referir‑se a uma classe especial de relações, e tem lugar particularmente nos seguintes casos: 1º se o texto, entendido no modo tão geral como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei; 2º se a lei contém em si uma contradição íntima (é o chamado argumento adabsurdum); 3º se o princípio, aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado (x6)”.
Ora, tal como foi consignado, no âmbito da fundamentação jurídica do Parecer n.º 95/2002, de 24/10/2002[23],
“Na função de interpretação, socorrendo-se dos instrumentos dogmáticos referidos, o intérprete não se deve restringir a uma leitura imediatista do texto da norma, aceitando o sentido que, aparentemente, daí imediatamente decorre mas deve combinar todos esses elementos numa tarefa de conjunto de modo a descobrir o sentido decisivo da norma”.
Neste enquadramento, apelando à emblemática lição de FRANCESCO FERRARA, dir-se-á que o intérprete não deve limitar-se a extrair “de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal”, antes deve “indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as direções possíveis (…)”.
Na esteira deste Autor, importa reconhecer que “A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma jurídica, determinar em toda a amplitude o seu valor, penetrar o mais que é possível (…) na alma do legislador, reconstruir o pensamento legislativo.
Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e representa na vida social uma verdadeira força normativa”[24].
Neste contexto, com pertinência, dos ensinamentos de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA ressuma que:
“(…) mais do que uma obediência cega ao comando verbal da lei, pretende o legislador uma obediência ao conteúdo essencial da sua vontade, fixado sobretudo através dos fins ou objetivos por ele visados.
O intérprete deve inclusivamente desobedecer ao comando da lei se tanto se tornar necessário para salvaguardar o seu objetivo essencial. Deve fazer, noutros termos, uma interpretação corretiva da lei, quando só assim possa alcançar o fim visado pelo legislador”[25].
Aqui se insere a redução teleológica, primitivamente defendida pelos Autores alemães, a qual consubstancia uma correção do teor literal da lei, por demasiado amplo, de harmonia com os ditames da ratio legis e da teleologia própria da lei.
KARL LARENZ explicita em que consiste a redução teleológica, nos termos que a seguir se reproduzem:
“Qualificámos de lacuna «oculta» o caso em que uma regra legal, contra o seu sentido literal, mas de acordo com a teleologia imanente à lei, precisa de uma restrição que não está contida no texto legal. A integração de uma tal lacuna efetua-se acrescentando a restrição que é requerida em conformidade com o sentido. Visto que com isso a regra contida na lei, concebida demasiado amplamente segundo o seu sentido literal, se reconduz e é reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão de sentido da lei, falamos de uma «redução teleológica» (…). É também usual o termo «restrição» (…). A redução teleológica comporta-se em relação à interpretação restritiva de modo semelhante à analogia particular em relação à interpretação extensiva. O âmbito de aplicação da norma umas vezes reduz-se mais do que indica o limite que se infere do sentido literal possível e outras vezes amplia-se. Em ambos os casos, trata-se de uma continuidade de interpretação transcendendo o limite do sentido literal possível. Como este limite é «fluído», pode ser duvidoso, no caso particular, se se trata ainda de uma interpretação restritiva ou já de uma redução teleológica.
(…)
Assim como a justificação da analogia radica no imperativo de justiça de tratar igualmente os casos iguais segundo o ponto de vista valorativo decisivo, também a justificação da redução teleológica radica no imperativo de justiça de tratar desigualmente o que é desigual, quer dizer, de proceder às diferenciações requeridas pela valoração. Estas podem ser exigidas ou pelo sentido e escopo da própria norma a restringir ou pelo escopo, sempre que seja prevalecente, de outra norma que de outro modo não seria atingida, ou pela «natureza das coisas» ou por um princípio imanente à lei prevalecente num certo grupo de casos”[26].
Aderindo a este modo interpretativo da redução teleológica, A. CASTANHEIRA NEVES põe ênfase no facto “de reduzir ou de excluir do campo de aplicação de uma norma casos que estão abrangidos pela sua letra (contra, portanto, o texto da lei) com fundamento na teleologia imanente à mesma norma”.
Mais realça que o intérprete se depara com “uma correção do texto fundada teleologicamente” (Larenz), prosseguindo, portanto, a interpretação para além dos possíveis sentidos do texto ou sacrificando o seu formal sentido impositivo. E se assim estamos já a ultrapassar os limites tradicionalmente traçados à interpretação, isso afinal só nos mostra uma vez mais que a acentuação do “elemento teleológico” – ou seja, a compreensão prático-normativa e não apenas filológico-histórica ou dogmático-analítica das normas jurídicas – implica o abandono de um sentido puramente hermenêutico (hermenêutico-exegético) e a assunção de um sentido verdadeiramente normativo (prático-normativo) na I.J.”[27].
Debruçando-se sobre a interpretação corretiva, e particularmente sobre a redução teleológica, A. SANTOS JUSTO reconhece que, quando o âmbito de aplicação de uma norma se reduz para além dos limites decorrentes da letra da lei, com base na respetiva teleologia e no princípio de justiça de tratar desigualmente o que é desigual, então estamos perante uma redução teleológica, cuja admissibilidade lhe não merece reservas, por se lhe afigurar constituir uma manifestação inequívoca do desenvolvimento do direito[28].
Já JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO manifesta a sua descrença quanto às vantagens da introdução desta figura, admitida pela doutrina alemã, e comenta que a mesma conflituaria com os quadros próprios da ordem jurídica portuguesa.
Sem embargo, acrescenta que “na medida porém que numa ordem jurídica for admissível a interpretação corretiva, poderá aí sustentar-se a equivalência entre interpretação corretiva e redução teleológica. A querela torna-se então terminológica”[29].
De resto, para além do seu hodierno acolhimento doutrinal, os nossos tribunais superiores, nos casos submetidos à sua apreciação e decisão, vêm recorrendo a esta figura da redução teleológica, facto que é sintomático do relevo que a mesma assume na jurisprudência criadora do Tribunal Constitucional e da cúpula da jurisdição comum[30].
Assim, como resulta da argumentação vertida no Acórdão n.º 171/2017 do Tribunal Constitucional, de 5 de abril de 2017, no Processo n.º 550/2016,
“(…) em circunstâncias excecionais, em que é muito elevado e evidente o peso das razões para a não aplicação da regra, admite-se o recurso à chamada redução teleológica, que consiste na operação simétrica à aplicação analógica de uma norma. Nesses casos, por natureza excecionais, justifica-se precisamente aquilo que, em princípio, é contrário ao direito consubstanciado em regras: que o aplicador recu s e a solução acolhida na regra e a substitua pela ponderação dos valores ou princípios relevantes nas circunstâncias. É nesse sentido que a vinculação dos poderes públicos a uma regra constitucional que proíba a retroatividade fiscal poderá admitir exceções em situações de guerra ou calamidade pública”.
IV. 2. Revertendo ao caso que nos ocupa, à luz destes considerandos, perscrutada a primitiva redação do preceito em análise, dela constava o seguinte:
Artigo 8.º
Impedimentos aplicáveis a sociedades
1 – As empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10/prct. por um titular de cargo político ou de alto cargo público ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas, no departamento da Administração em que aquele titular exerça funções.
2 – Considera-se igualmente causa de impedimento, nos termos do número anterior, a detenção do capital pelo cônjuge não separado de pessoas e bens.
Este preceito viria a ser alterado pelo artigo 1.º da Lei n.º 28/95, de 18 de agosto de 1995, que lhe conferiu a atual redação, nos termos da qual:
Artigo 8.º
Impedimentos aplicáveis a sociedades
1 – As empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10/prct. por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas.
2 – Ficam sujeitas ao mesmo regime:
a) As empresas de cujo capital, em igual percentagem, seja titular o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva nas condições do artigo 2020.º do Código Civil;
b) As empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, direta ou indiretamente, por si ou conjuntamente com os familiares referidos na alínea anterior, uma participação não inferior a 10/prct..
Ora, do confronto entre as duas normas, verifica-se que a nova versão do preceito passou a incluir as empresas cujo capital seja detido, numa percentagem superior a 10/prct., por um “titular de órgão de soberania” [31], para além do titular de cargo político ou de alto cargo público, que já eram contemplados.
Por outro lado, do teor da norma do seu n.º 1 foi eliminada a menção ao “departamento da Administração em que aquele titular exerça funções”, constante da anterior redação.
Por sua vez, o seu n.º 2 sofreu uma profunda modificação ao abranger na sua previsão, seja i) as empresas de cujo capital, numa percentagem superior a 10/prct., sejam detentores os ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais, até ao 2.º grau, do titular do órgão ou cargo e, ainda, quem com ele viva em união de facto; seja ii) as empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, direta ou indiretamente, por si ou conjuntamente com os familiares aí referenciados, uma participação não inferior a 10/prct..
Destarte, mercê desta hipotética inflexão do legislador ao regime anterior, a supressão da ressalva constante do segmento final do n.º 1 poderia inculcar, ao primeiro relance, que o legislador pretendeu igualar as empresas impedidas, quer fossem detidas pelo próprio titular do órgão ou cargo, quer pelos seus familiares, aí contemplados.
O que significa que, a ater-nos apenas à letra da lei, pelo menos numa primeira abordagem, seria lícito inferir que, ao alterar a redação do preceito, o legislador quis proceder a uma total equiparação entre as situações de impedimento das empresas detidas ou comparticipadas pelo próprio titular do órgão ou do cargo e as das empresas detidas pelos seus familiares e, daí, abstraiu-se da consideração do órgão do Estado e/ou das demais pessoas coletivas públicas em que o titular desempenha as suas funções.
É que, aparentemente, atenta a fórmula legal utilizada, a supressão do segmento “no departamento da Administração em que aquele titular exerça funções” seria suscetível de revelar o intuito do legislador de abranger na previsão do seu n.º 2 e, consequentemente, de considerar impedidas tais empresas, em relação a todos os concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas, sem distinção quanto ao órgão de soberania ou cargo exercido pelo titular.
Pelo que se impõe escrutinar o móbil do legislador da Lei n.º 28/95, de modo a aquilatar qual o objetivo de política legislativa que presidiu à sua elaboração e aprovação e, outrossim, se esteve no espírito da lei abranger, ou não, as empresas detidas, numa percentagem superior a 10/prct., pelos cônjuges não separados de pessoas e bens, os familiares aí enumerados, e os unidos de facto dos titulares dos órgãos ou cargos, independentemente das funções que estes exercem e da esfera em que se movem na organização político-administrativa do Estado e dos demais entes públicos e, bem assim, da entidade pública que procedeu à abertura do concurso e que se apresenta a contratar bens ou serviços.
IV. 3. Analisados os trabalhos preparatórios da Lei n.º 28/95, apura-se que a Comissão Eventual para Estudar as Matérias Relativas às Questões de Ética e da Transparência das Instituições e dos Titulares dos Cargos Políticos apresentou diversas alterações à Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, para além de outras que irrelevam, nesta sede.
Todavia, em relação ao artigo 8.º aqui em causa, manteve a redação anterior, designadamente, no segmento onde se refere “no departamento da Administração em que aquele titular exerça funções”[32].
Apenas o Partido Socialista apresentou uma proposta de alteração, que incluiu uma modificação ao seu n.º 1, em que mantinha o referido segmento, mas aditava um prazo limite, de modo a que passaria a constar:
“1 — […] em que aquele titular exerça ou tenha exercido funções, no prazo de um ano após a respetiva cessação”.
Na Nota justificativa do Projeto de Lei n.º 568/VI, publicado no Diário da Assembleia da República, de 18 de maio de 1995, foi exarado que “A alteração do regime de incompatibilidade e impedimentos constitui (…) uma necessidade iniludível com vista a assegurar o prestígio e uma absoluta dedicação às funções e, em consequência, um mais eficaz funcionamento das atividades públicas”.
Os Deputados do Partido Socialista apresentaram nova proposta de alteração, no sentido de que passasse a ter a seguinte redação:
“1 — […] no departamento da Administração em que aquele titular exerça ou tenha exercido funções, no prazo de um ano após a cessação das respetivas funções” [33].
Na Reunião Plenária de 7 de junho de 1995, foram aprovados, na generalidade, na especialidade e em votação final global, os textos elaborados pela Comissão Eventual para Estudar as Matérias Relativas às Questões de Ética e da Transparência das Instituições e dos Titulares dos Cargos Políticos, referentes, para além do mais, à Lei n.º 64/93, de 26 de agosto[34].
O Deputado Antunes da Silva, do Partido Social Democrata, sem quaisquer esclarecimentos adicionais, referiu ipsis verbis que, “quanto aos impedimentos aplicáveis a sociedades, fazemos uma correção no sentido de o n.º 1 terminar com a expressão «demais pessoas coletivas públicas»”.
Esta Proposta acabaria por ser votada por unanimidade, tendo sido considerado prejudicada e, por isso, retirada a mencionada proposta do Partido Socialista.
Ora, ao ser eliminada, por razões que não foram explicitadas, a menção constante do segmento final do n.º 1 do artigo 8.º, que provinha da redação anterior[35], por arrastamento, o campo de aplicação do n.º 2 do artigo 8.º foi ampliado de modo a abarcar todas as situações que envolvessem, não só as empresas detidas pelo próprio titular, por si ou conjuntamente com os familiares aí enumerados, mas todas as demais empresas em cujo capital esses familiares fossem titulares, na percentagem de mais de 10/prct., legalmente prevista.
Mas, a ser assim, a pergunta que se coloca é a de saber se o legislador sequer previu e, tendo-o feito, quis esse resultado, quando, no n.º 1 do preceito, suprimiu a exigência de o concurso público e, subsequentemente, de o contrato a celebrar respeitar ao “departamento da Administração em que aquele titular exerça ou tenha exercido funções”, sem que atentasse e, daí, acautelasse minimamente os casos compreendidos no seu n.º 2, em que as razões que militavam a favor dessa eliminação, no que tange ao próprio titular, não estão, todavia, presentes nas hipóteses abrangidas pela previsão das alíneas a) e b) do seu n.º 2.
