Três dias depois de perder a final da Liga dos Campeões de 2017/18 para o Real Madrid, o Liverpool passou um cheque no valor de 45 milhões de euros, em troco do qual pôde contar com os serviços de Fabinho, até então jogador do Mónaco. O brasileiro fizera parte da equipa monegasca que conseguira destronar o PSG do campeonato francês e que, na época anterior, chegara aos quartos-de-final da Champions, após eliminar o poderoso Manchester City, de Pep Guardiola.

Na altura houve quem se perguntasse se valia a pena gastar tanto dinheiro num jogador que chegara à Europa para jogar num desconhecido Rio Ave, falhara no Real Madrid e, até há pouco tempo, era defesa-direito antes de ser convertido a médio-centro pelo treinador do Mónaco, Leonardo Jardim.

O assunto não foi muito mais explorado, até porque no mês seguinte o Liverpool deu o seu segundo passo no sentido de reforçar os sectores mais fracos da equipa, e adquiriu o guarda-redes brasileiro Alisson por uns estrondosos 75.5 milhões, um valor até há pouco tido como colossal para alguém que não marca golos.

Não marca mas evita – e a pobre exibição de Karius, o guarda-redes anterior, na final da Champions tornou claro o quanto o Liverpool precisava de um grande guarda-redes. Jurgen Klopp tem fama de gostar de desenvolver jogadores mas aqui era necessário abrir a carteira. O scouting foi perfeito e Alisson foi elogiado quase de início; mas não pareceu tão perfeito no caso de Fabinho, que foi esquecido: não jogava e ninguém falava dele, exceto naquelas colunas que procuram decidir quem é o maior flop da primeira metade da época.

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O Liverpool segue em primeiro com alguma margem e procura retirar o título ao City – e conquistar o primeiro campeonato inglês em 30 anos

O tempo foi passando e, entre a contratação de van Djik e de Alisson, o Liverpool começou a tornar-se uma equipa mais sólida atrás. Mas faltava qualquer coisa – faltava equilíbrio à frente da defesa, um médio que não fosse um cão de caça alucinado mas sim um assassino, gélido, racional, suave como um dançarino. A 27 de outubro desse ano Fabinho foi titular pela primeira vez e na posição 6.

Desde então o respeito por Fabinho cresceu, bem como pelas suas estatísticas de cortes, roubos e passes certos. Um dado, contudo, diz mais que todos os outros: até hoje o médio não perdeu um jogo da Premier League em que tenha começado como titular – e entretanto o Liverpool é campeão europeu.

São 30 jogos seguidos sem perder – o que diz bem da coesão que este trio de contratações trouxe a uma equipa cuja imagem de marca era a correria infernal à frente e a auto-estrada aberta atrás. Fabinho não é um milagreiro, apenas o tijolo certo (ou a tranca na porta) num edifício muito bem construído – basta ver que, desde o início da época passada até hoje, o Liverpool só foi derrotado uma única vez na Premier League: fora, contra o City, em janeiro deste ano, num jogo que lhes custou o título.

O que nos leva ao assunto futebolístico deste fim-de-semana: o embate entre o Liverpool e o City, em Liverpool, o novo clássico do futebol inglês, que os ingleses ainda não consideram clássico mas que é, claramente, o encontro que opõe as duas melhores equipas dos últimos dois anos. O jogo acontece este domingo, às 16h30.

As circunstâncias não são muito diferentes das do jogo de janeiro: tal como então, o Liverpool segue em primeiro com alguma margem e procura retirar o título ao City – e conquistar o primeiro campeonato inglês em 30 anos para os Reds. A derrota de janeiro deste ano iniciou a viragem no campeonato – e quando, no final da época, o Liverpool ficou a um ponto do City, os seus jogadores devem ter pensado bastas vezes num lance em que John Stones limpou um remate de Sadio Mané que estava a milímetros de passar a linha de golo.

E aqui estamos outra vez: o Liverpool no topo da tabela, com seis pontos de vantagem, à procura do seu primeiro título em 30 anos, o City a propôr-se ao impossível: conquistar três Premiers seguidas, feito nunca alcançado – até porque o ano passado foi a primeira vez que um clube conseguiu o bis.

Adivinhar o resultado olhando para o passado é uma dor de cabeça: nos 16 jogos que Klopp e Guardiola disputaram houve sete vitórias para cada, com dois empates pelo meio. Um detalhe: os primeiros sete jogos disputaram-se na Alemanha, era Klopp treinador do Dortmund e Pep do Bayern; Pep venceu quatro desses jogos. Desde então houve nove jogos, com quatro vitórias de Klopp e dois empates.

