A maioria dos melhores filmes de terror “pagão” (ou “folk terror”, como lhes chamam os anglo-saxónicos) têm um elemento sobrenatural. Pode ser um espírito maligno ancestral, uma divindade de uma religião pré-cristã, uma entidade milenar ou um culto demoníaco, e decorrem em boa parte à noite ou em ambientes soturnos: “A Hora do Lobo”, de Ingmar Bergman, “Blood on Satan’s Claw”, de Piers Haggard, “O Sacrifício”, de Ron Hardy, ou “Uma Lista a Abater”, de Ben Wheatley. Sendo também um filme de terror “pagão” como estes, “Midsommar — O Ritual”, de Ari Aster, tem a particularidade de se passar todo à luz do dia, sob a luz do Verão sueco. E o mal que nele se manifesta é obra de mentes e mãos humanas, e está diretamente relacionado com crenças, tradições e práticas muito antigas, preservadas e seguidas nos nossos dias. Talvez fosse mesmo mais exato chamar-lhe um filme de terror “antropológico”.
[Veja o “trailer” de “Midsommar — O Ritual”:]
Os pontos de contacto com “Hereditário”, a fita anterior de Aster, a sua primeira (e muito inferior a “Midsommar — O Ritual”), são muitos, desde haver em ambos uma família atingida pela tragédia, até à existência de um culto sinistro cujas ações vão afetar os protagonistas dramaticamente. Com as referidas diferenças de em “Midsommar — O Ritual” as coisas se passarem debaixo do sol e num cenário pastoral estival, e dos membros da seita não terem poderes mágicos. Preferem, mais banalmente, usar substâncias psicotrópicas retiradas a cogumelos ou plantas. Ou seja, além de pagão (ou antropológico), o terror de “Midsommar — O Ritual” revela-se também da ordem do psicadélico.
Dani (estupenda Florence Pugh) perdeu a mãe e os pais na mesma noite. A tragédia faz perigar a relação já de si periclitante que tem com o namorado, Christian (Jack Reynor). Este e dois dos seus amigos, são convidados por um colega sueco da universidade, para irem à comunidade dos Harga, na Suécia, onde nasceu, e assistirem às comemorações do Solstício de Verão, que só são celebradas a cada 90 anos. Christian, numa tentativa de salvar a relação, diz a Dani para os acompanhar. Lá chegado, o grupo descobre uma comunidade que, não fosse uma camioneta, o Wi-Fi e um ou dois aparelhos de uso doméstico, parece em tudo viver fora deste mundo e do nosso tempo. (Tire-se o chapéu à direção artística de Henrik Svensson, que dá autenticidade e consistência social e cultural aos Harga e a toda a sua circunstância, combinando elementos folclóricos, artísticos e mitológicos escandinavos e germânicos.)
[Veja uma entrevista com o realizador e os dois atores principais:]
Os visitantes vão percebendo aos poucos que aquele local acolhedor e idílico pode não ser o que parece, e que não foram convidados por mero acaso. Tal como em “Hereditário”, Ari Aster volta aqui a construir o terror num crescendo lento e paciente, pela acumulação de detalhes e acontecimentos insólitos, incómodos e inquietantes, criando um clima de ameaça iminente, em vez de andar a pregar sustos e a sobressaltar o espectador (com a exceção da sequência no penhasco). E todo o filme se passa sob o signo da inversão da normalidade (dias quase sem noite, perceção do espaço e do tempo alterada, hábitos, crenças e valores ancestrais rigorosamente respeitados por um grupo coeso e com sentido coletivo, por oposição ao desenraizamento e ao individualismo dos americanos, etc.), sugerida por Aster com um movimento de câmara quando o grupo está a chegar à comunidade, e o céu e a terra trocam de lugar.
[Veja uma entrevista com os atores secundários:]
Servido pelo apurado trabalho do diretor de fotografia Pawel Pogorzelski, que aproveita ao máximo a luminosidade do pino do Estio na Hungria (que faz aqui as vezes da Suécia) para dar ao filme a sua personalidade de pesadelo acordado ao meio-dia no Verão, Ari Aster filma os horrores rituais vindos do fundo das idades e do coração das tradições que se abatem sobre Dani e Christian, com o pormenor, a impassibilidade e a distância de um académico que está a recolher elementos para um trabalho de antropologia (ironicamente, a disciplina que Christian e os seus amigos estão a cursar nos Estados Unidos, tendo decidido fazer dos Harga o objeto das suas teses).
O plano final de “Midsommar — O Ritual”, apoteose soalheira, silvestre e perversa das celebrações solsticiais, onde em vez de expressar horror por tudo o que se passou em seu redor, e sob a sua égide, por uma seita aberrante que habita um contramundo, Dani, agora rainha do Solstício, sorri o sorriso feliz de quem encontrou uma nova família, é um dos mais fabulosos do cinema de terror recente. Ela já não quer fugir dali porque está em casa.