IV. 4. Ora, importa evocar os fins que o legislador visou atingir, com a consagração legal desses impedimentos, o que vale por dizer, a teleologia da norma em debate.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM traçam as fronteiras entre as figuras da incompatibilidade e do impedimento, enfatizando, para tanto, que:
“O que está em causa na incompatibilidade é, pois, a garantia da imparcialidade da atuação administrativa como valor (puramente) abstrato: é a própria lei que exclui a possibilidade de acumulação — por suspeitar, em abstrato, dos desvios em favor de outras atividades privadas ou públicas dos fins por que se deve pautar o exercício de certas atividades públicas, independentemente da pessoa que se trate e do interesse que ela tenha ou deixe de ter em qualquer decisão. A incompatibilidade não tem, pois, que ver com casos concretos, com procedimentos determinados.
São também garantias de imparcialidade que estão em causa na consagração da figura (e dos casos) de impedimentos; porém, nestes, o que se passa é que o titular do órgão fica proibido de intervir em casos concretos e definidos, o que não se deve a razões abstratas de incompatibilidade entre cargos, mas à pessoa do titular do órgão e ao interesse que ele tem naquela decisão — e exatamente por só respeitar ao caso concreto, o impedimento pode qualificar-se como um incidente do procedimento (à decisão do qual se referem os artigos 45.º, n.º 4, e 46.º, n.º1)”.
Os citados Autores, versando particularmente sobre os impedimentos estabelecidos na Lei n.º 64/93, com manifesta pertinência para o caso em presença, comentam o seguinte:
“(…) A esta dupla forma de proibição de situações inconciliáveis, as leis acrescentam outras modalidades.
Assim, por exemplo, a lei sobre as incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, alterada pela Lei n.º 28/95, de 18 de agosto, e pela Lei n.º 42/96, de 31 de agosto) prescreve, no artigo 8.º, que “as empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10/prct. por titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício da atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas”.
Temos, neste caso, a criação de um “impedimento” ao exercício da atividade privada do titular do órgão: ou seja, em vez de considerar incompatível a titularidade de certos órgãos, por uma pessoa, com a sua participação no capital de sociedades comerciais (ou de proibir uma intervenção no procedimento de concurso do titular do órgão naquela situação), a lei proíbe a empresa em cujo capital ele participa de concorrer”[36].
MARIA DA GLÓRIA DIAS GARCIA e TIAGO MACIEIRINHA, em anotação ao artigo 69.º do novo Código do Procedimento Administrativo[37], observam que:
“Os casos de impedimento traduzem aquelas situações – fixadas taxativamente na lei – cuja verificação inibe os titulares dos órgãos e agentes da Administração Pública de participar, sob qualquer forma, nos procedimentos administrativos e na prática de atos ou na celebração de contratos, por exigências decorrentes do princípio da imparcialidade (cf. Artigo 9.º). Com efeito, as situações descritas na lei são de tal modo ameaçadoras para a realização do princípio da imparcialidade que, sem cuidar de outras ponderações ligadas às circunstâncias particulares de cada caso ou sujeito procedimental, se fixa automaticamente a consequência da proibição de qualquer intervenção destes agentes nos procedimentos administrativos, excecionadas as situações descritas no n.º 2 deste artigo (…)”[38].
Assim, os específicos impedimentos vertidos no artigo 8.º destinaram-se a impedir que a suspeição do favorecimento pessoal ou familiar do titular do órgão ou do cargo manche a imagem pública do próprio ente público, com prejuízo para a prossecução do interesse público e para a consecução dos objetivos de imparcialidade e transparência que forçosamente o devem nortear ou que, por seu turno, as empresas em cujo capital social participe, por si ou conjuntamente com pessoas do seu círculo de confiança, não sofram o anátema de beneficiarem indevidamente de vantagens inerentes à sua particular relação fiduciária com os titulares dos órgãos do poder e que, de outro modo, alegadamente, não obteriam.
A ser assim, a formulação de juízos de desvalor é indissociável do facto de ser a eventual intervenção do titular do cargo político que, em teoria, condicionou ou foi suscetível de ditar o desfecho do concurso público.
O que arreda da sua esfera de abrangência os casos, como os hipotizados no pedido de parecer, em que os concursos públicos foram abertos e tramitaram perante outros órgãos do Estado e/ou pessoas coletivas públicas situadas fora da esfera de ação do governante e em que os subsequentes contratos foram celebrados no termo de um concurso, após o escrupuloso cumprimento de todas as formalidades aplicáveis, prescritas pelo Código dos Contratos Públicos[39].
Ora, se, assumidamente, presidiu à alteração deste normativo o escopo de “assegurar o prestígio e uma absoluta dedicação às funções e, em consequência, um mais eficaz funcionamento das atividades públicas”, tal desiderato não contende com o regime dos impedimentos, mas sim, ao invés, com o das incompatibilidades.
E se os impedimentos ora em causa têm por função assegurar o rigoroso cumprimento dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da transparência, que representa a finalidade ínsita à fixação de um qualquer impedimento, então impõe-se a asserção de que só a tramitação do concurso público perante os serviços do órgão em que o titular desempenha o seu cargo e a ulterior contratação com as empresas detidas pelos seus familiares seria passível de fazer perigar e pôr em crise esses valores com dignidade constitucional.
Vislumbram-se, assim, nos domínios objetivo e teleológico, razões ponderosas para impor a destrinça entre as duas situações: i) quando está em causa o próprio titular ou a empresa que detém em percentagem superior a 10/prct., facto que põe em causa, sobremaneira, os valores subjacentes ao estabelecimento do impedimento e ii) quando o impedimento se reporta às pessoas com quem mantém relações familiares ou de vivência em comum e às respetivas empresas.
Nesta conformidade, há que concluir que, no primeiro caso acima desenhado, inexiste fundamento para uma interpretação que vá para além da letra da lei em busca de uma solução que se adeque à teleologia da norma, porque esta é, à partida, perfeitamente compatível com a solução que deriva da própria letra da lei.
Já no 2.º caso hipotizado, o elemento literal que decorre do preceito revela-se demasiado amplo e abrangente, carecendo, pois, de uma redução teleológica do seu âmbito subjetivo de aplicação, com vista a retirar da sua esfera os casos em que os familiares do titular se candidatam a concurso público perante um ente público situado fora da órbita dos poderes de hierarquia, superintendência ou tutela não meramente inspetiva do Estado ou da pessoa coletiva pública em que o mesmo titular exerce o cargo ou desempenha as suas funções.
Efetivamente, nesta última hipótese, a proteção do princípio da imparcialidade e da boa imagem do serviço público são inegavelmente menos prementes, já que não se coloca com a mesma acuidade o perigo de favorecimento ou de parcialidade em relação a um membro da família, do que em relação ao próprio titular, colocado numa posição de privilégio no aparelho do Estado.
Redução teleológica que, sob a égide do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, se impõe efetuar, para salvaguarda do princípio constitucional da proporcionalidade, na sua tríplice vertente: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Em suma, in casu existe fundamento para uma redução teleológica do disposto no n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 64/93, no sentido de que, em vez de se reportar indiscriminadamente a qualquer concurso público deve referir-se, tão-somente, aos que foram abertos ou correm os seus trâmites no órgão do Estado ou do ente público em que o titular exerce funções ou sobre os quais exerce poderes de superintendência ou tutela de mérito.
IV. 5. De todo o modo, nessa avaliação, urge ponderar que, não obstante o decurso de 24 anos sobre a entrada em vigor da redação conferida pela Lei n.º 28/95 e, do mesmo passo, a introdução de sucessivas modificações noutras disposições da Lei n.º 64/93[40], a redação do artigo 8.º permaneceu inalterada até à data.
Acresce, ainda, que a agora suscitada questão da presumível inconstitucionalidade da sua interpretação literal, por evocada afronta ao princípio da proporcionalidade, nunca foi submetida ao escrutínio do Tribunal Constitucional, ignorando-se se essa omissão foi fruto de uma efetiva aplicação conforme ao seu sentido literal ou, ao invés, se se deveu à sua desconsideração generalizada, por evidente desproporcionalidade da solução que derivaria, exclusivamente, da sua literalidade.
É seguro que a nova Lei n.º 52/2019 veio ao encontro às preocupações expressas pela entidade consulente, mas o legislador, nesta específica matéria, não atentou nas dificuldades de aplicação e ambiguidades da legislação anterior[41].
Assim, o legislador eximiu-se de, entretanto, efetuar uma interpretação autêntica desta disposição, facto que teria dissipado quaisquer dúvidas, no que tange ao regime antecedente e permitido a sua aplicação retroativa, de acordo com a natureza e o alcance da norma interpretativa, espelhados no n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil[42].
V. Da configuração dos direitos fundamentais em confronto
V. 1. A despeito da resposta dada supra, quanto à necessidade do recurso a uma redução teleológica, na interpretação do citado artigo 8.º, não estamos dispensados de abordar a suscitada questão da eventual inconstitucionalidade de uma leitura literal do preceito.
Invoca a entidade consulente que a disposição do referido artigo 8.º representa uma restrição à liberdade de iniciativa económica, garantida pelo artigo 61.° da Constituição da República Portuguesa, estabelecida para salvaguarda de um direito ou interesse constitucionalmente protegido, consubstanciado na imparcialidade da Administração Pública, especialmente prevista no n.º 2 do artigo 266.° da Constituição[43].
Prescreve a norma do n.º 1 do artigo 61.º que ”A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”.
Assim, o direito de iniciativa económica privada, rectius, a liberdade de exercício da iniciativa económica, proclamada na mencionada disposição, foi expressamente delimitado pela Lei Fundamental em função dos “quadros definidos pela Constituição e pela lei” e, ainda, do “interesse geral”.
Este preceito insere-se, na sistemática do texto constitucional, no Capítulo I do Título III que contempla os direitos e deveres económicos, sociais e culturais[44].
O direito de iniciativa privada não integra, assim, o universo dos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II da Lei Fundamental.
Sem embargo, como realça JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE,
“há direitos incluídos no título dos «direitos económicos, sociais e culturais» que são considerados de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias e sujeitos ao respetivo regime (direito de propriedade e liberdade de iniciativa privada), embora apresentem uma menor intensidade de definição constitucional do seu conteúdo e admitam, por isso, um certo grau de conformação legislativa autónoma – tal como acontece, por exemplo, com as «garantias institucionais» no âmbito dos direitos, liberdades e garantias”[45].
De resto, os constitucionalistas atribuem-lhe inequivocamente a natureza de direito fundamental de natureza análoga aos direitos de liberdade consagrados nos artigos 24.º a 57.º da Constituição e daí que, em certa medida, lhe seja aplicável o mesmo regime, ex vi artigo 17.º
Realça RUI CHANCERELLE DE MACHETE que “A liberdade empresarial pressupõe a liberdade contratual e a capacidade de gozo e do exercício de direitos, como é comummente reconhecido e se encontra, de resto, garantido como direito pessoal no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição”[46].
Concretizando o seu pensamento, acentua que:
“Constitui uma manifestação de liberdade-autonomia ou de liberdade-resistência face ao Poder público. É assim um direito fundamental de natureza análoga ao dos direitos, liberdades e garantias previstos no Título II, artigo 24.º e seguintes da Constituição, aplicando-se-lhe o mesmo regime jurídico”.
Mais enfatiza o citado juspublicista que:
“A doutrina sublinha que normalmente a liberdade contratual e, mais em geral, a autonomia negocial não têm relevância autónoma no plano constitucional, mas que a sua garantia, através do instituto de reserva de lei resulta necessariamente das situações subjetivas individualmente configuradas como direitos fundamentais, situações que a pressupõem ou lhe servem de base”[47].
Mas, embora conferindo essa natureza ao direito de iniciativa privada, cooperativa e autogestionária, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, discorrendo sobre as implicações que comporta a atribuição dessa natureza, referem que:
“A natureza análoga diz respeito ao direito, em si mesmo, e não ao núcleo essencial desse direito. A determinação do núcleo essencial de um direito, liberdade e garantia serve como «válvula de segurança» para a proteção desse direito em face de restrições legais ou de intervenções restritivas, mas não serve para restringir a aplicação por analogia de um regime constitucional específico apenas ao respetivo núcleo essencial (…). Todavia, pode suceder que um certo direito fundamental só seja equiparável aos direitos, liberdades e garantias em certos aspetos; em tal caso só nesses aspetos é que se aplica o regime correspondente”[48].
O Tribunal Constitucional já versou sobre esta problemática, nomeadamente, no Acórdão n.º 289/2004, de 27 de abril de 2004, tirado no Processo n.º 578/99[49], onde, fazendo apelo a outros arestos antecedentes, que corroborou, se proferiu o seguinte discurso argumentativo:
“Sobre o âmbito da liberdade de iniciativa económica privada tem-se pronunciado este Tribunal por várias ocasiões. Assim, recordou-se no Acórdão n.º 187/2001 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 50º, pág. 42), retomando anterior jurisprudência:
«Segundo o artigo 61º, n.º 1 (iniciativa privada, cooperativa e autogestionária), “a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.”
Ora, como se escreveu no citado Acórdão n.º 76/85, seguindo a doutrina: “A liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido. Consiste, por um lado, na liberdade de iniciar uma atividade económica (direito à empresa, liberdade de criação de empresa) e, por outro lado, na liberdade de gestão e atividade da empresa (liberdade de empresa, liberdade de empresário). Ambas estas vertentes do direito de iniciativa económica privada podem ser objeto de limites mais ou menos extensos. Com efeito, esse direito só pode exercer-se ‘nos quadros definidos pela Constituição e pela lei’ (n.º 1, in fine), não sendo portanto um direito absoluto, nem tendo sequer os seus limites constitucionalmente garantidos, salvo no que respeita a um mínimo de conteúdo útil constitucionalmente relevante, que a lei não pode aniquilar, de acordo, aliás, com a garantia de existência de um setor económico privado.”
