Existem poucas formas tão subtis e graciosas de contar a história de um país e da sua gente como a moda e Alexandra Moura é uma contadora de histórias nata. Fá-lo através da roupa, de uma silhueta retangular, de umas calças sobrecarregadas de bolsos, de um vestido esvoançante que, neste caso, mesmo sem brisa marítima, evoca uma cena portuguesa. É o vestido delas — mães, filhas, irmãs a mulheres –, que se despedem, que esperam, desesperam e recebem de volta os homens que se fazem ao mar. “Gadidae”, coleção que a criadora trouxe à sua segunda passagem pela Semana da Moda de Milão, esta segunda-feira, é um conto sobre conto heroico sobre trabalho, esperança e amor.
“Tem a ver com o lado mais rude da pesca do bacalhau, a bordo dos bacalhoeiros — o trabalho, a dureza do próprio clima e o que aqueles homens vivem em alto mar, que é extremamente agressivo. Depois, o lado mais delicado da mulher, que fica em terra e cuida da casa e da roupa. Há muito saudosismo e, finalmente, há o momento da chegada. É esta dualidade: uma vida tão dura, em que todos sofrem, mas onde existe sempre amor e um certo romantismo à volta de tudo”, conta a designer ao Observador, no final do desfile.
E de romantismo percebe Alexandra. Passou os últimos anos a cimentar um estilo, assente precisamente na mistura de linguagens — de um lado, o desportivo e até elementos de vestuário de trabalho e de peças técnicas, do outro o romantismo dos vestidos de tule, laçadas, bordados e brocados. A criadora encontrou-se aí, numa fórmula que resulta tão bem que lhe serviu de passaporte para esta semana de moda, a convite da própria Camera Nazionale della Moda Italiana. É esse o palco — no caso do desfile desta segunda-feira, um magnífico salão espelhado do Palazzo Reale, em frente ao Duomo — que Alexandra Moura continua a pisar com despretensão e naturalidade, mesmo quando a moda italiana pende para uma lado mais tradicional e, ao mesmo tempo, mais exuberante.
Em Milão, no seu novo atelier lisboeta, em Xabregas, ou na passerelle da Alfândega do Porto, o exercício é o mesmo — desconstruir memórias e emoções para depois modelá-las e cosê-las na forma de tecido. A imagem de dezenas de homens a fazerem-se ao mar nos bacalhoeiros não é de todo distante para Alexandra, natural da Figueira da Foz. Na família, há quem conte histórias sobre espera, saudade e cuidado. Para o próximo verão, a coleção ganhou força e rigidez a partir de materiais como a ganga e de peças como as capas impermeáveis (em parceria com a portuguesa Duffy), os coletes, as calças reforçadas para resistirem em circunstâncias adversas.
Um dos materiais, um tecido francês feito em tear, quase tem a textura e a espessura de uma tapeçaria. É o abrigo na forma de roupa, em contraste com um bloco de vestidos vaporosos sugeridos para o próximo verão, onde Alexandra volta a brincar com transparências, sobreposições, laçadas e nós. Existem dois padrões florais — um deles leve, onde as pequenas flores refletem a luz ganhando um efeito metalizado, o outro mais denso, bordados em tons de rosa. A mulher não é apenas representada com as ideias de fragilidade e expectativa, ela é igualmente “guerreira”, nas palavras de Alexandra.
O género volta a diluir-se. Existem peças unissexo, outras transformáveis através de elásticos e fechos outras ainda multiplicáveis pelas várias possibilidades de styling. No quadro final, qualquer um dos 40 coordenados propostos Alexandra Moura continua a pertencer às ruas, dos vestidos colegiais usados com chunky sneakers às bolsas desportivas criadas naquela que é a primeira colaboração da designer com a Monte Campo. Não é de hoje que a criadora usa os acessórios para estabelecer pontes com outras marcas portuguesas. Nos ténis, continua a unir esforços com a Nobrand. Nas malas, estreou uma outra parceria, com a Juncus. O material, colhido nas margens do Tejo, é manipulado artesanalmente dando rigem a peças de cestaria. Alexandra desenhou, por isso, mochilas que cruzam esta matéria natural com alguns dos tecidos da coleção.
Nas últimas estações, Alexandra Moura tem feito da história e da cultura portuguesas uma espécie de matriz. Porém, sem uma intenção expressa de levar uma narrativa em torno de Portugal aos quatro cantos do mundo. “Na primeira coleção que apresentei em Londres, tive muita vontade de levar alguma coisa portuguesa. Foi aí que fui buscar as nossas relações com Timor. Era um tema forte para levar lá fora. Contámos uma história e demos a conhecer um pouco mais de nós”, explica a criadora.
Mais de dois anos depois, a marca cresceu sem se moldar às passerelles internacionais –“não penso nas semanas da moda, não quero que isso me influencie de modo algum” — e sem a responsabilidade de ser um postal de Portugal no mundo. No Extremo Oriente, criou uma espécie de comunidade em torno do seu nome. Em Tóquio e Osaka estão os mais ávidos consumidores da moda que Alexandra cria e produz no seu país, o mesmo onde o seu trabalho continua muito àquem do pleno (e público) reconhecimento. Quando o tema é Portugal e a sua relação com a moda de autor, continua a ser difícil explicar ao certo o que acontece. Essa é uma longa espera no cais.
Na fotogaleria, veja as imagens do desfile de Alexandra Moura, a fechar a Semana da Moda de Milão. O roteiro internacional da moda segue para Paris, com as apresentações dos portugueses Luís Buchinho, Katty Xiomara e Luís Carvalho marcadas para o dia 26 de setembro. Em outubro, Alexandra Moura irá apresentar a sua coleção para o verão de 2020 na edição nacional do Portugal Fashion, no Porto.
O Observador viajou para Milão a convite do Portugal Fashion.