Não podemos dizer que a gastronomia portuguesa sempre teve sentido estético, sempre se preocupou com o empratamento ou sempre se quis vestir bem. Desde o princípio que somos mais substância do que forma, e isso nunca fez mal: o que nos deixava mesmo felizes era fechar os olhos e enfiar a cara num prato de feijão e couve e enchidos como se a nossa vida dependesse disso. E às vezes dependia mesmo. Até nos incomodava o que era demasiado bonito, tudo o que nos soava a ai-não-me-toques-que-me- desmancho. Desconfiávamos. O que era para emoldurar não era para comer, a comida a sério transbordava do prato e sobrava para o almoço do dia seguinte. Pelo menos, antes do Instagram. Não que ele seja absolutamente culpado pela evolução do design no packaging das marcas portuguesas – divide os louros com a vontade de exportar o que de melhor se faz por cá –, mas ajudou. Afinal, se pudermos partilhar uma mão de vaca com grão dentro de uma lata desenhada por Julião Sarmento (ainda não existe, mas agora precisamos mesmo que se torne real, por favor), temos o melhor de dois mundos. Continuamos a querer comida para a alma, mas a alma entretanto ganhou um par de vistas e quer comida bonita também. Se podemos ter tudo, porquê ter só metade?
José Gourmet
Adriano Ribeiro, piloto, e Luís Mendonça (Gémeo Luís), professor universitário de design, trabalhavam e viviam em Macau. Eram apaixonados por gastronomia portuguesa – quem não? – e, no meio da tempestade que foi a crise económica de 2008, olharam à volta e perceberam que os nossos produtos tinham pouca ou nenhuma valorização no mercado internacional. Lançaram-se à procura dos melhores produtores, Luís desenvolveu a imagem gráfica, ainda que todas as embalagens sejam desenhadas por um artista diferente, convidado por si, e a José Gourmet nasceu. Nasceu nas conservas, nos doces, no mel, no vinagre e no azeite, nos licores, na aguardente. Nasceu na qualidade, cresceu na beleza e amadureceu na certeza de não parar por aqui.
Lisbon Tea Co.
Reinventar a maneira como se bebe chá não é uma tarefa leviana, até porque há poucas maneiras erradas de beber chá. Mas foi exatamente isso que Nuno Campos e Ernesto Fonseca quiseram fazer. Afastando uma visão purista e tradicional do ritual, a Lisbon Tea Co. faz-nos sentir que estamos a ultrapassar uma linha que não era suposto ser transposta. Imagine-se a beber uma infusão de pastel de nata e canela. Ou chá com aroma de vinho do Porto ou com pedaços de ananás dos Açores. É aventureiro, não é? Mas a vida são dois dias, o Carnaval são três e tanto um como outro são demasiado curtos para não experimentar tudo o que nos deixa desconfortáveis. Desconfortáveis não são, no entanto, as embalagens: com linhas de art déco, bom lettering e ilustrações mais clássicas do que as infusões, estes chás ficam tão bem na prateleira quanto numa bucket list.
Be Aromatic
Antes de encontrarem a Quinta dos Choupos, Rute Porto e o marido, João, viram 35 terrenos no Alentejo. Tinham decidido mudar de vida. Mudar-se para o campo, à procura de terra, à procura de paz. Para Rute, designer de comunicação, era um regresso e para João, arquiteto paisagista, uma experiência. Encontraram, finalmente, aqueles oito hectares perto de Évora. Cultivaram três deles, maioritariamente com ervas aromáticas, guardaram cinco para que a natureza vivesse por si, e para que eles vivessem com ela. Durante sete anos experimentaram, erraram, começaram de novo. Aprenderam a respeitar o solo e a água. A Be Aromatic nasce, assim, de uma observação constante e de uma reverência profunda, como toda a agricultura sustentável tem de ser. Tem dentro dela o Alentejo – do sal, do azeite, das flores, do mel – embrulhado sem floreados e a exigir uma ligação direta e real com a terra e com a origem de tudo.
Not Guilty Nuts
Hoje em dia sentimo-nos culpados por tudo – comer de mais, comer de menos, não comer o certo, comer sem publicar fotografias nas redes sociais – a um ponto tão extremo que a culpa podia muito bem ser a epidemia desta geração, não fosse a ansiedade ganhar-lhe a corrida. Por isso mesmo, passamos boa parte do nosso tempo à procura de marcas em que confiemos, que sejam boas e nos encham as medidas, que sejam giras e éticas e sustentáveis. Ainda que isto canse, compensa. A Not Guilty, projeto da fábrica de chocolates Casa Grande lançado no início deste ano, só se confessa culpada em cumprir todos os requisitos supracitados. Do chocolate negro à manteiga de amêndoa, os produtos chegam-nos em frascos dignos de uma banda desenhada em que usar óleo de palma é coisa pré-histórica. Se comer chocolate pode ser um alívio, contem connosco.