(…)
Sobre os quadros definidos pela lei, disse-se no citado Acórdão n.º 328/94, que “(…) o direito de liberdade de iniciativa económica privada, como facilmente deflui do aludido preceito constitucional, não é um direito absoluto (ele exerce-se, nas palavras do Diploma Básico, nos quadros da Constituição e da lei, devendo ter em conta o interesse geral). Não o sendo – e nem sequer tendo limites expressamente garantidos pela Constituição (muito embora lhe tenha, necessariamente, de ser reconhecido um conteúdo mínimo, sob pena de ficar esvaziada a sua consagração constitucional) – fácil é concluir que a liberdade de conformação do legislador, neste campo, não deixa de ter uma ampla margem de manobra.”
A norma constitucional remete, pois, para a lei a definição dos quadros nos quais se exerce a liberdade de iniciativa económica privada. Trata-se, aqui, da previsão constitucional de uma delimitação pelo legislador do próprio âmbito do direito fundamental – da previsão de uma “reserva legal de conformação” (a Constituição recebe um quadro legal de caracterização do conteúdo do direito fundamental, que reconhece). A lei definidora daqueles quadros deve ser considerada, não como lei restritiva verdadeira e própria, mas sim como lei conformadora do conteúdo do direito.
(…)»
Mais limitado será, todavia, o domínio no qual este direito fundamental beneficia de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, portanto, da sua específica proteção. Este domínio mais restrito diz respeito apenas aos «quadros gerais e aos aspetos garantísticos» da liberdade de iniciativa económica (cfr. Acórdão n.º 329/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44º vol., pág. 129), que digam respeito à liberdade de iniciar empresa e de a gerir sem interferência externa.
É, pois, apenas quanto a este núcleo da liberdade de iniciativa económica privada que, por aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias, e por revestir a natureza de direito de natureza análoga, existe uma reserva de lei parlamentar. Como se sustentou no Acórdão n.º 373/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., pág. 111):
«cabem necessariamente na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por força das disposições combinadas dos artigos 17º e 168º, n.º 1, alínea b)[correspondente ao atual artigo 165º], da Constituição da República, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a atuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias.»
V. 2. Do que vem exposto, flui que a liberdade de iniciativa económica privada apenas é garantida pelo artigo 61.º, n.º 1, nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.
Este direito fundamental beneficia de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias proclamados no Título II do texto constitucional e, portanto, do seu círculo de proteção, de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 17.º e 18.º da Lei Fundamental.
No enfoque conferido pela jurisprudência uniforme e constante dimanada do Tribunal Constitucional, a natureza análoga atribuída à liberdade de iniciativa económica privada materializa-se nas vertentes específicas da liberdade de iniciar empresa e de a gerir sem interferência externa.
Ora, ocorrem limites à prática de determinados atos e à celebração de certos contratos, no âmbito de procedimentos concursais, por empresas cujo capital social seja detido por pessoas conectadas com o titular de cargo político numa relação de grande proximidade, a saber: cônjuge não separado de pessoas e bens, os ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva em união de facto.
Tal como já foi vincado supra, a consagração legal, no n.º 2 do artigo 8.º, de um regime de impedimentos aparentemente tão amplo e irrestrito, carecido, como vimos, de uma redução teleológica, de modo a conter os seus limites nas balizas permitidas pelos elementos literal, histórico, sistemático e racional do preceito, comporta repercussões diretas e gravosas na atividade das empresas impedidas, representando uma verdadeira e própria restrição, subsumível ao regime do artigo 18.º da Constituição.
V. 3. Como acentua acutilantemente PEDRO LOMBA, em anotação ao artigo 117.º, “nenhum princípio constitucional, qualquer que seja a sua importância, está protegido contra hipóteses de conflito com outros princípios constitucionais”[50].
A esta luz, impõe-se proceder a um teste de proporcionalidade, tendo em vista aferir da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, em que o princípio se desdobra.
O regime dos direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 18.º, aplica-se aos direitos, liberdades e garantias e, outrossim, aos direitos fundamentais de natureza análoga, como o impõe o artigo 17.º da mesma Lei Fundamental.
Em face do n.º 2 do artigo 18.º, qualquer restrição a um direito fundamental deverá ser expressamente prevista na Constituição.
A Constituição limita as restrições aos direitos, liberdades e garantias aos casos aí expressamente previstos, deferindo ao legislador ordinário a determinação especificada das hipóteses em que releva essa necessidade, reconduzidas à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
No ensinamento de J.J. GOMES CANOTILHO, o comando constitucional de aplicabilidade direta das normas consagradoras dos direitos, liberdades e garantias impõe “a rejeição da «ideia criacionista» conducente ao desprezo dos direitos fundamentais enquanto não forem positivados a nível legal”.
Mas para além desta asserção, consubstanciada nos artigos 17.º e 18.º, n.º 1, do texto constitucional, traduzida na desnecessidade da mediação de intervenção legislativa para a total operacionalidade/exequibilidade do direito fundamental, o citado Autor extrai outras consequências: os direitos, liberdades e garantias “valem diretamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a constituição”, de harmonia com a norma do n.º 3 do artigo 18.º[51]
A redação atual deste preceito remonta à Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, tendo este permanecido intocado nas posteriores revisões constitucionais.
JORGE MIRANDA comenta, relevantemente, que
“A revisão constitucional de 1982 procedeu neste domínio a três modificações significativas: 1ª) transferiu para o título II um indiscutível direito, liberdade e garantia de todas as pessoas – a liberdade de escolha de profissão ou género de trabalho (hoje art. 47°, n° 1, antes art. 51°, n° 3) – corrigindo assim uma deficiência de colocação; 2ª) dentro do compromisso que permitiu a explicitação da iniciativa privada em sede de direitos fundamentais (art. 61°, e não apenas art. 85°), deslocou para o mesmo título os principais direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores – segurança no emprego, criação de comissões de trabalhadores, direitos destas, liberdade sindical, direitos das associações sindicais, direito á greve e proibição do lockout (novos arts. 53° a 58°); 3ª) dividiu os anteriores preceitos do título II em capítulos de direitos, liberdades e garantias pessoais (arts. 24° a 47°) e de direitos, liberdades e garantias de participação política (arts. 48° a 52°).
Sem embargo de ainda haver direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análoga no título III, torna-se óbvio que, assim, a separação entre os dois títulos passou a repousar num critério essencialmente estrutural”[52].
Densificando o conceito de analogia, em ordem à catalogação dos direitos análogos, discorre VIEIRA DE ANDRADE que:
“Essa analogia de natureza deve, quanto a nós, respeitar cumulativamente, a dois elementos: tratar-se de uma posição subjetiva individual ou de uma garantia que possa ser referida de modo imediato e essencial à ideia de dignidade da pessoa humana, isto é, que integre a matéria constitucional dos direitos fundamentais; e poder essa posição subjetiva ou garantia ser determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional”[53].
Perspetivando esta mesma temática, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA apelam aos critérios do objeto e do grau de densificação constitucional[54].
V. 4. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 411/99, acentuou o postulado segundo o qual «Quando o texto constitucional remete para os termos da lei, fá-lo para efeitos de concretização do direito, não a título de cláusula habilitativa de restrições»[55].
O que nos conduz à imprescindibilidade do recurso a um critério que permita efetuar a destrinça entre a restrição e o condicionamento, nesta área complexa dos direitos fundamentais.
Na ponderação desta problemática, esclarece, pertinentemente, VIEIRA DE ANDRADE que:
”(…) não podem ser consideradas como de restrição aquelas hipóteses em que a Constituição remete para uma determinada legislação autónoma a própria configuração do conteúdo dos direitos e garantias fundamentais. A lei conformadora ou constitutiva não restringe o conteúdo do direito ou da garantia, porque é a ela própria que cabe determiná-lo, para além do conteúdo mínimo do direito ou do núcleo essencial da garantia, que decorrem da Constituição.
É o que acontece, em regra, com os direitos económicos, sociais e culturais, em que a liberdade constitutiva do legislador está sujeita a um respeito vinculado pelo conteúdo mínimo imperativo do preceito constitucional (incluindo naturalmente a proibição da discriminação e do arbítrio), mas também se verifica por vezes no contexto dos direitos, liberdades e garantias, quanto àqueles direitos e faculdades cujo conteúdo é juridicamente construído pelo legislador (…)”[56].
O citado Autor enuncia, a título exemplificativo destes últimos, o caso das liberdades de iniciativa económica, cooperativa e autogestionária ”como são formuladas no artigo 61.º, num contexto de socialização da vida económica”[57].
Todavia, VIEIRA DE ANDRADE não prescinde de salientar que “a distinção entre condicionamento e restrição é fundamentalmente prática, já que não é possível definir, com exatidão, em abstrato os contornos das duas figuras», pelo que «muitas vezes é apenas um problema de grau ou de quantidade»[58].
Neste enquadramento, destaca-se o facto de o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/88, na sua fundamentação jurídica, ter feito apelo aos ensinamentos do referido juspublicista, enfatizando que:
“(…) uma distinção básica deverá logo ter-se aqui em conta, dentro das intervenções legislativas ou das normas legais respeitantes a direitos fundamentais (…): a que decorre justamente entre as normas restritivas desses direitos (normas que encurtam ou estreitam o seu conteúdo e alcance) e as meramente condicionadoras do respetivo exercício (normas que não visam aquele objetivo da redução das faculdades ou potencialidades integradoras do direito em causa e se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício). Com efeito, enquanto as primeiras, para se legitimarem constitucionalmente, haverão de responder ao conjunto de exigências e cautelas a esse respeito consignadas no artigo 18º, nos 2 e 3, da lei fundamental, já tais exigências e cautelas não se põem, por definição, quanto às segundas, as quais, assim, desde logo e designadamente, não necessitam de uma credencial ou previsão constitucional ou previsão constitucional expressa, autorizando ao legislador a sua emissão”.
Nesta senda, doutrinam, concordantemente, os constitucionalistas J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, repisando que:
“(…) só as restrições propriamente ditas – que implicam compressão ou diminuição do âmbito material ou pessoal dos direitos fundamentais – é que carecem de explícita credencial constitucional, o que já não sucede no caso de outras intervenções legislativas na área dos direitos fundamentais, nomeadamente aquilo que a doutrina chama de «regulamentação», «concretização» ou «conformação», figuras que todavia não podem ser concebidas em termos tão complacentes que se traduzam em verdadeiras e próprias restrições não autorizadas dos direitos fundamentais”[59].
V. 5. Nesta perspetiva, o texto que veiculou o pedido de parecer alicerçou a acuidade e pertinência das questões aí suscitadas, ressaltando, para o efeito, as seguintes considerações: α) a restrição à liberdade de iniciativa económica aqui em causa nem sempre será idónea a garantir a imparcialidade da Administração Pública; β) tal restrição é excessiva e, por último, γ) o equilíbrio entre os custos e benefícios que a restrição à liberdade de iniciativa económica acarreta revela-se desproporcional.
Discorrem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS sobre o princípio da proporcionalidade:
“O princípio da proporcionalidade ou da “proibição do excesso”tem vindo a adquirir uma importância crescente enquanto parâmetro de atuação do Estado e da sua Administração. “Tão natural se acabou por converter a omnipresença do princípio que, atualmente é já quase supérflua a questão da sua fundamentação constitucional de tal sorte que se não houvesse outros artigos a acolhê-lo expressamente se diria que ele decorre inquestionavelmente do princípio do Estado de Direito” (JORGE NOVAIS, Os Princípios Constitucionais, pág. 161). Este princípio situa-se pois no cerne da ideia de Estado de Direito. Um Estado de Direito é necessariamente um “Estado proporcional” a sua atuação deve pois ser ponderada, calculável, mensurável (MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma da República, pág. 187), deve atuar segundo uma ideia de “racionalidade de fins e meios de ação” (ob. cit., págs. 145 e 147).
“(…) Poderemos afirmar que o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso tem três exigências fundamentais que simultaneamente o definem no seu enunciado básico. A idoneidade, ou seja, a aptidão objetiva da medida para alcançar o fim público ou universal; a necessidade, isto é, a ausência de medidas alternativas igualmente aptas; e o equilíbrio ou proporcionalidade em sentido estrito. O equilíbrio exige que os custos da medida administrativa do ponto de vista dos direitos e interesses legítimos dos particulares não sejam excessivos face aos benefícios que se visam alcançar para o interesse público. As amplas variações terminológicas que se podem ver, a este respeito, na doutrina, não põem em causa esta convergência essencial de sentido (ainda que subjacente a essas diferenças se possam encontrar diferenças de acentuação deste ou daquele aspeto do princípio).
Enquanto o juízo de idoneidade e necessidade se poderão apoiar em considerações factuais relativamente claras, o juízo de proporcionalidade em sentido estrito exige o recurso a critérios de prevalência geralmente mais discutíveis. Neste último requisito “está sempre presente um sentido de justa medida, de adequação material ou de razoabilidade” (JORGE NOVAIS, As Restrições aos direitos fundamentais…, pág. 753).” [60].
Na ótica da entidade consulente, exposta no pedido, existiria uma restrição inconstitucional à liberdade de iniciativa privada, um direito equiparado a um direito, liberdade e garantia, constitucionalmente tutelado no âmbito do artigo 61.º e de cariz negativo, que vincula o Estado de Direito Democrático[61].
Destarte, independentemente da redução teleológica a que procedemos, importa apurar, por força da solicitação da entidade consulente, se uma interpretação literal desse normativo viola a Lei Fundamental.
Pelo que há que proceder ao teste de proporcionalidade por que pugna a entidade consulente.
