[cuidado, este artigo tem spoilers: se ainda não viu “El Camino: um filme Breaking Bad” e não quer saber nada, não leia mais]
Cada vez que uma série se torna muito famosa, costuma dar-se o caso de alguém se lembrar de fazer uma reunião com os atores. A chamada “reunion”, como dizem os portugueses. Fazem-se mais uns milhões, os fãs salivam por mais uns momentos com os seus deuses ficcionais, é tudo uma grande festa. O filme “El Camino”, uma espécie de sequela da f-e-n-o-m-e-n-a-l série “Breaking Bad” (que terminou há seis anos), estreou-se esta sexta-feira na Netflix, prometia isso mesmo: uma reunião, no sofá, durante duas horas, onde iríamos regressar a Albuquerque, Novo México, e ao seu universo de metanfetaminas, criado pelo professor de química com cancro, Walter White (Bryan Cranston), e o respetivo ex-aluno Jesse Pinkman (Aaron Paul). Lembra-se como acabou o último episódio? Os neonazis motoqueiros a serem metralhados pela arma automática do senhor professor; e o Jesse, feito escravo/cozinheiro (branco) dos nazis, que se liberta finalmente, a fugir num 1978 Chevrolet El Camino. O primeiro morre, o segundo sobrevive. Fim de história. Ou não. E é aí que começa o novo filme de Vince Gilligan. E também o principal problema desta espécie de spin-off: é que para se fazer uma reunião é preciso convidar toda a gente, principalmente os reis da festa. Só que, neste caso, o outro rei (el professor) está deposto.
O filme nem começa mal. Um flashback de Pinkman e Mike (Jonathan Banks), capanga do Gustavo Fring (Giancarlo Esposito, que dá corpo ao melhor vilão das cinco temporadas), e sidekick de Saul Goodman (Bob Odenkirk), no meio do deserto, a falar sobre o futuro — até porque Pinkman está prestes a transformar-se num “adolescente reformado”. Chegam a uma conclusão: se pudessem ir embora, iriam para o Alasca, “a última fronteira”. O caminho de Jesse está traçado, voltamos ao presente, onde o protagonista está aos berros enfiado no El Camino rumo a sabe-se lá onde, a fugir daquele banho de sangue neonazi. E o “lá onde” é, em primeiro lugar, a casa do Skinny Pete (Charles Baker) e de Badger (Matt L. Jones), companheiros de route de Jesse nos tempos idos de drogados precoces.
Logo aí percebemos que está tudo diferente. O ambiente é pesado, a cara estragada de Pinkman está nas notícias, precisa de fugir à polícia, de despachar o El Camino, o duo cómico está preocupado com o seu amigo — e o rebelde infantil agora já nem um charro quer fumar. E porque o ajudam? “Porque és o meu herói, merda”, confessa Skinny, segundos antes de se separarem. E aqui já vamos com 18 minutos do filme. E nem um “bitch” da boca de Jesse para nos alegrar.
[o trailer de “El Camino”:]
É preciso revermos, novamente num flashback, Todd Alquist (Jesse Plemons), o sobrinho pachorrento do nazi-mor (Uncle Jack), que apesar do sorriso inocente, também partilha igual dose de maldade nas mãos (não esquecer que esta personagem matou uma criança inocente só porque os apanhou a tratar de um carregamento de metanfetaminas num comboio). Decide passar o dia com Pinkman porque precisa da sua ajuda para despachar o corpo da empregada das limpezas, que andou a bisbilhotar o que não devia. Devolve-nos alguma da comédia fria que vimos em Breaking Bad, mas a melhor piada é mesmo o facto de Todd estar mais gordo (sim, no flashback, o que não faz sentido nenhum). E de descobrirmos que a pizza favorita de Pinkman é pepperoni. E porque é que acompanhamos isto? Porque o novo e acabado Jesse precisa do dinheiro que Todd deixou em sua casa, para ir sabe-se lá onde.
Voltando ao presente, vemos o protagonista a revirar a casa de alto abaixo, até ser interrompido por dois polícias que, enfim (spoiler alert) são tudo menos polícias, mas sim dois tipos com ligações aos neonazis, que querem ficar com o dinheiro. Até que enfim um plot twist. O que não apaga outro dos momentos caricatos do filme: quando Jesse, às escuras, decide soprar para um isqueiro para o apagar. Isto sim é um plot twist até contrariando as leis da física. Aqueles tempos em cativeiro neonazi retiraram-lhe muitas faculdades. Ou a quem escreveu o guião, principalmente.
Aqui já chegamos à primeira metade do filme. E a mais aborrecida. É quando percebemos o que quer o protagonista: desaparecer, coisa que não foi capaz de fazer ali algures entre a quarta e última temporada. Não é o que queremos todos a certa altura na vida? Pois, mas onde é que íamos? Ah, na parte mais aborrecida do El Camino, certo. Nova identidade, nova vida, o desejo do início do filme, patrocinada por Ed Galbraith (Robert Forster), senhor de terceira idade que vende aspiradores e que ocasionalmente faz “desaparecer” pessoas sabe-se lá para onde — ironicamente, Forster morreu com um cancro no cérebro no dia da estreia do filme, confirmou a produção. “Deitaste-te na tua própria cama”, diz Ed para Pinkman. E nós com ele, infelizmente. Pior: faltavam-lhe 1800 euros para pagar uma nova vida. Plot twist? Sim, porque toda a gente sabe que não se ganha uma nova vida com tão pouco dinheiro, pelo menos em Portugal. Em relação ao filme, também sim. Ficamos a achar que Jesse vai roubar os pais, e depois percebemos que só lá foi buscar a arma do avô para ir buscar 1800 euros aos “polícias” da casa do Todd. É aí que se dá um duelo do faroeste entre Jesse e um dos polícias. Sim, isso mesmo, um duelo. Só faltou aparecer o Clint Eastwood do nada com um chapéu mariachi.
Faltam quinze minutos para o filme acabar e eis que chega Walter White em mais um flashback, aleluia, o deus da droga chegou… só para dizer a Pinkman o quão sortudo ele é por ter tido esta oportunidade de vida. Feito, não há mais Mr. White para ninguém. Soube a Bromalina (esta só vendo o filme). Corta para o Alasca. Sabe-se lá onde é mesmo o Alasca. Jesse agora é Driscoll. O passado é passado. “A vida é o que fazes dela”, e tantas outras frases ocas que recebemos ao longo destes 120 minutos. Um final feliz para o homem que passou o cabo das tormentas era tudo o que menos queríamos. Até porque “Breaking Bad” era a antítese disso: o mundo complexo em que um professor de química se transforma no “Perigo”, e em que um aluno ganzado se transforma num homem, com H grande, profundamente perturbado. Em que num episódio odiamos os protagonistas, e no seguinte estamos até à última a torcer para que vençam. “El Camino” é o oposto. É um caminho de estrada sempre a eito. Sem curvas, sem emoção. Sem nada. Queria dar uma saída a Pinkman, e acabou a estacioná-lo no Alasca. E isto ensina-nos outra coisa: as reuniões não são sempre boas ideias, principalmente quando já não vemos aquele velho amigo há muiiiito tempo.