“O meu coração ficará no Porto”, “Ultras 1997”, “Amo-te Cristina” são algumas frases legíveis na fachada do Cinema Batalha, em pinturas, grafitis e autocolantes. As portas em ferro e vidro fosco estão fechadas com cadeados e são morada de alguns sem abrigo, que todas as manhãs despertam lentamente com a presença de grupos de turistas, cujo roteiro faz questão de parar por ali.
Há vidros partidos, paredes rachadas e luzes fundidas. O vento e as gaivotas fazem mexer uma bandeira amarela da Juventude Socialista colocada no topo e no lugar da caixa do correio está agora um buraco fundo. Uns passam por ele com indiferença e apenas se aproximam da cobertura para se abrigarem da chuva, outros olham-no com saudade e alguma desconfiança. Assim está o Batalha, o cinema projetado pelo arquiteto Artur Andrade, inaugurado em 1947.
Propriedade da empresa Neves & Pascaud, o imóvel foi sala de cinema até 2000, altura em que foi encerrado. Manteve-se fechado até 2006, quando reabriu como espaço cultural pelas mãos da Associação de Comerciantes do Porto (ACP). No fim de dezembro de 2010, a ACP acabaria por entregar as chaves do edifício devido a “prejuízos mensais avultados”. Dois anos depois, é classificado como Monumento de Interesse Público. Em janeiro de 2017 a Câmara Municipal do Porto assume a gestão do Batalha por 25 anos e no final do passado mês de outubro o Tribunal de Contas dá luz verde para a sua reabilitação, uma empreitada orçada em 3,95 milhões de euros.
“Está a ver aquele baixo-relevo de Américo Soares Braga na fachada?”, pergunta Sérgio Fernandez, um dos arquitetos responsáveis pela transformação, à chegada ao ponto de encontro combinado para uma visita guiada antes das obras começarem.
“A figura feminina que está de pé representa uma ceifeira e à sua direita, com uma corrente ao ombro, está um operário que tinha um martelo na mão. Antes da inauguração do cinema o martelo foi retirado a pedido da PIDE, pois era considerado revolucionário e subversivo”, explica ao Observador, acrescentando que durante a obra vão o martelo será reposto em aço inox, “para que brilhe e seja ainda mais evidenciado”.
Também os puxadores das portas do cinema com as iniciais CB serão recuperados. “Na altura foram mandados retirar pela PIDE que interpretava as letras como Comité Bolchevista”, conta o arquiteto Alexandre Alves Costa, a outra cara por detrás do projeto. Sérgio, de 82 anos, e Alexandre, de 80, viram o Batalha nascer, conhecem-lhe os cantos à casa e dele guardam recordações felizes e memórias de “uma segunda casa”.
“Aos 12 anos fui sócio do Cineclube do Porto, que era uma manifestação cultural contra o regime e o Batalha era o símbolo de modernidade e de anti fascismo, muito associado a esse espírito de resistência. Era o nosso ponto de encontro, vir aqui era como ir à missa”, confidencia Fernandez.
Para Alexandre a história é outra. O seu pai, Henrique Alves Costa, foi crítico de cinema e esteve ligado à formação e divulgação do Batalha. “Foi por isso que nos entregaram o projeto, em homenagem ao meu pai”, revela ao Observador. Entrou aqui pela primeira vez aos cinco anos e “Ladrões de Bicicletas” foi um dos primeiros filmes viu sentado na sala principal. “Era como se fosse a minha casa.”
Adaptar o cinema, “de linhas modernas e arrojadas”, à realidade contemporânea sem desvirtuar a sua essência e estrutura foi o mais difícil deste desafio.“O Batalha está em estado de ruína e muita coisa não é restaurável, por isso tem de ser substituída. Quando substituímos algo nunca sabemos se ficará exatamente igual ao que era, temos sempre esse problema.” Por outro lado, o edifício que encontraram “é muito bom” a nível arquitetónico e funcional e “muito importante” do ponto de vista histórico. “Foi fácil pegar numa coisa que era boa e não uma porcaria qualquer”, afirma Alexandre Alves Costa.