Eattitude
Em 2012, Catarina e Tomás Borges de Castro tiveram a primeira filha. De repente, parece que estamos a terminar um romance e que a frase lógica a seguir será “E foram felizes para sempre”. Só que não foram. Porque seguiu-se uma procura incessante por papas saudáveis, biológicas e com pouco teor de açúcar mas, ainda assim, com sabor, que acabou por se tornar um pesadelo. Plot twist: o casal começou a fazer granola em casa e a triturá-la. A filha adorou. O Universo também, e em 2017 nasceu a Eattitude, uma marca com tudo para dar certo: Tomás, escritor, Catarina, designer gráfica, família e amigos, provadores profissionais de granola. A isto juntaram-se uns bons quilogramas de consciência ambiental: preferência por produtores locais, a não utilização de ingredientes que ponham em causa espécies animais e uma luta constante pela menor utilização de plástico possível. O resultado final é um bom produto, envolvido numa embalagem com personalidade que permite dizer, agora sim, que foram felizes para sempre.
O Melhor do Ribatejo
A história do Chico e da Rosa podia ser um fado, e é mesmo, mas também é uma das componentes mais castiças d’O Melhor do Ribatejo, marca que nasceu em Santarém em 2013. O nome fala por si e até podíamos nem dizer mais nada. Mas qual seria a graça disso? E graça não falta a esta marca. O Chico e a Rosa vão falando ao longo das embalagens, que podem ser de sal de Rio Maior aromatizado com ervas e especiarias da serra dos Candeeiros, mas também podem ser de mel de rosmaninho, compotas de fruta madura ou de um picante aromatizado com folha de louro verde, que é “só para macho de patilha rija”, o que até é mais forma de falar do que, propriamente, machismo – as patilhas e a rijeza não escolhem sexo. Se o melhor do Ribatejo está nos pequenos produtores, os pequenos produtores são a alma d’O Melhor do Ribatejo. Para além do Chico e da Rosa, claro.
Feitoria do Cacao
Numa roça em São Tomé, Susana Tavares e Tomoko Suga perguntaram a uma das mulheres que lá trabalhavam porque é que, tendo tanto cacau e cana-de-açúcar disponíveis, não se produzia ali chocolate. A resposta foi tão simples como desarmante: “Não sabemos fazer”. Susana e Tomoko decidiram aprender. Do grão à tablete. No final de 2015, cerca de um ano e meio depois daquela conversa, a Feitoria do Cacao nascia em Aveiro. Contam que “entender a potência e o comportamento de cada cacau/chocolate e saber trabalhar com ele é como entender a personalidade de uma pessoa e lidar bem com ela”. Difícil portanto. Contam também que o que nos parece azulejo português a enrolar um pedaço de céu foi desenvolvido pela artista japonesa Maho Iwanaga. Todas as embalagens são pintadas à mão e já foram distinguidas com um Gold Award na categoria de Packaging – Bar Wrappers dos Academy of Chocolate Awards 2018. Ou seja, este foi considerado o chocolate mais bonito do mundo. Nenhuma destas mulheres pode agora responder: “Não sei fazer”.
Cego do Maio
Quando decidiu recuperar a centenária Mercearia Tradicional Raúl & Costa, na Póvoa de Varzim, Ricardo Silva depressa percebeu que não seria fácil encontrar produtos nacionais e tradicionais para rechear as respetivas prateleiras. Quando os clientes lhe pediram conservas poveiras, então, mais difícil ainda se tornou a tarefa. Essa inexistência transformou-se, porém, numa oportunidade. Como não havia, o designer de comunicação criou a sua própria marca de conservas da terra: a Cego do Maio. É esse o nome pelo qual ficou conhecido José Rodrigues Maio, pescador que, no século XIX, salvou mais de cem vidas no mar e agora salva ainda mais paladares em terra. O design foge, felizmente, ao minimalismo a que os últimos anos nos foram habituando e chega-nos cheio de cor, de vida, de história e de amor. Como a comida deve ser.
Chá Camélia
Os nomes Dirk Niepoort e Nina Gruntkowski surgem, geralmente, associados a perfis recortados contra vinhas do Douro numa hora dourada. Agora é vê-los de mãos cheias de folhas verdes, a viver uma aventura inédita: plantar chá em Portugal continental. Este é um trabalho exigente, demorado, minucioso. É uma relação. Por isso nunca será demais dizer que o Chá Camélia nasce do amor. Nina e Dirk plantaram a primeira planta no quintal de sua casa no Porto em 2011. Dezenas de processos depois, e já com 12 mil plantas – não no seu quintal, mas em Fornelo, perto de Vila do Conde – 2019 é o ano da primeira colheita de sempre de chá verde em território continental. O Florchá Camélia, uma infusão com as flores da Camellia sinensis, já chegou ao mercado embrulhada numa caixa de madeira e um rótulo de papel desenvolvidos em parceria com Francisco Providência. O logótipo, orgulho da equipa, já tinha sido desenhado por Regina Pessoa. O Chá Camélia é, então, uma história de tempo e de respeito pela terra, pelo planeta, pelas plantas, por nós. Também é uma história de amor – já dissemos que é uma história de amor?
Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 5 – Especial Comida (setembro de 2019)