Na esteira do que foi explicitado, em sede de interpretação do preceito, impõe-se concluir pela desproporcionalidade do estabelecimento pelo legislador ordinário de uma verdadeira e própria restrição à liberdade de iniciativa económica privada, em função dos interesses de política legislativa que foram por si eleitos, radicados na tutela da imparcialidade e transparência da vida pública.
Efetivamente, uma tal restrição não se mostra indispensável aos fins visados pelo legislador, revelando-se injustificada em função da finalidade que presidiu à instituição desses impedimentos.
Assim, ao onerar os familiares do titular e as empresas por aqueles constituídas com o pesado fardo desses impedimentos, o legislador não curou de assegurar, de modo direto e cabal, mas apenas por modo ínvio e desnecessário, os fins que pretendia atingir.
Por seu turno, o meio utilizado pelo legislador, para alcançar esse desiderato, não é o único idóneo à prossecução dos fins em vista.
Na verdade, o meio escolhido é excessivo e irrazoável, em função dos fins que se propunha conseguir.
Ademais, os custos que o estabelecimento desses impedimentos, na forma tão ampla e irrestrita como foram recortados, são demasiado onerosos ou excessivos para as empresas afetadas, nos seus interesses económicos, por esses específicos impedimentos.
Destarte, pese embora o respeito pela esfera de liberdade de conformação do legislador ordinário, expressamente habilitado pelo legislador constitucional para definir a extensão e o conteúdo essencial do preceito do n.º 1 do artigo 61.º da Lei Fundamental, a restrição operada, nos moldes alargados e em que o foi, atingiu injustificada e desnecessariamente o núcleo deste direito fundamental.
Assim, se é inegável que uma tal limitação à liberdade de iniciativa privada foi instituída pelo legislador, por expressa incumbência constitucional, assume caráter geral e abstrato e se destina a tutelar interesses com dignidade constitucional, é igualmente seguro que, nesta específica vertente, se revela injustificada e comporta sacrifícios excessivamente onerosos para as empresas suas destinatárias.
VI. Da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho
VI. 1. Aqui chegados, cumpre agora apurar e destacar as eventuais diferenças de regime entre o texto legal vigente e o que resulta dos preceitos correspondentes, consagrados no novo diploma.
Conforme já foi realçado supra, a disciplina das incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos foi objeto de significativas alterações, desde os primórdios da sua consagração, através da Lei n.º 9/90, de 1 de março, constando atualmente da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que revogou a Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, objeto do presente parecer.
Importa, desde logo, recordar que os princípios hermenêuticos de aplicação da lei no tempo, ínsitos no artigo 12.º do Código Civil, afastam in casu a aplicabilidade da nova lei.
Ademais, não estamos seguramente perante uma lei interpretativa, na aceção e com os efeitos conferidos pelo artigo 13.º, n.º 1, do mesmo complexo normativo.
Sem embargo, a despeito de ainda não se encontrar em vigor, reveste inegável interesse, na economia da consulta, ponderar e discutir, esquematicamente embora, se a solução dada às questões formuladas permaneceria intocada ou, ao invés, as mesmas mereceriam outro tratamento doutrinário, face ao novo texto legal.
É esta a tarefa que nos propomos realizar, de seguida.
VI. 2. A Lei n.º 52/2019 consubstancia um regime inovador, que se antolha mais completo e perfeito, quando cotejado com a lei que o precedeu.
Assim, a discrepância começa logo no artigo 1.º, na própria definição do objeto do diploma, que não se circunscreve ao regime das incompatibilidades e impedimentos, sendo mais amplo e compreensivo, ao regular o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, suas obrigações declarativas e respetivo regime sancionatório.
Ademais, nos seus artigos 2.º a 5.º, a nova lei ampliou inovatoriamente o universo dos cargos abrangidos no seu âmbito subjetivo de aplicação, aí enunciando, com precisão e rigor, o rol das pessoas singulares que integram a sua previsão[62].
E, no âmbito do seu artigo 9.º[63], o referido ato normativo ocupou-se do repositório legal dos impedimentos constantes dos artigos 8.º e 9.º do regime pretérito.
Nesta sede, releva convocar o mencionado artigo 9.º, que preceitua como segue:
Artigo 9.º
Impedimentos
1 – Os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos estão impedidos de servir de árbitro ou de perito, a título gratuito ou remunerado, em qualquer processo em que seja parte o Estado e demais pessoas coletivas públicas.
2 – Os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10 /prct. do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 (euro), não podem:
a) Participar em procedimentos de contratação pública;
b) Intervir como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos de contratação referidos na alínea anterior.
3 – O regime referido no número anterior aplica-se às empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo, detenha, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau, uma participação superior a 10 /prct. ou cujo valor seja superior a 50 000 (euro).
4 – O regime referido no n.º 2 aplica-se ainda aos seus cônjuges que não se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto, em relação aos procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular.
5 – O regime dos n.os 2 a 4 aplica-se aos demais titulares de cargos políticos e altos cargos públicos de âmbito regional ou local não referidos no n.º 2, aos seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades, em relação a procedimentos de contratação pública desenvolvidos pela pessoa coletiva regional ou local de cujos órgãos façam parte.
6 – No caso dos titulares dos órgãos executivos das autarquias locais, seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades, o regime dos n.os 2 a 4 é aplicável ainda relativamente aos procedimentos de contratação:
a) Das freguesias que integrem o âmbito territorial do respetivo município;
b) Do município no qual se integre territorialmente a respetiva freguesia;
c) Das entidades supramunicipais de que o município faça parte;
d) Das entidades do setor empresarial local respetivo.
7 – De forma a assegurar o cumprimento do disposto nos números anteriores, os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos e os seus cônjuges não separados de pessoas e bens têm direito, sem dependência de quaisquer outras formalidades, à liquidação da quota por si detida, nos termos previstos no Código Civil, à exoneração de sócio, nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais ou à suspensão da sua participação social durante o exercício do cargo.
8 – O direito previsto no número anterior pode ser exercido em relação à liquidação e exoneração da totalidade do valor da quota ou apenas à parcela que exceda o montante de 10 /prct. ou de 50 000 (euro), e, caso o titular do cargo não exerça qualquer uma das faculdades previstas no n.º 7, pode a sociedade deliberar a suspensão da sua participação social.
9 – Devem ser objeto de averbamento no contrato e de publicidade no portal da Internet dos contratos públicos, com indicação da relação em causa, os contratos celebrados pelas pessoas coletivas públicas de cujos órgãos os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos são titulares com as seguintes pessoas com as quais mantêm relações familiares:
a) Ascendentes e descendentes em qualquer grau do titular do cargo;
b) Cônjuges que se encontrem separados de pessoas e bens do titular do cargo;
c) Pessoas que se encontrem numa relação de união de facto com o titular do cargo.
10 – O disposto no número anterior aplica-se ainda a contratos celebrados com empresas em que as pessoas referidas no número anterior exercem controlo maioritário e a contratos celebrados com sociedades em cujo capital o titular do cargo político ou de alto cargo público, detenha, por si ou conjuntamente com o cônjuge ou unido de facto, uma participação inferior a 10 /prct. ou de valor inferior a 50 000 (euro).
11 – O disposto no presente artigo é aplicável às sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais”.
Procedendo a um cotejo com a Lei n.º 64/93, sem preocupações de exaustividade, já que não constitui o tema de estudo, verifica-se que o n.º 1 corresponde, sem alterações, à norma do n.º 1 do anterior artigo 9.º
Assim, o n.º 2 do atual artigo 9.º veio determinar que o impedimento de participar em procedimentos de contratação pública se verifica relativamente i) aos titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e, ainda, ii) às sociedades por si detidas em percentagem superior a 10 /prct. do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000€.
De resto, este pressuposto alternativo, respeitante à percentagem de capital detida na sociedade, constitui uma referência base do atual regime, visto que é, também, exigido nos n.os 3, 8 e 10 do preceito.
O impedimento levado à alínea b) do n.º 2 é inteiramente novo e faz todo o sentido, na senda do impedimento já contido no n.º 1 do preceito em exame.
Assume, igualmente, foros de novidade o seu n.º 4, que subordina a aplicabilidade do n.º 2 aos casos em que os procedimentos de contratação pública tenham sido “desencadeados pela pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular”, exigência esta sem paralelo na anterior legislação.
E, por força do seu n.º 5, este postulado aplica-se aos demais titulares de cargos políticos e altos cargos públicos de âmbito regional ou local, impondo a lei, neste segmento, que os procedimentos de contratação pública sejam “desenvolvidos pela pessoa coletiva regional ou local de cujos órgãos façam parte”.
Nesta ótica se compreende a previsão equivalente, constante do seu n.º 6, aplicável aos titulares dos órgãos executivos das autarquias locais, seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades.
Uma análise perfunctória permite detetar uma ampliação do âmbito objetivo e subjetivo dos impedimentos, relativamente ao anterior diploma. Assim, a nova lei veio incluir, no seu âmbito de aplicação, novas entidades situadas na esfera do poder regional e local, seus cônjuges ou unidos de facto e respetivas sociedades e, ainda, as sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais e, bem assim, estabelecer novos condicionalismos materiais, na verificação dos impedimentos. Indo mais longe, o legislador alargou o impedimento a eventuais situações de prestação de serviço, por banda do titular do cargo, designadamente, a título de consultor, especialista, técnico ou mediador, em atos relacionados com os procedimentos de contratação.
Em adição, esta disposição legal, nos seus n.os 7 e 8, institui um regime alargado e completo, com vista a fazer cessar estas situações de impedimento, matéria esta inteiramente inovadora, que contempla as fórmulas legais passíveis de potenciar o estrito cumprimento do novo regime jurídico e de obviar ao perpetuar dessas situações, ao consagrar uma panóplia de meios legais para lhes pôr cobro.
Por último, os seus n.os 9 e 10 visam dar publicidade, quer no pertinente registo comercial, quer no portal da Internet dos contratos públicos, aos contratos celebrados pelas pessoas coletivas públicas, a cujos órgãos os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos estão adstritos, com as pessoas com as quais mantêm relações familiares próximas e estreitas, a saber: os ascendentes e os descendentes, em qualquer grau, do titular do cargo; os cônjuges que se encontrem separados de pessoas e bens do titular do cargo e, ainda, as pessoas que se encontrem numa relação de união de facto com o titular do cargo.
VI. 3. Enfrentando agora os casos de impedimentos hipotizados na consulta, e, como decorrência, abstraindo dos aspetos do regime legal aplicáveis aos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos de âmbito regional ou local, se atentarmos na letra da lei, intui-se que o novo regime é supostamente mais aberto e flexível do que o anterior.
Expressivo desta afirmação é o facto de exigir, nomeadamente, que os procedimentos de contratação pública tenham sido “desencadeados pela pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular”, requisito sem equivalência no regime pretérito e por cuja relevância jurídica se bateu a exposição que acompanhou o pedido de parecer.
Na verdade, a consagração desta limitação, na disciplina dos impedimentos, é, por si só, passível de fazer cessar ou suprimir a potencialidade de lesão dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da transparência, assim se efetivando o princípio da prossecução do interesse público.
Nesta conformidade, inexiste qualquer impedimento que atinja os cônjuges não separados de pessoas e bens e/ou os unidos de facto com titulares de cargos políticos, se e quando a pessoa coletiva pública contratante seja diversa da pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular.
Mas, em contraponto, não se olvide a consagração, em termos amplos e de largo alcance, de um rigoroso e efetivo dever de publicidade, por força do n.os 9, 10 e 11 deste artigo, em nome da defesa dos valores democráticos da igualdade dos cidadãos e, bem assim, da transparência dos poderes públicos.
VII. Da interpretação da alínea b) do n.º 3 do artigo 10.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto
VII. 1. Nesta vertente, como já foi assinalado, a entidade consulente manifesta dúvidas atinentes à interpretação do regime sancionatório previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 10.° da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto.
Veicula que, nesta exegese, deverá relevar a conduta pessoal do titular do cargo político ou do alto cargo público, no caso concreto, por forma a aferir da sua voluntariedade no incumprimento do dever de imparcialidade da Administração Pública. Mais defende que uma interpretação exclusivamente literal, associada a um potencial automatismo na respetiva aplicação, “levaria a sancionar um titular de cargo político ou alto cargo público por algo que não depende do próprio, isto é, por uma conduta que não é sua, de que pode nem ter conhecimento e que não tem meios para evitar”.
Ab initio reafirma-se, neste âmbito, que, do pedido subjacente ao presente parecer, não ressumam suficientemente recortados os contornos fácticos dos casos concretos que, alegadamente, envolveriam empresas cujo capital social seria detido por familiares de membros do XXI Governo Constitucional[64], as quais, supostamente, teriam contratado com pessoas coletivas públicas não suficientemente identificadas.
De resto, a enunciação das duas questões concretas a que cumpre dar resposta, nos termos fluidos e amplos em que vêm formuladas, é serventuária do alheamento de quaisquer factos concretos e definidos e, como decorrência, da desconsideração de situações específicas.
O problema que iremos versar é, pois, estritamente jurídico, situa-se no foro exclusivamente hermenêutico, valendo para todo o universo de destinatários abrangidos pela previsão e estatuição do mencionado preceito da alínea b) do n.º 3 do artigo 10.º.
Neste contexto, importa realçar, que face à posição assumida neste parecer, o âmbito da sanção já foi substancialmente restringido por força da redução teleológica supra operada.
VII. 2. Importará precisar a natureza das sanções cominadas no mencionado preceito, mormente, apurar se constituem verdadeiras sanções penais, com o consequente regime constitucional e legal que lhes corresponde, traçado na Lei n.º 34/87, de 16 de julho[65].
Neste contexto, cumprirá, assim, destrinçar as sanções de natureza criminal das que assumem outra natureza, mormente política.