Em 2017 ambos visitaram o Batalha pela primeira vez já a pensar na sua reabilitação, mas garantem que “não estava neste estado”. “Até fizemos um orçamento da obra a metade do preço [2,5 milhões de euros], mas isto é uma degradação diária.” Dias antes da empreitada começar, os dois arquitetos dizem sentir a curiosidade nas ruas.
“As pessoas perguntam-me logo pelo Batalha, estão ansiosas e expectantes. Isto faz parte da idiossincrasia do Porto. Aliás, existe aquela expressão ‘vai no Batalha’, que significa que algo é mentira, pois tudo o que aqui acontecia era fantasia e imaginação.”
Alves Costa acredita que a vontade de ver o cinema ser reaberto definitivamente ao público é um desejo não exclusivo dos portuenses. “Ainda há pouco cumprimentei o encenador Jorge Silva Melo ali na esplanada e disse-me logo: ‘estás aqui por causa do Batalha? Parabéns!’”
Projeção ou impressão: como recuperar a obra de Júlio Pomar?
São precisas duas pessoas para abrir o cadeado e libertar as correntes da porta, mas mal se liga o alarme e é possível entrar no cinema o cheiro a urina impera, assim como os buracos no chão, os ratos mortos e as paredes descascadas. Estamos no foyer que dá acesso à Praça Batalha, onde alguns sofás compridos serão reutilizados e a famosa Sala Bebé, criada após os 25 de abril para exibir cinema de autor, dará lugar a um espaço polivalente, sem as 150 cadeiras atuais e com direito a um bar, “uma espécie de salão de chá”.
A escadaria também sofrerá modificações, a começar pelo corrimão que deverá ser mais alto “como manda a lei”. Na parede branca que a acompanha, onde hoje é possível ver o tijolo, já esteve exposto um dos dois frescos que Júlio Pomar fez propositadamente para o Batalha [o outro está junto ao bar do piso 3], numa época em que começava a fazer as suas primeiras pinturas.
Sara Antónia Matos, diretora e curadora do Atelier-Museu Júlio Pomar, recordou em 2017, na iniciativa “Um Objeto e Seus Discursos”, realizada no Porto, que os dois painéis foram “uma obra complexa”, não só pelo lado técnico e metodológico de transpor os desenhos para uma parede de grandes dimensões, mas também por ser um trabalho público, que “iria ter um impacto social e visual que nenhuma outra obra dele tinha tido até então”. Com uma linguagem neorrealista, cores soturnas e influências picassianas, os frescos de Pomar no Batalha trabalham a temática das festas de S. João, “com figuras a dançar, músicos, lanternas e balões”.
“Ele é preso em abril de 194 com o painel inacabado, cerca de um mês depois é libertado e termina-o, finalmente recebe uma carta da direção do cinema a dizer que por ordem das autoridades o painel iria ser destruído, mas que ele ainda tinha hipótese de reclamar e tentar que a obra não fosse destruída, coisa que não o fez”, explicou, na altura, Sara Antónia Matos.
Alexandre Pomar, filho do pintor e presidente da Fundação Júlio Pomar, garante ao Observador que os frescos “já não existem”, mas que o artista viu com bons olhos a possibilidade de o cinema ser reabilitado e recuperar, de alguma forma, a sua obra. “O arquiteto Alves Costa chegou a ter algumas reuniões com o meu pai para arranjarem uma solução, mas não chegaram a uma conclusão.”
Em cima da mesa, afirma, nunca esteve a hipótese do pintor, falecido em maio de 2018, refazer os desenhos, mas sim imprimir fotografias antigas dos mesmos e colocá-las nas paredes ou projetar essas mesmas imagens no local. Alexandre Pomar preferia o primeiro cenário, por ter um caráter “mais definitivo”, desconhecendo, porém, as características técnicas de todo o processo. Seja qual for a decisão, reservada para a fase final do projeto, o filho do pintor acredita que esta deve passar pelos herdeiros, uma vez que são os detentores dos direitos de autor da obra.