Na Alemanha como em Inglaterra, Pep tem tido mais meios: o City não só paga mais em salários como gastou muito mais em transferências desde que o clube passou a ser propriedade do Sheikh Mansour – pagou mais em transferências de séniores e júniores, salários de scouting, infra-estruturas.

Onde o City pode superiorizar-se é no meio-campo. De Bruyne e David Silva são ainda o melhor duo de criadores da liga inglesa

Tal como o PSG, o City tem um estado por trás (no caso, os Emirados Árabes Unidos) e, mais dia menos dia, o futebol terá de pensar se um clube deve servir de manobra de relações públicas para regimes que não respeitam os direitos humanos. Enquanto isso não acontece, temos plantéis com profundidade diferente: cada vez que escolhe os seus três da frente, Pep tem de optar entre Bernardo Silva, Mahrez, Sterling, Sané, Aguero e Gabriel Jesus; já Klopp, sempre que quer fazer descansar um dos seus meninos de oiro (Mané, Firmino e Salah) olha para o banco e vê Origi e Shaqiri.

Na defesa, e ao contrário do que costumava ser a imagem de marca de Klopp, o Liverpool parece levar vantagem, não só graças a van Djik como também aos laterais, em particular Trent Alexander-Arnold, que é um defesa-direito com cérebro de médio criativo – não só tem tanto pulmão como o seu rival Kile Walker, como pensa melhor, cruza melhor, faz movimentos interiores e cria de forma imprevisível.

Onde o City pode superiorizar-se é no meio-campo, apesar de “perder” Fernandinho para a defesa, à conta das lesões de Stones e Laporte. De Bruyne e David Silva são ainda o melhor duo de criadores da liga inglesa e, pelo menos até que o Barcelona encontre um treinador que saiba o que fazer a Arthur e Frenkie, do mundo. Serão, claro, assaltados por Henderson e Wijnaldum, até porque a pressão é a imagem de marca das equipas de Klopp – e, muito possivelmente, será nesta disputa que o jogo se decidirá: até que ponto o City conseguirá criar debaixo da pressão do Liverpool?

Essa é a imagem típica que associamos a estes clubes: Liverpool a pressionar e City a trocar a bola – mas a verdade é que essas imagens são redutoras: o Liverpool é hoje uma equipa bem mais equilibrada, e apesar de o seu meio-campo não ser particularmente imaginativo a verdade é que passa muito tempo em ataque posicional, um ataque sofisticado na forma como usa as movimentações de Firmino, que desce para a posição 10, para segurar, tabelar e distribuir, enquanto Mané e Salah se movimentam nas suas costas. Firmino é o verdadeiro criador do Liverpool (e o seu primeiro defensor), sendo que Mané tem estado numa forma extraordinária.

Uma vitória do Liverpool deixa os Reds nove pontos à frente do City, o que poderá ser demasiado numa liga que, desde o ano passado, parece disputar-se a dois – e este é o segundo possível grande significado que uma vitória dos meninos de Klopp poderia ter: não só os três pontos colocariam o Liverpool definitivamente na senda do regresso aos títulos, 30 anos depois, como poderia haver aqui uma alteração de poder na Premier League, um rombo na busca de dominação do City.

Nos dois últimos anos City e Liverpool elevaram o futebol a níveis estratosféricos – o City acima de tudo no campeonato inglês, o Liverpool com duas finais da Champions consecutivas. Mas o plano do City, quando contratou Guardiola, não era conquistar dois campeonatos em quatro anos (por mais extraordinário que tenha sido o futebol praticado, e foi-o): era o domínio completo, campeonatos consecutivos, a Champions, a criação de uma geração de vencedores.

Mas tanto o Mónaco, em 2016/17, como o Liverpool, em 2017/18, como os Spurs, o ano passado, mostraram que as equipas de Guardiola falham em jogos a eliminar; que o romantismo de Guardiola pode ser explorado, com agressão e velocidade. De súbito, com a conquista da Champions e uma vitória este domingo, o Liverpool poderia estar na posição que Sheik Mansour sonhou para o clube que comprou: a de clube dominador, que pratica um futebol vencedor e que encanta.

Os ingleses, com a sua habitual obsessão pela História, recusam ver o jogo como um clássico – isso está reservardo para um Liverpool vs Man United ou um Man United vs Arsenal. Mas as tradições desaparecem com o tempo; ao fim de anos de maus resultados o Manchester United e o Arsenal têm hoje menos importância. Hoje o melhor futebol no mundo (à parte do Ajax) é praticado por Liverpool e City.

Quem sair vencedor dá um valente passo na direção da coroa de melhor clube atual.