Para esse desiderato, convém convocar, de novo, o texto do artigo 117.º, onde se inscreve o arquétipo do estatuto dos titulares de cargos políticos.
Assim, o seu n.º 1 veio estabelecer o princípio inderrogável, ínsito na própria ideia do Estado de Direito Democrático, da responsabilidade política, civil e criminal dos titulares de cargos políticos pelas ações e omissões que pratiquem no exercício das suas funções.
Por seu turno, o seu n.º 2 comete à lei ordinária dispor sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos, as consequências do respetivo incumprimento, bem como sobre os respetivos direitos, regalias e imunidades.
Foi a supracitada Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, que veio dar cumprimento à incumbência constitucional imposta pelo n.º 2, ao traçar o regime das Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos.
Por sua vez, o seu n.º 3 defere, também, ao órgão legislativo competente a determinação dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respetivos efeitos, limitando-se, nesta vertente, a consentir na inclusão da destituição do cargo ou da perda do mandato no elenco das sanções abstratamente aplicáveis.
Na verdade, como decorre inequivocamente do teor literal do preceito e bem observam os constitucionalistas, a Constituição da República Portuguesa não enunciou os bens jurídico-constitucionais protegidos, atribuindo à lei ordinária essa missão[66].
Nesta medida, impunha-se a mediação da lei, em ordem à definição dos tipos de ilícito e à cominação das correspondentes sanções e efeitos, tendo em vista a prossecução dos princípios da tipicidade e da legalidade que enformam o direito penal.
E foi precisamente a protelação do cumprimento desta determinação que esteve na base da prolação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 276/89,[67] que versou e decidiu sobre a inconstitucionalidade por omissão do pertinente complexo normativo: a Lei n.º 34/87, que, nas palavras do citado aresto, veio estabelecer «uma disciplina global, integrada e completa da matéria dos “crimes de responsabilidade» a que se reporta aquele n.º 3.
VII. 3. Nesta vertente do regime sancionatório aplicável, atente-se nas infrações tipificadas no Código Penal[68], especialmente no domínio do Capítulo IV “Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas”, inserido no Título V “Dos crimes contra o Estado” do Livro II “Parte especial” deste Código.
O aludido Capítulo IV, sob a dita epígrafe, prevê e pune, nomeadamente, os crimes de recebimento indevido de vantagem, de corrupção passiva, de corrupção ativa, de peculato, de peculato de uso, de participação económica em negócio, de abuso de poder, entre muitos outros, tipificados nos artigos 372.º a 385.º do mesmo diploma.
Assinala-se que, no que tange ao autor dessas infrações penais, a lei socorre-se do conceito de “funcionário”, na aceção ampla e abrangente que nos dá o artigo 386.º[69].
Porém, no seu n.º 4, este normativo estabelece que:
“A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial”.
Alude-se aqui à citada Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que, por força do seu artigo 1.º, “determina os crimes da responsabilidade que titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos”.
Acresce que, na definição geral que nos fornece o seu artigo 2.º:
“Consideram-se praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, além dos como tais previstos na presente lei, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres”.
Do enunciado deste preceito, decorre, sem ambiguidade, que a fonte da responsabilidade criminal dos titulares pode advir de dois diplomas: a lei penal geral, ou seja, o Código Penal e a própria Lei n.º 34/87, de 16 de julho.
Sucede que, escrutinados os tipos legais de crime constantes do já mencionado Capítulo IV “Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas”, inexiste qualquer um que incrimine a atuação dos titulares de cargos políticos em afronta ao regime legal dos impedimentos.
Frise-se que esta opção legislativa faz todo o sentido, nas situações como as abrangidas pelos artigos 8.º e 10.º, n.º 3, da Lei n.º 64/93 em análise, em que estamos perante ações levadas a cabo, em violação desse regime, não pelo titular do cargo político, mas, ao invés, pelos corpos gerentes ou pela administração das empresas em cujo capital social participam, por si, ou conjuntamente com os cônjuges, com os seus familiares diretos e próximos ou com pessoas com eles conviventes em união de facto.
Do mesmo passo, do elenco dos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos não consta qualquer tipo legal que contemple qualquer uma das condutas previstas no artigo 8.º da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto.
O que constitui uma importante achega ao problema, aqui versado, da eventual natureza penal das sanções aí enunciadas.
Se o legislador visasse criminalizar tais condutas, tê-lo-ia feito na Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que é a sede própria. Mas, compulsado o diploma, constata-se que, a despeito das alterações que lhe foram introduzidas, ao longo de mais de três décadas de vigência, esta matéria não se mostra compreendida no âmbito das ações penalmente previstas e punidas, cujo desvalor ético-jurídico foi reputado de tal modo intenso e gravoso que justificava e impunha a sua relevância em termos jurídico-penais.
VII. 4. A penalista MARIA FERNANDA PALMA refletiu e debateu sobre esta vexata quaestio da responsabilidade penal e política dos titulares de cargos políticos, por infrações perpetradas no exercício das suas funções, nos termos que a seguir se reproduzem:
“Há (…) uma coincidência parcial dos fundamentos do Direito Penal e da responsabilidade política. Ambos radicam nos fundamentos ético-políticos da democracia.
(…) Os fundamentos da responsabilidade política residem na vinculação à vontade dos representados (princípio da representação) e na vinculação institucional dos titulares de órgãos políticos perante os órgãos do poder, podendo falar-se de uma natureza relacional dessa responsabilidade, que se concretiza através de mecanismos previstos nas Constituições. Na responsabilidade penal está em causa uma relação direta com valores, envolvendo o respeito pelos bens essenciais da liberdade e pela organização democrática da sociedade (os fundamentos ético-políticos do Estado de Direito democrático). Desta diferenciação resulta que a responsabilidade política não tem de se justificar por infrações objetivamente tão graves nem de assumir uma natureza excecional, de ultima ratio, como a responsabilidade penal”[70]
Aduz, ainda, a mesma Autora que:
“(…) têm sido concebidas soluções de sanção especificamente política, como a suspensão de funções, perda de mandato e as inelegibilidades, para infrações políticas, sobretudo dos titulares de órgãos políticos. Tais sanções podem ser consagradas diretamente na Constituição ou apenas na lei, devendo ser assegurado, de todo o modo, um procedimento justo e rodeado de garantias que impeçam a sua instrumentalização pela luta política”[71].
A posição por si defendida é a de que a responsabilidade política poderá ser objetiva, não excluindo, pois, em teoria, que revista esta modalidade.
Mas, na sua ótica, tal responsabilidade não prescinde da verificação casuística dos seus pressupostos, incluindo a violação de um padrão de diligência média possível na situação concreta.
Mais adverte que a responsabilidade política por infração dolosa de deveres que acarrete a aplicação de sanções, como a perda de mandato e a inelegibilidade, comporta consequências que são, na sua essência, penais, porquanto irá cercear inexoravelmente, de modo muito significativo, os direitos de participação política do ex-titular do cargo político. Mesmo nesses casos de atuação dolosa do titular, que configurem crimes cometidos por causa e no exercício das suas funções, propugna que, em nome da subsidiariedade do Direito Penal, da necessidade, adequação e necessidade da pena, as sanções políticas, tais como de suspensão de funções, perda de mandato e inelegibilidade, possam esgotar as consequências da própria responsabilidade penal.
Todavia, como corolário da sua conceção, quanto à autonomia e separação entre as duas responsabilidades, mas em que se deparam melindrosas zonas de confluência, remata:
“Uma responsabilidade política que conduza à aplicação de tais sanções assemelha-se à responsabilidade penal, embora seja concebível, sem violação do princípio non bis in idem, que a sanção política seja acompanhada por uma normal sanção penal (como a pena de prisão) desde que não haja violação do princípio da proporcionalidade e a “sanção política” não constitua efeito automático da sanção penal”[72].
Por seu turno, JOSÉ MATOS CORREIA e RICARDO LEITE PINTO referem que “toda esta temática deverá ser melhor enquadrada sob a designação genérica de «responsabilidade constitucional»”. Trata-se de um conceito amplo que engloba, de um lado, a responsabilidade que pressupõe a existência de sanções jurídicas, maxime penais, e do outro, a responsabilidade que tem como resultado as sanções jurídico-políticas (como a destituição ou a censura)”.
Versando sobre os critérios de identificação da responsabilidade política, estes Autores referem que são de natureza orgânica, material e formal.
E, nesta senda, esclarecem que:
“Do ponto de vista orgânico, a responsabilidade política é, em sentido estrito, a responsabilidade de quem governa. Isto significa que a responsabilidade política alcança os membros do Governo e, eventualmente, o Chefe do Estado, mas não, nesta aceção, os membros do Parlamento. Do ponto de vista material, o regime da responsabilidade está definido na Constituição. E tal regime é claro ao precisar que os comportamentos, os atos ou as declarações objeto da responsabilidade são apenas aqueles que são produzidos no exercício de funções políticas. (…) Finalmente, na perspetiva formal, dir-se-á que a responsabilidade se exerce no quadro de regras especiais, em regra no Parlamento, e não nos tribunais ordinários”.
E, no que concerne à distinção entre responsabilidade penal e responsabilidade política, mormente, nas matérias sensíveis como a presunção de inocência, o ónus da prova, a certeza da culpabilidade, o princípio da legalidade ou a natureza pessoal da falta penal, os citados penalistas concluem pela existência de uma clivagem da responsabilidade política, em todos os aspetos verdadeiramente centrais da doutrina jurídico-penal.
Assim, à luz das especificidades da responsabilidade política, consideram que inexiste a presunção de inocência, em razão das funções que o titular do cargo político exerce no âmbito do qual é responsável.
Mais aditam que o ónus da prova recai sobre o titular do cargo político, que a aplicação de uma sanção política não assume necessariamente natureza pessoal, que não carece da comprovação da culpabilidade, atenta a admissibilidade da responsabilidade por factos dos subordinados, que a mesma é, em larga medida, retroativa e, ademais, que não pressupõe o estabelecimento de um numerus clausus de tipos de ilícito.
São estes os traços verdadeiramente distintivos dos dois tipos de responsabilidade, que, na ótica destes Autores, os colocam praticamente nos antípodas um do outro[73].
VII. 5. A entidade consulente veio invocar, em abono da sua posição doutrinal, o entendimento que obteve consagração no Parecer n.º 35/1992, deste Corpo Consultivo, votado em 9 de junho de 1994[74].
Neste conspecto, o supracitado Parecer consagrou o entendimento doutrinário segundo o qual:
“A natureza cautelar e preventiva da incompatibilidade aludida no mesmo artigo 2, alínea d)[75], numa tónica de objetividade que lhe é própria, permite abstraí-la de condicionantes ao nível da ciência e da vontade do titular do cargo, e, por isso mesmo, de implicações ético-subjetivas, por modo que a incompatibilidade não deixará de se verificar sem a cooperação, hoc sensu, intelectual e volitiva do titular na efetivação da contratação relevante no seio da norma, do mesmo passo que o seu alheamento deve relevar na definição, referente à culpa, da responsabilidade consequente”.
E, em ordem a alicerçar essa proposição conclusiva, foi avançada a argumentação que se transcreve de seguida:
“(…) será que a vontade do titular do cargo assume relevância no desenvolvimento do artigo 2.º, alínea b), ou é a mera detenção de participações superiores a 10/prct. o único valor determinante da incompatibilidade?
Pode, na verdade, o titular desconhecer que a empresa em que detém as participações está a contratar com o ente público em que desempenha o cargo, e pode, inclusive, manifestar àquela, sem êxito, a irregularidade da situação.
Seguir-se-á, não obstante, uma resposta positiva quanto à existência de incompatibilidade?
Inclinamo-nos, tudo ponderado, para aceitar a afirmativa. Mas não seria despicienda, também a este propósito, uma clarificação legislativa.
Nesse sentido concorre a natureza cautelar da incompatibilidade, com incidência privilegiada no plano remoto da prevenção em que o conflito de interesses é antevisto como meramente virtual ou potencial.
Sobressai, nessa medida, a tónica de objetividade que permite, em essência, abstraí-la de condicionantes ao nível da ciência e volição do titular, do tipo aludido, e abstraí-la, por isso mesmo, de implicações ético-subjetivas.
Dito de outro modo, a incompatibilidade não deixará de se verificar sem a cooperação hoc sensu, intelectual e volitiva do titular, mas este distanciamento há de por certo relevar na definição, referente á culpa, da responsabilidade consequente.
Julga-se, aliás, que uma diligência razoável, exigível ao titular do cargo, ciente da detenção das participações e do sistema de incompatibilidades que em abstrato o afetam, deverá normalmente obstar à concretização destas.
E não restará ao mesmo, na normalidade dos casos, a possibilidade, ultima ratio, de se colocar ao abrigo da incompatibilidade, alienando participações, ou abstendo-se de assumir ou permanecer no exercício da função?”.
VII. 6. Conquanto sinteticamente explicitado, o pensamento norteador dessa posição doutrinária do Conselho Consultivo merece assentimento, face à redação da Lei n.º 64/93, com que nos confrontamos neste parecer.
De facto, o regime instituído radica no dever destes titulares de cargos políticos atuarem com absoluta independência e isenção, não podendo praticar quaisquer atos, para seu benefício ou de terceiros, que possam pôr em crise a confiança do cidadão no Estado de Direito Democrático e no salutar funcionamento das instituições democráticas.
Inscreve-se, pois, na esfera da tutela da probidade e da transparência do múnus público que desempenham.
Assim, consoante os casos, as sanções são: a demissão, para a hipótese de cargos com natureza não eletiva e a destituição judicial, para o caso de cargos eletivos.
Será que estamos aqui perante típicas sanções penais ou meramente políticas?
É por demais consabido que o direito penal se situa no reduto muito restrito dos bens jurídicos e interesses comunitários de excecional relevo, funcionando a título subsidiário, como ultima ratio, se e quando seria intolerável para a consciência ética da comunidade não prever e sancionar condutas que atingem o cerne, o núcleo duro da vida em sociedade.
