É difícil acreditar, vendo-o ainda hoje com os seus casacos de ganga ou cabedal, lançando discos e dando concertos, mostrando que está em plena forma — como se viu, aliás, no álbum novo que editou este ano, intitulado Western Stars e considerado pelo Observador um dos melhores discos lançados no primeiro semestre de 2019. Escolhemos cinco canções para homenagear o “Boss” da canção americana.

“Thunder Road” (1975)

Um ano antes, quando o peso da crítica musical na formação de artistas era maior do que o é hoje, a fama de Bruce Springsteen tinha crescido com uma declaração de um crítico da Rolling Stone, Jon Landau, que se viria a tornar quase mitológica. Nesse ano de 1974, Landau viu um concerto de Bruce Springsteen. O “boss” estava então em início de carreira a solo, com os dois primeiros álbuns (Greetings from Asbury Park, N. J. e The Wild, The Innocent & the E Street Shuffle) editados no ano anterior. No músico que tinha então 24 anos, Jon Landau viu o futuro: “Vi flashes do meu passado rock and roll. E vi algo mais: vi o futuro do rock and roll e o seu nome é Bruce Springsteen. E numa noite em que precisava de me sentir jovem, ele fez-me sentir como se estivesse a ouvir música pela primeira vez”.

Um ano depois desta declaração premonitória, Bruce Springsteen editou o seu terceiro álbum e aquele que começaria por inscrever o seu nome em definitivo entre os mestres da canção norte-americana. O disco chamava-se Born to Run, teve logo algum sucesso (estreou-se como o 18º mais ouvido nos EUA na primeira semana) mas tornou-se um clássico ainda mais consensual com o passar dos anos. Além do tema título (e primeiro “single”) e de canções como “Backstreets”, tinha esta “Thunder Road”, em que o “Boss” cantava sobre ouvir o Roy Orbison “a cantar para os solitários” na rádio, sobre a “magia da noite”, sobre personagens que são anti-heróis, sobre ruas e motores, sobre estradas e viagens que são também metáforas de paixão. Estava apresentada uma futura estrela, nascida para correr.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Stolen Car” (1980)

Poucos cançonetistas sobreviveram tão bem às lantejoulas e sintetizadores brilhantes dos anos 1980 como Bruce Springsteen (que o diga, por exemplo, Bob Dylan, uma referência para o “Boss”). Poucos como ele conciliaram, nesses anos, o sucesso de estrela pop com um conjunto de álbuns que são ainda hoje tidos como referências na história da música americana. E a década começava em grande para Bruce, com a edição de um álbum considerado também ele um clássico intemporal da sua discografia: The River.

No final dos anos 1970, já Bruce Springsteen tinha recrutado Jon Landau como manager e produtor musical — mas acima de tudo como mentor. Num extenso perfil da revista New Yorker, o jornalista David Remnick escreveu que Landau “alimentou a curiosidade de Springsteen sobre o mundo além da música”, dando-lhe a ler livros de John Steinbeck e Flannery O’Connor e recomendando-lhe filmes westerns de Howards Hawks e John Ford. Ter-se-á então acentuado o pensamento de Springsteen “em termos mais amplos do que carros e auto-estradas” — começou a pensar “na sua própria história e na história [conturbada] da sua família à luz dos arquétipos americanos e dos arquétipos de classe”. The River é um bom exemplo de um álbum que reflete essa maturidade como cançonetista e este tema, quase sussurrado e espectral, é um dos favoritos do próprio “Boss”. Outra pergunta: quem mais usa manga à cavas com esta pinta?

“Atlantic City” (1982)

Contrariamente ao sucesso e validação como escritor de canções, que só cresciam, o início da década foi pessoalmente duro para Bruce Springsteen, que viveu um período de depressão. Na sua autobiografia oficial, chegou a recordar assim o que sentiu enquanto alinhavava e finalizava o disco Nebraska, de 1982: “Apetece-me chorar mas as lágrimas não vêm. Sinto uma ansiedade mais profunda do que alguma vez senti. À medida que envelhecemos, o peso das nossas coisas por resolver torna-se mais pesado, bem mais pesado. A cada ano que passa, o preço a pagar pela nossa recusa de lidar com esses assuntos torna-se cada vez mais alto”. Fazer terapia ajudou e Bruce Springsteen chegou a bom porto: como recordou na sua biografia, tinha “dançado e conduzido o meu caminho, completamente só (sem drogas nem álcool) até à beira do meu grande mar negro, mas não tinha saltado lá para dentro”.