Uma biblioteca, uma nova sala estúdio e um terraço por explorar
É no primeiro piso que desaguamos no átrio da entrada principal do cinema, mesmo em frente à Igreja de Santo Ildefonso. Por aqui os dois bengaleiros laterais e a bilheteira exterior vão manter-se, será construído um elevador circular até ao terraço e as vitrinas vazias distribuídas pelos corredores, que antigamente expunham produtos de lojas emblemáticas do comércio tradicional da cidade, vão ser ocupadas. “Terão cartazes de filmes, fotografias de atores e ainda objetos antigos relacionados com o cinema, com a curadoria do Cineclube do Porto”, explica o arquiteto Sérgio Fernandez.
Ao Observador, a Câmara do Porto garantiu que estes espaços “não serão entregues a fins comerciais e terão uma utilização relacionada com os conteúdos programáticos”. A autarquia confirmou a “relação forte” que o Batalha terá com o Cineclube do Porto, sendo “uma entidade historicamente ligada a este espaço”, já sobre o envolvimento e a contribuição da Cinemateca Portuguesa afirma que “está por definir”.
Recorde-se que em julho de 2017 Rui Moreira revelou que a Cinemateca Portuguesa “não deu abertura para que seja exibido cinema internacional no Batalha”. O autarca explicou à data que a câmara pretende que “os programas a apresentar [no Batalha] incluam, e frequentemente cruzem, cinematografias contemporâneas e cinematografias de arquivos, nacionais e internacionais”, e por isso se torna necessário “o envolvimento da Cinemateca”.
Eis que chegámos à sala principal e vale-nos a luz da lanterna do telemóvel para alumiar um caminho cheio de tacos soltos no chão. Os 340 lugares sentados vão reduzir para 243 e todas as cadeiras serão substituídas “por uma questão de acústica”. Vão manter-se os candeeiros circulares no teto, o chão em pinho, as paredes em contraplacado de eucalipto, o palco, as cortinas e os elementos cerâmicos junto às portas, assinados por António Sampaio. “Chove cá dentro”, diz Alves Costa apontado para as paredes húmidas e escamadas, que irão manter a forma e a cor clara depois de restauradas.
No piso superior, a tribuna terá direito a 136 lugares e no seu átrio a luz natural entra através das 410 janelas que incorporam a fachada, cujo vidro será substituído, e o chão, feito na marmorite original, dá nas vistas pelas estrelas e círculos dourados, “desenhos típicos da época”. Há ainda uma escultura feminina de Arlindo Gonçalves a ser restaurada e uma zona que no futuro será mobilada com prateleiras, estantes e mesas, “tornando-se numa biblioteca informal sobre cinema”, sendo também “uma área de estudo e investigação”.
É no terceiro andar que acontece a alteração “mais profunda” no Batalha. Do segundo balcão irão permanecer apenas três filas de cadeiras, 44 lugares, sendo que a restante área vai transformar-se numa nova cabine de projeção para a sala principal e uma sala-estúdio com 133 lugares, que irá receber, segundo o município, “todo o tipo de atividades de exibição.”
“A necessidade prende-se com o facto de ser fundamental existirem dois espaços programáticos, todas as cinematecas e ‘film centres’ têm salas com diferentes escalas, que permitam adequabilidade programática”, esclarece ao Observador.
No caso desta nova sala, a cabine de projeção mantém-se a atual, onde lá dentro ainda restam máquinas antigas italianas, bobinas, fitas e gavetas com registos amarelados e amachucados da Direção Geral do Espetáculos, escritos à mão. “Cine Estúdio Ericeira”, lê-se numa tábua enferrujada. “Nada disto pode ir para o lixo, tem de ser tudo visto com atenção para ver o que é possível ser exposto”, atira o arquiteto Alves Costa.
Ainda neste patamar, o bar feito em madeira, mármore e cobre vai voltar a funcionar, tal como o que existe junto à sala polivalente, situada no piso 0. Sobre a concessão destes dois espaços, a autarquia do Porto, revela ao Observador que a concessão de ambas “não está definida e depende de uma gestão de projeto que decorrerá mais tarde”.
Subindo mais um lance de escadas pisamos um terraço nunca antes explorado. De lá pode ver-se uma paisagem panorâmica daquela zona e, claro, muitas gaivotas. Ainda sem licença para ser dinamizado, há esperança, pelo menos por parte dos dois arquitetos, que esta área “privilegiada” seja visitável por todos e aproveitada no futuro.