Nesta perspetiva, os princípios da imparcialidade e da transparência, que o preceito em causa visa prosseguir e acautelar, embora assumindo inequívoco e indesmentível relevo para a sociedade e para o cidadão comum, não se posicionam no âmago dos direitos e interesses jurídico-penalmente protegidos.
Trata-se de condutas que, na ótica do legislador ordinário, embora possuidoras de um peso ou carga axiológica negativa, não contendem, pelo menos frontalmente, com os bens ético-jurídicos fundamentais da comunidade.
Diferentemente do que sucede com outras ações ou omissões dos titulares de cargos políticos ou de cargos públicos que são ostensivamente portadoras desse desvalor qualificado e, como decorrência, se mostram previstas e incriminadas em sede do direito penal.
Assim, nestes últimos casos, a lei estatui sanções pesadas e restritivas, essencialmente privativas da liberdade, conectadas com condutas que considera gravemente lesivas do interesse público e, como tal, merecedoras de uma particular censura ético-jurídica.
Já nos casos de incriminação do desrespeito do enunciado dos impedimentos legais, as sanções circunscrever-se-ão aos efeitos ou consequências que um incumprimento ou um incumprimento defeituoso dos deveres dos agentes políticos e/ou uma inadequada administração da coisa pública poderão desencadear nos cidadãos e na consequente perda de confiança política nos eleitos, nos partidos que representam, refletindo-se na queda de popularidade, na crítica pública, na perda das eleições a que eventualmente concorram, etc.
Mas não se pense que as sanções políticas são platónicas, insuficientes e ineficazes, de tal modo que as infrações correspondentes atingem foros de impunidade.
A este propósito, veja-se o esclarecedor comentário tecido por J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA que advertem que:
“(…) O facto de se tratar de uma responsabilidade política não significa de modo algum a existência de uma dicotomia ou antagonismo entre responsabilidade «jurídica» e responsabilidade «política». A responsabilidade política é também uma responsabilidade juridicamente conformada, quer através da criação de instituições jurídicas com competência para controlo sobre os atos (tribunais de contas, tribunais administrativos), quer através da definição jurídica, a nível constitucional, de formas exteriorizadas dos atos sancionatórios e de controlo (censura, demissão, exoneração, veto, etc.).
A responsabilidade política pressupõe um poder de exame e de censura política sobre a conduta dos titulares de cargos políticos, efetivando-se, tipicamente, pela possibilidade de destituição, de exoneração, etc. Uma responsabilidade com este âmbito não existe, porém, no que respeita aos titulares dos cargos políticos diretamente eleitos (PR, deputados, etc.), visto que os eleitos não podem ser destituídos, nem o respetivo mandato pode ser revogado. Quanto a estes cargos a responsabilidade política é imperfeita, consistindo apenas na censura pública – responsabilidade difusa”[76].
VII. 7. Redargue a entidade consulente, a dado passo da sua argumentação, acima reproduzida, que se incrimina o titular do cargo público “por uma conduta que não é sua, de que pode nem ter conhecimento e que não tem meios para evitar”[77].
Mas, na nossa ótica, conquanto estejamos perante uma responsabilidade tendencialmente objetiva, é insofismável que, ainda então, lhe subjaz um qualquer ato ou omissão, o que equivale a dizer que a mesma não se divorcia a) da prática pelo agente político de uma conduta merecedora de uma censura política ou b) da omissão de um determinado comportamento que lhe era imposto que assumisse, à luz dos seus direitos e deveres funcionais, e que pura e simplesmente descurou.
De resto, nos casos subsumíveis ao disposto nos n.os 1 e 2, alínea b), do artigo 8.º, é possível detetar-se uma eventual intervenção ilegal do titular do cargo político, ao permitir ou, pelo menos, ao não obstar a que a empresa – em cujo capital detém uma participação numa percentagem superior a 10/prct. – participe em concursos de fornecimento de bens ou serviços, em contratos celebrados com o Estado e demais pessoas coletivas públicas e, consequentemente, pode, em teoria, descortinar-se aqui uma responsabilidade que entronca no seu foro subjetivo e, daí, na culpa.
Todavia, aparentemente, passa-se o inverso, nas situações contempladas na alínea a) do seu n.º 2, em que, em geral, nos deparamos com uma responsabilidade meramente objetiva.
Nesta conformidade, importa questionar se este tipo de responsabilidade exorbita dos parâmetros da adequação, necessidade e proporcionalidade que, em última análise, enformam qualquer direito sancionatório.
Sucede que, qualquer que seja a natureza das sanções constantes do n.º 3 do artigo 10.º em exame – questão que, aparentemente, continua em aberto, face às perplexidades da doutrina e da própria jurisprudência constitucional[78] -, o legislador valorou estas atuações como relevantes, ou seja, como portadoras de uma carga axiológica negativa, de molde a justificar a intervenção punitiva da comunidade, associando-as a uma sanção, independentemente da consciência do ato e da sua volição, por banda do titular do cargo político.
De facto, estão em jogo bens e valores supraindividuais, atinentes ao ideário republicano e ao Estado de Direito Democrático, consagrados no artigo 2.º da Lei Fundamental.
Ora, o simples facto de os agentes políticos ocuparem tão altos cargos, na organização político-administrativa do país, apela à tomada de especiais cautelas pelo legislador ordinário, ao desobrigar-se do mandado que lhe foi outorgado pelo texto constitucional.
Do mesmo passo, situações de eventual aproveitamento dos cargos públicos, para favorecimento dos interesses pessoais ou familiares do seu titular, contendem fortemente com a consciência ética do cidadão comum.
O que nos leva a concluir que, independentemente da natureza das sanções em causa, o que vale por dizer, quer assumam feição política, penal ou disciplinar, o simples facto de revestirem a natureza de “sanções” justifica e impõe que a sua aplicação não seja automática, sem precedência de um determinado procedimento, ainda que reduzido à sua expressão mínima, materializada no exercício do direito de audiência ou do contraditório, justamente a formalidade essencial a cumprir, num verdadeiro Estado de Direito.
De resto, a assacada natureza objetiva das infrações em causa não é de molde a impedir o cumprimento dessa formalidade, porquanto, abstraindo embora de juízos centrados na ideia ético-jurídica de culpa, sempre o agente político poderá impugnar a materialidade dos factos integradoras das infrações que lhe são imputadas e, desse modo, afastar a sua punição.
De todo o exposto, se conclui i) pela natureza política e tendencialmente objetiva da responsabilidade incorrida pelos titulares de cargos políticos pelas infrações ao regime legal de impedimentos e, bem assim, ii) pela não automaticidade das sanções, já que a sua aplicação pressupõe a audiência do agente, de modo a cumprir as exigências do direito de defesa inerente a qualquer regime sancionatório, acolhidas pela Lei Fundamental.
Efetivamente, a norma do n.º 10 do seu artigo 32.º determina, perentoriamente, que “em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.
Cura-se aqui de um imperativo constitucional incontornável, a par dos ditames que decorrem de um Estado de Direito Democrático, proclamado no artigo 2.º, muito especialmente, os estritos limites às restrições dos direitos, liberdades e garantias, impostos pelo artigo 18.º
Observa-se, por fim, que a tramitação do processo relativo a declarações de incompatibilidades e impedimentos de titulares de cargos políticos está regulada no âmbito dos artigos 111.º a 113.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro[79].
Na esteira das considerações aduzidas, atenta a natureza sancionatória, v.g., da demissão ou da destituição judicial, impõe-se a asserção de que são aqui aplicáveis os princípios gerais que conformam esse regime, designadamente, os princípios da audiência e do contraditório e, a optar-se pela natureza subjetiva das infrações, o postulado da culpa.
VII. 8. Perscrutando agora, em traços muito concisos, o regime sancionatório cominado pela Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, observa-se que rege o respetivo artigo 11.º, que prescreve o seguinte:
Artigo 11.º
Regime sancionatório
1 – A infração ao disposto no n.º 2 do artigo 6.º, no n.º 2 do artigo 7.º, no artigo 8.º e nos n.os 2 a 6 e 11 do artigo 9.º pelos titulares de cargos políticos implica as sanções seguintes:
a) Para os titulares de cargos eletivos, com a exceção do Presidente da República, a perda do respetivo mandato;
b) Para os titulares de cargos de natureza não eletiva, com a exceção do Primeiro-Ministro, a demissão.
2 – A infração ao disposto no n.º 2 do artigo 6.º, no artigo 8.º e nos n.os 2 a 5 e 11 do artigo 9.º pelos titulares de altos cargos públicos constitui causa de destituição judicial, a qual compete aos tribunais administrativos.
3 – A infração ao disposto no artigo 10.º determina a inibição para o exercício de funções de cargos políticos e de altos cargos públicos por um período de três anos.
4 – A violação dos artigos referidos no n.º 1 pelo Provedor de Justiça determina a sua destituição por deliberação da Assembleia da República.
5 – Compete ao Tribunal Constitucional, nos termos da respetiva lei de processo, aplicar as sanções previstas no presente artigo relativamente aos titulares de cargos políticos, com exceção:
a) Da perda de mandato de deputados à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, cuja aplicação compete às respetivas assembleias, sem prejuízo dos recursos destas decisões para o Tribunal Constitucional;
b) Dos titulares de cargos políticos previstos na alínea i) do n.º 1 do artigo 2.º
6 – Tem legitimidade para intentar as ações previstas no n.º 2 e no n.º 5 o Ministério Público.
Efetuando o necessário confronto entre os dois regimes sancionatórios, apura-se que, neste conspecto, as sanções são as mesmas que tinham sido cominadas pelos artigos 10.º, n.º 2 e 13.º da lei pregressa, sanções que, como então, divergem consoante a infração cometida e, bem assim, o titular de cargo político ou de alto cargo público que a praticou.
Deste leque de sanções consta, assim, i) a perda de mandato, para os titulares de cargos eletivos, com a exceção do Presidente da República [n.º 1, alínea a)], ii) a demissão, para os titulares de cargos de natureza não eletiva, com a exceção do Primeiro-Ministro [n.º 1, alínea b)], iii) a destituição judicial, para os titulares de altos cargos públicos (n.º 2), iv) a inibição para o exercício de funções de cargos políticos e de altos cargos públicos por um período de três anos, para os titulares de cargos políticos de natureza executiva (n.º 3) e v) a destituição, para o Provedor de Justiça (n.º 4).
Neste aspeto particular, para além de uma concretização e sistematização mais cuidadas, o novo diploma não introduziu alterações de vulto ao regime que revogou e visou substituir.
A ser assim, o novo texto legal não nos oferece uma perspetiva de abordagem diversa da que foi acima empreendida, em função da legislação antecedente, razão pela qual permanece intocado o enfoque concedido no âmbito do item VII. 7. do presente parecer.