Recuperado o equilíbrio pessoal, o “Boss” estava pronto para terminar um álbum sucessor do anterior The River. Como tantas vezes acontece com artistas, o período atormentado que viveu aconteceu em simultâneo com uma produção criativa imensa. Springsteen tinha começado a compor canções que figurariam nos dois álbuns seguintes, Nebraska e Born in the USA, inicialmente pensados como um único disco duplo. Não chegariam a fundir-se porque, como recordaria o próprio músico, “a tonalidade da música era demasiado diferente, demasiado oposta” — e o “acústico Nebraska” tinha “uma intransigência a qualquer integração alheia”, não sendo conciliável com o “elétrico Born in the U.S.A.”, apesar de ambos estarem recheados de personagens sofridas, pobres, doridas por serem feridas em direitos que o “Boss” considerava serem o de qualquer americano.

O estatuto de Bruce Springsteen era tão cimeiro por esses anos que dois anos depois, quando o Partido Republicano andava “a querer cooptar até um cu de vaca caso tivesse uma tatuagem da bandeira dos Estados Unidos”, Ronald Reagan, candidato à reeleição como presidente dos EUA, ouviu a canção “Born in the U.S.A.” e elogiou a “mensagem de esperança das canções de um homem que tantos jovens americanos admiram: Bruce Springsteen, de Nova Jérsia”. Bruce Springsteen respondeu sarcástico, num concerto, sugerindo que Reagan não deveria ter ouvido com atenção o seu disco anterior Nebraska e o tema “Johnny 99”, uma balada com homicídios à mistura. Se não ouviu, deveria ter ouvido: pouco polido, sujeito à indignação de quem procurar apenas o moralismo na arte, é um dos seus grandes discos, um dos mais desolados e fantasmagóricos. Esta “Atlantic City” é uma das melhores canções, sobre a dificuldade de arranjar trabalho, sobre “tudo morrer”, sobre explosões de casas, sobre o romance e a paixão frugal como refúgios de um mundo opressor.

“I’m on Fire” (1984)

Sobre o disco Born in the U.S.A., de 1984 já muito foi dito, escrito, comentado e analisado. Já se discutiu o “nacionalismo” da canção que dá título ao disco, que na verdade é mais um lamento — de um veterano de guerra que regressa aos EUA para se deparar com indiferença perante o seu esforço e o seu heroísmo — do que euforia patriótica. Uma canção cheia de força, em que Springsteen sentiu que conseguiu “prender um relâmpago dentro de uma garrafa” (palavras suas, da sua autobiografia), que fazia parte de um disco com tantos possíveis singles (“Dancing In The Dark”, “Cover Me”, “Glory Days”, “Working on the Highway”, “My Hometown”, “No Surrender”, “Bobby Jean”, quase todos…) que só poderia ter originado a “Brucemania” que originou.

Um dos pormenores curiosos deste disco é que depois de tantas canções gravadas, incluindo o tema que deu título ao disco, Bruce Springsteen ouviu Jon Landau dizer-lhe que ainda lhe faltava mais uma canção. Era “Dancing in the Dark”, que Bruce Springsteen sentou-se a escrever naquela mesma noite, a contragosto e depois de ter respondido ao desafio de Landau com “então compõe-a tu”. Este tema “I’m On Fire”, mais desacelerado, para fim de noite e não para agitar corpos como “Dancing in the Dark”, é um dos melhores e é ainda hoje um clássico de Bruce. Ora oiçam.

“We Take Care of Our Own” (2012)

Se se considera habitualmente que nos anos 1990 e os anos 2000 a forma de Bruce Springsteen caiu face ao pico de genialidade dos anos 1980, esta década está a ser produtiva para o compositor e cantor, que apesar do avanço da idade vai lançando discos merecedores de atenção como The Promise (2010), logo no início, ou o novo Western Stars (2019), mesmo a fechar.

Este tema, que serviu de banda sonora durante a campanha de Barack Obama à reeleição em 2012, é Springsteen em estado puro: defensor da ideia de comunidade como poucos. “Tomamos conta dos nossos”, canta ele, como se estivesse a responder esperançosamente ao veterano de guerra de “Born in the U.S.A.”. Um dia o dia chegará. Parabéns, Bruce Springsteen.