VIII. Conclusões
Efetuado este périplo pelo regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, e tendo sido dada resposta às questões formuladas, estamos, pois, em condições de apresentar as seguintes conclusões:
1.ª) O artigo 117.º da Lei Fundamental, no seu n.º 2, veio impor ao legislador o estabelecimento e a conformação de um estatuto próprio e exclusivo dos titulares de cargos políticos, que defina e regule os respetivos direitos, regalias e imunidades e, bem assim, os seus deveres, responsabilidades e incompatibilidades e as consequências do respetivo incumprimento;
2.ª) Por força deste comando constitucional, a Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, veio estabelecer o regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, a qual irá ser revogada pela Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que entrará em vigor no primeiro dia da XIV Legislatura da Assembleia da República;
3.ª) Às questões suscitadas no âmbito do presente parecer, é aplicável o regime decorrente da lei atualmente em vigor, constante da citada Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, de harmonia com os princípios hermenêuticos consagrados no artigo 12.º do Código Civil;
4.ª) O artigo 8.º, da mesma Lei, na sua literalidade, estabelece que as empresas cujo capital seja detido, numa percentagem superior a 10/prct., por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva em união de facto, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas;
5.ª) Pese embora a inequívoca força conformadora da Lei Fundamental, não se mostra necessário, ou possível, dentro dos quadros de uma interpretação conforme à Constituição, lançar mão a uma interpretação corretiva restritiva deste preceito, com vista à sua eventual compatibilização com o princípio da proporcionalidade;
6.ª) Por isso, há que respeitar a esfera de liberdade de conformação do legislador ordinário, expressamente habilitado pelo legislador constitucional para definir a extensão e o conteúdo essencial do preceito do n.º 1 do artigo 61.º da Lei Fundamental;
7.ª) O problema pode e deve colocar-se a outro nível, situado a montante da indagação da conformidade constitucional do citado artigo 8.º da Lei n.º 64/93, o que nos remete para a sua interpretação, à luz da mens legis e dos demais cânones hermenêuticos elencados pela lei, no âmbito do artigo 9.º do Código Civil;
8.ª) A consagração, sob a égide dos princípios da imparcialidade e da transparência, dos impedimentos estabelecidos no referido artigo 8.º, é indissociável da suspeição de que foi a eventual intervenção do titular do órgão ou do cargo que, em teoria, condicionou ou foi suscetível de ditar o desfecho do concurso público;
9.ª) O que arreda da sua esfera de abrangência os casos da alínea a) do n.º 2 do artigo 8.º em que os concursos públicos foram abertos e tramitaram perante outros órgãos do Estado e/ou pessoas coletivas públicas situadas fora da esfera de ação do governante e em que os subsequentes contratos foram celebrados no termo de um concurso, após o cumprimento de todas as formalidades aplicáveis;
10.ª) Descortinam-se, assim, nos domínios objetivo e teleológico, razões ponderosas para impor a destrinça entre as duas situações: i) quando está em causa o próprio titular ou a empresa que detém em percentagem superior a 10/prct., facto que põe em causa, sobremaneira, os valores subjacentes ao estabelecimento do impedimento e ii) quando o impedimento se reporta às pessoas com quem mantém relações familiares ou de vivência em comum e às respetivas empresas;
11.ª) Nesta conformidade, há que concluir que, no primeiro caso acima desenhado, inexiste fundamento para uma interpretação que vá para além da letra da lei em busca de uma solução que se adeque à teleologia da norma, porque esta é, à partida, perfeitamente compatível com a solução que deriva da própria letra da lei;
12.ª) Mas, na segunda situação configurada na conclusão 10.ª, existe fundamento para uma redução teleológica do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 64/93, no sentido de que, em vez de se reportar, indiscriminadamente, a qualquer concurso público de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas, deve referir-se unicamente aos concursos que foram abertos ou correm os seus trâmites sob a direção, superintendência ou tutela de mérito do órgão do Estado ou do ente público em que o titular do órgão ou do cargo exerce as suas funções;
13.ª) Na esteira da jurisprudência constitucional uniforme e reiterada, a liberdade de iniciativa económica privada, proclamada no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, beneficia de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, como decorrência, da sua específica proteção, nas respetivas vertentes da liberdade de iniciar empresa e de a gerir sem interferência externa;
14.ª) Constitui uma verdadeira restrição à liberdade de iniciativa económica privada, nos moldes acima configurados, o estabelecimento, pelo legislador ordinário, de condicionamentos a esse direito fundamental, em termos tão amplos e irrestritos que atinja o seu conteúdo essencial, em afronta à norma do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa;
15.ª) Se não for operada aquela redução teleológica, a restrição ampla e incondicionada imposta pela letra do artigo 8.º às empresas afetadas com o impedimento, representa uma afronta ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, na vertente da exigência da necessidade, face à ausência de medidas alternativas igualmente aptas e do equilíbrio ou proporcionalidade em sentido estrito, reportado a parâmetros de justa medida ou de razoabilidade, e traduzido na não imposição de sacrifícios injustos ou custos desmesurados;
16.ª) As sanções cominadas no n.º 3 do artigo 10.º da mesma Lei n.º 64/93, embora respeitem a uma responsabilidade tendencialmente objetiva, têm como suporte fáctico um qualquer ato ou omissão, pressupondo, ou a prática pelo agente político de uma conduta merecedora de uma censura política, ou a omissão de um determinado comportamento que lhe era imposto que assumisse, à luz dos seus direitos e deveres funcionais, e que pura e simplesmente descurou;
17.ª) Esta responsabilidade de pendor objetivo visa justamente obviar a que a suspeição do favorecimento pessoal e familiar, por banda do titular do órgão ou cargo, não coloque em causa a imparcialidade do próprio órgão e que, por seu turno, não haja o risco de as empresas, em cujo capital social participe, por si ou conjuntamente com pessoas do seu círculo familiar, beneficiarem indevidamente de vantagens inerentes à sua particular relação fiduciária com o titular dos órgãos do poder e que, de outro modo, alegadamente, não obteriam;
18.ª) O legislador valorou tais circunstâncias como relevantes, por portadoras de uma carga axiológica negativa, de molde a justificar a intervenção punitiva da comunidade, associando-as a uma sanção, independentemente da consciência do ato e da volição pelo titular do cargo político;
19.ª) Abstraindo da natureza das sanções constantes do referido n.º 3, quer assumam feição política, penal ou disciplinar, o simples facto de consubstanciarem “sanções” justifica e impõe que a sua aplicação não seja automática;
20.ª) Assim, a aplicação dessas sanções deverá ser precedida de um procedimento, ainda que reduzido à sua expressão mínima, a ser concretizada através do exercício do direito de audiência ou do contraditório, formalidade essencial inarredável, por força do que dispõe a norma do n.º 10 do artigo 32.º da Lei Fundamental.
Notas:
[1] O pedido foi subscrito por Sua Ex.ª o Ministro dos Negócios Estrangeiros, em substituição de Vossa Excelência, tendo sido formulado com expressa menção de urgência. O mesmo deu entrada, em 31 de julho de 2019, na Procuradoria-Geral da República, tendo sido distribuído à Relatora, nessa mesma data.
[2] Nos termos da citada alínea a), ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República incumbe “Emitir parecer restrito a matéria de legalidade nos casos de consulta previstos na lei ou a solicitação do Presidente da Assembleia da República ou do Governo”.
[3] O Estatuto do Ministério Público, atualmente em vigor, foi aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro e a versão atual é a que resulta da redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro.
Efetivamente, foi publicada a Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, que aprovou o novo Estatuto do Ministério Público e revogou expressamente a Lei n.º 47/86, de 15 de outubro. Todavia, por força do artigo 287.º daquela Lei, a mesma só entrará em vigor no dia 1 de janeiro de 2020.
[4] A Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, sofreu inúmeras alterações, que lhe foram introduzidas, consecutivamente, pelas Leis n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, n.º 28/95, de 18 de agosto, n.º 12/96, de 18 de abril, n.º 42/96, de 31 de agosto, Lei n.º 12/98, de 24 de fevereiro, pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março e, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro.
Assinala-se o facto de que a Lei n.º 64/93 ainda se encontra em vigor, pese embora tenha sido revogada pela alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que aprovou o novo regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. A despeito dessa ordenada revogação, de harmonia com o n.º 2 desse normativo, até à eventual alteração dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas, manter-se-ão em vigor, para os titulares de cargos referidos na alínea b) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 64/93, as disposições que lhe sejam aplicáveis. Nos termos do artigo 26.º da Lei n.º 52/2019, esta apenas entrará em vigor no primeiro dia da XIV Legislatura da Assembleia da República.
[5] Incidindo sobre a melhor interpretação deste normativo, vide, por todos, os Pareceres n.º 4/1992 – Complementar B, de 19 de março de 2002, inédito; n.º 45/2012, de 4 de janeiro de 2013, publicado no Diário da República II.ª Série, de 21 de janeiro de 2013, e, ainda, n.º 10/2016, de 16 de junho de 2016, publicado no Diário da República II.ª Série, de 13 de julho de 2016, também acessíveis na base de dados aberta ao público sita em http://www.ministeriopublico.pt.
[6] A Constituição da República Portuguesa, também designada no texto como Lei Fundamental, foi aprovada pelo Decreto de 10 de abril de 1976, tendo sofrido alterações significativas, ao longo da sua vigência. A sua redação atual resulta da Lei n.º 1/2005, de 12 de agosto.
[7] J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2010, págs. 373 a 378.
[8] In Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume 1.º Tomo, Princípios Gerais da Organização do Poder Político, Coordenação Paulo Otero, Almedina, 2008, pág. 451.
[9] Disponível no sítio www.tribunalconstitucional.pt.
[10] As expressões em itálico pertencem ao original, consultável através do sítio www.tribunalconstitucional.pt.
[11] Efetivamente, esta Lei, no seu artigo 3.º, na redação que lhe foi introduzida pela Lei n.º 30/2015, de 22 de abril, estabelece que:
“1 – São cargos políticos, para os efeitos da presente lei:
a) O de Presidente da República;
b) O de Presidente da Assembleia da República;
c) O de deputado à Assembleia da República;
d) O de membro do Governo;
e) O de deputado ao Parlamento Europeu;
f) Representante da República nas regiões autónomas;
g) O de membro de órgão de governo próprio de região autónoma;
h) (Revogada.)
i) O de membro de órgão representativo de autarquia local;
j) (Revogada.)
2 – Para efeitos do disposto nos artigos 16.º a 19.º, equiparam-se aos titulares de cargos políticos nacionais os titulares de cargos políticos de organizações de direito internacional público, bem como os titulares de cargos políticos de outros Estados, independentemente da nacionalidade e residência, quando a infração tiver sido cometida, no todo ou em parte, em território português”.
[12] Por força do n.º 2 do seu artigo 1.ª:
“2. Para efeitos da presente lei, são considerados titulares de cargos políticos:
a) Os Ministros da República para as Regiões Autónomas;
b) Os membros dos Governos Regionais;
c) O provedor de Justiça;
d) O Governador e Secretários Adjuntos de Macau;
e) (Revogada. Esta alínea e) foi revogada pelo artigo 8.º da Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro)
f) O presidente e vereador a tempo inteiro das câmaras municipais;
g) Deputado ao Parlamento Europeu”.
[13] Incidindo sobre a distinção entre incompatibilidades e impedimentos, indica-se, por todos, o Parecer n.º 47/2017, inédito. Aí se aduz que “Do ponto de vista sintagmático, incompatibilidades e impedimentos partem de um perigo de perturbação da imparcialidade, do interesse público e do princípio democrático, distinguindo-se entre si segundo o tipo de perigo: abstrato ou concreto”.
[14] Sobre os antecedentes, vicissitudes e alterações desta Lei, desenvolvidamente, ANA PAULA MARÇALO e JOSÉ MANUEL MEIRIM, Incompatibilidades e Impedimentos de Titulares de Altos Cargos Públicos e de Cargos de Direção Superior / Regime Jurídico: Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2007, págs. 9 a 46.
[15] Trata-se de manifesto lapso, porquanto pretender-se-á aludir a participações sociais.
[16] O Código Civil foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344/66, de 25 de novembro, e a sua redação atual resulta da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro.
[17] KARL ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 6.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, págs. 147 e 148.
[18] O Parecer foi votado em 22 de maio de 2014 e publicado no Diário da República n.º 192, Série II de 2014-10-06, tendo aí sido efetuado um repositório de outros pareceres, designadamente, os pareceres com os n.os 26/98, de 24 de setembro de 1998 (Diário da República, 2.ª série, n.º 279, de 3 de dezembro de 1998), 94/2001, de 22 de novembro de 2002 (inédito), 37/2002, de 23 de outubro de 2003 (inédito), 112/2002, de 10 de abril de 2003 (Diário da República, 2.ª série, n.º 261, de 11 de novembro de 2003), 14/2006, de 28 de setembro de 2006 (Diário da República, 2.ª série, n.º 219, de 14 de novembro de 2006), 26/2006, de 11 de maio de 2006 (Diário da República, 2.ª série, n.º 152, de 8 de agosto de 2006) e 22/2007, de 23 de outubro de 2008 (inédito).
[19] In Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2000, págs. 266 a 270.
[20] J. J. GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, 2003, págs. 1310 e seguintes.
[21] Sobre esta problemática, v., ainda, JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Volume I, 3.ª Edição, págs. 678 e 679.
[22]) Publicado no Diário da República, II Série, n.º 274, de 26/11/1992. A doutrina deste Parecer foi transcrita e seguida no Parecer n.º 46/96, de 9 de janeiro de 1997, publicado no Diário da República, II Série, n.º 74, de 27 de março de 2004.
[23] Publicado no Diário da República, II Série, n.º 292, de 18/12/2002, citando, por sua vez, os Pareceres n.os 62/97 e 19/2002 deste Conselho, em que se ancorou. A doutrina deste Parecer foi, também, acolhida e corroborada no Parecer n.º 110/2003, de 04/12/2003, publicado no Diário da República, II Série, n.º 28, de 03/02/2004. Os pareceres encontram-se, igualmente, disponíveis em http://www.ministeriopublico.pt.
[24] Idem, pág. 128. O itálico pertence ao original.
[25] In Noções Fundamentais de Direito Civil, Volume I, 6.ª Edição Revista e Ampliada, Coimbra Editora Limitada, 1973, págs. 158 e 159. O itálico consta da própria obra.
[26] Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, tradução portuguesa de José Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, págs. 555 a 557.
[27] In Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1971-72, págs. 68 e 69. Esclarece-se que as abreviaturas I.J. do texto são as letras iniciais de «Interpretação Jurídica».
[28] In Introdução ao Estudo do Direito, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2009, págs. 370 a 372.
[29] Idem, pág. 427 e 428.
[30] Por elucidativos do uso deste modo interpretativo, poderemos chamar à colação, por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 171/2017, de 5 de abril de 2017, no Processo n.º 550/2016, n.º 403/2015, de 27 de agosto de 2015, no Processo n.º 773/15 e n.º 435/2011, de 3 de outubro de 2011, no Processo n.º 666/11 e, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, no Processo n.º 1008/07, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 150, de 5 de agosto de 2008.
[31] Os órgãos de soberania estão elencados no artigo 110.º e o correspondente regime consta dos artigos 111.º e 120.º a 224.º da Lei Fundamental.
[32] Diário da Assembleia da República II Série-A, Número 48, págs. 776 a 780.
[33] Diário da Assembleia da República, II Série, Número 43, págs. 689 e 690.
[34] Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 85, de 8 de junho.
[35] Alusão que, de resto, transitara do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 9/90, de 1 de março, na redação da Lei n.º 56/90, de 5 de setembro, que alude a “empresas que contratem com a entidade pública na qual o titular desempenhe o seu cargo”.
[36] In Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição Atualizada, Revista e Aumentada, Almedina, 1997, pág. 244. Os negritos e o itálico constam do original.
[37] O aludido Código foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro.
[38] In Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, de FAUSTO DE QUADROS, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, RUI CHANCERELLE DE MACHETE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, MARIA DA GLÓRIA DIAS GARCIA, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, ANTÓNIO POLÍBIO HENRIQUES, JOSÉ MIGUEL SARDINHA, com a colaboração de TIAGO MACIEIRINHA, Almedina, 2016, págs. 164 e 165.
[39] O Código dos Contratos Públicos, que estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro. O diploma sofreu sucessivas alterações e a sua redação atual decorre do Decreto-Lei n.º 33/2018, de 15 de maio.
Com relevo para o caso em análise, importa convocar, nesta vertente, o seu artigo 1.º-A – designadamente, os seus n.os 1, 3 e 4 – que, sob a epígrafe “Princípios”, prescreve o seguinte:
“1 – Na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação.
2 – As entidades adjudicantes devem assegurar, na formação e na execução dos contratos públicos, que os operadores económicos respeitam as normas aplicáveis em vigor em matéria social, laboral, ambiental e de igualdade de género, decorrentes do direito internacional, europeu, nacional ou regional.
3 – Sem prejuízo da aplicação das garantias de imparcialidade previstas no Código do Procedimento Administrativo, as entidades adjudicantes devem adotar as medidas adequadas para impedir, identificar e resolver eficazmente os conflitos de interesses que surjam na condução dos procedimentos de formação de contratos públicos, de modo a evitar qualquer distorção da concorrência e garantir a igualdade de tratamento dos operadores económicos.
4 – Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se conflito de interesses qualquer situação em que o dirigente ou o trabalhador de uma entidade adjudicante ou de um prestador de serviços que age em nome da entidade adjudicante, que participe na preparação e na condução do procedimento de formação de contrato público ou que possa influenciar os resultados do mesmo, tem direta ou indiretamente um interesse financeiro, económico ou outro interesse pessoal suscetível de comprometer a sua imparcialidade e independência no contexto do referido procedimento”.
[40] Vide supra a nota de rodapé n.º 4.
[41] Atente-se, v. g., na Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro de 1994 (Orçamento do Estado para 1995), cujo artigo 8.º, nos seus n.os 5 e 6, veio esclarecer que o regime da Lei n.º 64/93 não era aplicável, na parte em que fosse inovador, às situações de acumulação validamente constituídas na vigência da lei anterior e, veio, ainda, reportar os seus efeitos à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 413/93, de 2 de dezembro (a propósito, cfr. o Parecer n.º 83/1993, de 10/05/1995, inédito, mas consultável através do sítio http://www.ministeriopublico.pt).
[42] A interpretação autêntica destina-se a interpretar uma lei anterior e é realizada pelo próprio legislador, através de uma lei que, na respetiva hierarquia, é igual ou de valor superior à lei interpretada. A lei interpretativa ”intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado” (v. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Atualizada, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, pág. 62).
Para maiores desenvolvimentos, consultar JOÃO BATISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Coimbra, 1968, págs. 286 e segs. e, ainda, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Almedina, 2000, págs. 176 e 177; JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral 4ª edição, revista, Editorial Verbo, 1987, págs. 561 a 568; A. SANTOS JUSTO, Introdução ao Estudo do Direito, 13.ª Edição Refundida, Almedina, 2008, págs. 324 e 325; FRANCESCO FERRARA, idem, págs. 131 a 134 e, bem assim, HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito, 6.ª Edição, Tradução de João Batista Machado, Arménio Amado Editora, Coimbra, 1984, págs. 463 e 464.
[43] Sobre o princípio da imparcialidade, vide JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, pág. 565 a 567; VIEIRA DE ANDRADE, A Imparcialidade da Administração como Princípio Constitucional, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. L, 1974, págs. 219 a 246 e MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO,O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, Almedina, 1996, especialmente, págs. 86 a 109.
[44] Relevantes são, igualmente, os artigos 80.º, alíneas b) e c), 82.º, n.º 3 e 86.º, que concretizam os parâmetros da organização económico-social do país.
[45] In Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 360, nota de rodapé 3.
[46] Conceitos Indeterminados e Restrições de Direitos Fundamentais por Via Regulamentar, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Joaquim Moreira da Silva Cunha, 2005, pág. 728.
[47] Idem, «A Evolução do Conceito de Serviço Público e a Natureza das Relações entre Concessionário ou Autorizado e Utente», in “Estudos de Direito Público“, Coimbra Editora, 2004, págs. 182 a 186.
[48] «Constituição da República Portuguesa Anotada», Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 375.
[49] Publicado no Diário da República n.º 123/2004, Série II, de 2004/05/26, e também disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
[50] Ibidem, pág. 477.
[51] J.J GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, 2003, págs. 1178 e 1179 e, bem assim, inEstudos Sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, 2004, págs. 145 e segs.
[52] Os direitos fundamentais na ordem constitucional portuguesa, inRevista española de derecho constitucional, Madrid, a. 6 n.º 18, Septiembre-Diciembre 1986, págs. 126 e 127.
[53] VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pág. 186.
[54] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, págs. 373 a 378.
[55] Este aresto foi prolatado em 29 de junho de 1999, no âmbito do Processo n.º 1089/98 e encontra-se disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt.
[56] Obra citada, pág. 213.
[57] Ibidem, nota de rodapé n.º 63.
[58] Ob. cit., pág. 210, nota de rodapé n.º 51
[59] In Fundamento da Constituição, Coimbra Editora, 1991, pág. 133.
[60] JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, págs. 571 a 574. Anota-se que constam do original todas as expressões em negrito e em itálico, insertas nos trechos reproduzidos.
[61] Cfr. os artigos 2.º, 9.º, alínea b), 80.º, alínea c) e 86.º da Constituição da República Portuguesa.
[62] Assim, enquanto o artigo 2.º enumera os cargos políticos, o artigo 3.º enuncia quais os titulares de altos cargos públicos abrangidos, para os efeitos da mesma lei. Por sua vez, os artigos 4.º e 5.º alargam o seu raio de incidência subjetiva aos Juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, ao Provedor de Justiça, aos membros dos Conselhos Superiores e, outrossim, aos Magistrados judiciais e aos magistrados do Ministério Público
[63] Basta atentar no facto de esta disposição ser composta por 11 números, alguns dos quais com várias alíneas, para constatar o grau de densificação e a complexidade da sua disciplina.
[64] O Decreto-Lei n.º 251-A/2015, de 17 de dezembro, que aprovou a Lei Orgânica do XXI Governo Constitucional, foi alterado pelos Decretos-Leis n.os 26/2017, de 9 de março, 99/2017, de 18 de agosto, 138/2017, de 10 de novembro, 90/2018, de 9 de novembro, e, por último, pelo Decreto-Lei n.º 31/2019, de 1 de março, que procedeu à sua republicação.
[65] Esta Lei foi alterada, sucessivamente, pelas Leis n.º 108/2001, de 28 de novembro, n.º 30/2008, de 10 de julho, n.º 41/2010, de 3 de setembro, n.º 4/2011, de 16 de fevereiro, n.º 4/2013, de 14 de janeiro, sendo que a redação vigente lhe adveio da Lei n.º 30/2015, de 22 de abril.
[66] JORGE MIRANDA, Imunidades Constitucionais e Crimes de Responsabilidade, Direito e Justiça, Lisboa, T. 15 n. 2, 2001, pág. 30; JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, pág. 322 e, ainda, J.J. CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª Edição Revista, págs. 120 a 122.
[67] O Acórdão foi votado em 28 de fevereiro de 1989 e respeita ao Processo n.º 23/87. Pode ser consultado no sítio www.tribunalconstitucional.pt.
Reportando-se ao artigo 120.º, n.º 3 [correspondente ao atual 117.º, n.º 3, da Constituição], este aresto frisou que:
“Esta norma constitucional não é exequível por si mesma, não só porque remete a sua efetivação para lei futura, como ainda porque o princípio da legalidade (artigo 19.º n.º 2 da Constituição), na sua vertente da tipicidade, exigiria sempre a definição por lei da conduta punível e da respetiva pena
Prescindiu o legislador constituinte, porém, de tipificar, ou sequer de só genericamente indicar, esses crimes ou delitos – ao contrário do que em anteriores Constituições portuguesas, e nomeadamente nas de 1911 e 1933, acontecia -, e antes cometeu devolveu integralmente ao legislador ordinário a incumbência dessa tipificação, ou seja, o encargo de definir os pressupostos, os termos e os efeitos da responsabilidade qualificada em causa dos agentes políticos.
Não será necessário, por consequência, levar mais longe a análise (nomeadamente em ordem a apurar o exato sentido e natureza da responsabilidade em questão), para se concluir que se está perante uma norma constitucional que só ganha consistência, ou só se torna exequível, com uma ulterior intervenção legislativa, e uma intervenção legislativa especificamente votada ao correspondente objetivo”.
[68] Aduz-se que a redação atual do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, provém da quadragésima nona alteração, que lhe foi introduzida pela Lei n.º 102/2019, de 6 de setembro.
[69] O mencionado preceito do Código Penal prescreve o seguinte:
Artigo 386.º
Conceito de funcionário
1 – Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a) O funcionário civil;
b) O agente administrativo; e
c) Os árbitros, jurados e peritos; e
d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
2 – Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.
3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 335.º e 372.º a 374.º:
a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados de organizações de direito internacional público, independentemente da nacionalidade e residência;
b) Os funcionários nacionais de outros Estados, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
d) Os magistrados e funcionários de tribunais internacionais, desde que Portugal tenha declarado aceitar a competência desses tribunais;
e) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, independentemente da nacionalidade e residência, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
f) Os jurados e árbitros nacionais de outros Estados, quando a infração tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português.
4 – A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial.
[70] Responsabilidade penal e Responsabilidade Política. Criminal responsibility a n d political responsibility, in Revista de Ciências Jurídico-Criminais, N.º 1 (janeiro-junho/2015), págs. 9 a 19, máxime págs. 12 e 13.
Realça-se que a expressão em itálico consta do original.
[71] Ibidem, pág. 15.
[72] Ibidem, págs. 17 e 18.
Pronunciando-se sobre a inconstitucionalidade da declaração de inelegibilidade, como consequência automática da condenação definitiva pela prática de crimes previstos na Lei n.º 34/87, de 16 de julho, veja-se MÁRIO FERREIRA MONTE, A perda de mandato e a inelegibilidade emergente de crimes praticados no exercício de cargos políticos, publicado em Direito Regional e Local, n.º 8, outubro/dezembro de 2009, págs. 56 a 68, em comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 473/2009, de 23/09/2009, prolatado no Processo n.º 771/09.
Todavia, neste específico segmento, em sentido oposto, decidindo pela constitucionalidade da sanção da perda do mandato como efeito automático da pena, chama-se à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 274/90, de 17 de outubro de 1990, tirado no Processo n.º 109/89, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de fevereiro de 1991, onde – versando sobre a disposição do n.º 3 artigo 120.º, correspondente ao atual n.º 3 do artigo 117.º – se remata, com inegável interesse, do seguinte modo:
“(…) Na verdade, a perda do mandato apresenta-se como uma característica historicamente ligada, de forma indissolúvel, ao próprio conceito de crime de responsabilidade [neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., pp. 85 e 86: «Tendo em conta a densificação histórica do conceito, é possível defini-lo com recurso às seguintes características: […] existe uma conexão entre esta responsabilidade criminal e a responsabilidade política, transformando-se a censura criminal necessariamente numa censura política (com a consequente demissão ou destituição como pena necessária)»].
Assim sendo, porque a perda do mandato é inerente à própria ideia de condenação em crime de responsabilidade, não repugna aceitar que ela se configure, in casu, como efeito automático da condenação. Por isso, o artigo 120.º, n.º 3, ao remeter para a lei a determinação dos efeitos da condenação em tal espécie de crimes não podia deixar de ter em vista a perda do mandato, tendo o acrescento efetuado em 1989 sido introduzido apenas com a intenção de dissipar quaisquer dúvidas que, porventura, existissem”.
[73] A Responsabilidade Política, in Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor ANTÓNIO MOTTA VEIGA, Almedina, págs. 785 a 867.
[74] Este Parecer é inédito, mas encontra-se disponível para consulta, em versão integral, in www.ministeriopublico.pt.
[75] Este preceito insere-se no dispositivo da Lei n.º 9/90, de 1 de março – na versão resultante da Lei n.º 56/90, de 5 de setembro – diploma que, como já foi assinalado, constitui o antecedente da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, que ora nos ocupa.
[76] Idem, Volume II, 4.ª Edição Revista, pág. 119.
[77] Apesar da redução teleológica a que se procedeu, esta problemática continua a assumir pertinência relativamente aos casos de participações sociais.
[78] Revela-se sintomático, do melindre que esta problemática tem revestido, o Acórdão n.º 59/95 do Tribunal Constitucional, de 16 de fevereiro de 1995, publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de março, que foi votado com 13 declarações díspares de voto. Este douto aresto pronunciou-se e decidiu sobre a constitucionalidade de sanções equiparáveis às que constituem objeto deste parecer. Na verdade, o citado Acórdão incidiu sobre a fiscalização preventiva da constitucionalidade dos artigos 5.º, n.º 2, e 8.º, n.os 1, 2 e 3, do Decreto n.º 185/VI da Assembleia da República sobre o «controlo público de rendimentos e património dos titulares de cargos públicos», o qual esteve na origem da Lei n.º 25/95, de 18 de agosto. Este ato normativo veio alterar a Lei n.º 4/83, de 2 de abril, que estabeleceu o regime do Controle Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos. Nas normas aí sindicadas, previa-se o incumprimento culposo, por parte dos titulares de cargos públicos, dos deveres previstos no artigo 2.º, e de apresentação da declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais, nos termos do artigo 3.º, e da apresentação da nova declaração pelas mesmas pessoas, nos termos do artigo 4.º, que era punível com a declaração de perda do mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos, ou quando se tratasse da situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º, com a inibição por período de 1 a 5 anos para o exercício do cargo que obrigasse à referida declaração e que não correspondesse ao exercício de funções como magistrado de carreira.
Observa-se que Lei n.º 4/83, de 2 de abril, foi, igualmente, revogada pelo já mencionado artigo 24.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho [que aprovou o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos], a qual, repisa-se, por força do seu artigo 26.º, apenas entrará em vigor no primeiro dia da XIV Legislatura da Assembleia da República.
[79] A Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional) regula a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional. A respetiva redação foi objeto de alterações consecutivas, tendo a oitava, vigente nesta data, sido operada através da Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril. A nona e última versão tem origem na Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro, que aprova o Estatuto da Entidade para a Transparência, a qual entrará em vigor no início da XIV Legislatura, de acordo com o seu artigo 7.º.”