Mais do que uma marca, a Creed é hoje uma instituição. Inaugurada em 1760, ano da coroação do rei Jorge III, começou por ser uma distinta alfaiataria londrina. James Henry Creed foi o fundador. Os artigos em pele e os perfumes — que, tal como os fatos, eram feitos à medida — faziam parte do catálogo e permitiram a esta empresa familiar conquistar a mais importante família do Reino Unido, a real. A rainha Vitória concedeu-lhe o título de fornecedor oficial da Casa Real.
Em 1854, prestes a assinalar o primeiro centenário, a Creed mudou-se para Paris. Napoleão III e Eugénia, os últimos imperadores de França, ditavam as regras de estilo e o gosto para toda a Europa. A casa depressa ganhou fama entre os aristocratas, sobretudo pelos fatos confecionados à medida. Os perfumes ficaria relegados para segundo plano até à década de 70 do século XX. A alfaiataria havia entrado em declínio e a visão de Olivier Creed, o sexto numa linhagem sem interrupções, orientou a empresa para a perfumaria de autor.
Erwin, de 38 anos, é o filho do visionário que mudou o rumo da Creed. Hoje, trabalham os dois para que as fragrâncias da marca cheguem aos quatro cantos do mundo, mantendo uma aura de luxo e confidencialidade. “Toda a gente quer comprar um Creed”, admite o mais novo descendente da dinastia. A lista de clientes célebres é bem extensa. De Grace Kelly, que casou a usar Fleurissimo, fragrância encomendada pelo príncipe Rainier para complementar o bouquet, a Michelle Obama, passando por Jacqueline Onassis, princesa Diana, Madonna, Julia Roberts e Jennifer Lopez.
Dentro da pequena fábrica, que continua sediada em Fontainebleau, perto de Paris, Erwin é um purista — não há frasco nem storytelling que substitua uma boa fórmula nem a qualidade máximo dos seus ingredientes. No terreno, é um negociador determinado, num mercado dominado por grandes grupos. Intocada, a empresa continua sob o domínio da família. Nunca quis ter um bestseller, embora, nos mais de 200 perfumes criados ao longo de quase 260 anos de história, criações como Aventus e Green Irish Tweed sejam verdadeiras estrelas.
Erwin, que aprendeu a conhecer e a apreciar as primeiras essências com apenas oito anos, passou por Lisboa e falou com o Observador. Tema de conversa não faltou, só tempo. O herdeiro da casa Creed pesou as vantagens e desvantagens de trabalhar em família, expôs a sua visão do mercado da perfumaria e constatou o menos óbvio: “Somos uma marca pequena e queremos continuar assim”.
Quando é que se tornou tão apaixonado pela Creed e pela perfumaria?
Para ser honesto, é muito difícil trabalhar em família. Por isso é que hoje o meu pai não é propriamente o meu melhor amigo. Ele era muito rígido comigo, mas também me deu muita força. Agora tenho uma filha e é tudo mais descontraído, mesmo entre mim e ele. Foram dez anos até fechar o mercado no Médio Oriente. Fui sozinho para lá.
Discordámos na altura em que fizemos o Love in White. Inicialmente, ele fez um perfume muito mais clássico, não era muito divertido. E tínhamos falado de como a nota de arroz era importante e ia trazer sofisticação ao perfume. Passo a passo, foi mudando de ideias. Dois anos depois, trabalhámos numa nova fórmula. Uma marca mais comercial diria que já não era possível mudar, que a campanha já estava feita. Mudámos a fórmula ao fim de dois anos. E sim, a fórmula inicial até podia ter sido um sucesso, mas só fazemos perfumes que também queiramos usar e que nos os façam sentir confiantes. É como um designer. Muitas vezes, à primeira vista, o que ele faz é um pouco forte e estranho até, mas no final é maravilhoso. O meu pai trabalha um pouco assim. Às vezes dizemos: “Ah, não está muito bem”. E ele: “Então está perfeito”.
Considera-se mais um perfumista ou um homem de negócios?
Há muita gente a tentar vender marcas o melhor que consegue e, muitas vezes, contam histórias — “sou um mestre perfumista”, “adoro perfumes”, “uso as melhores essências do mundo”. Sou e faço isso tudo, mas também sou um homem de negócios e ainda trabalho com designers e com arquitetos. Não estou muito por dentro do lado mais comercial, do marketing, porque não é bem esse o nosso método. A maioria das marcas, o que inclui muitos dos nossos concorrentes, é vendida através de um grande grupo — Estée Lauder, LVMH, L’Oréal. É preciso negociar os espaços dentro de grandes department stores, como é o caso do Harrods. Daí que, a esta altura, tenha de viajar muito. Normalmente, em duas semanas faço Paris, Singapura, Kuala Lumpur, Taipei, Seul, Xangai, Hong Kong, Zurique, Geneva. Isso também acontece porque sou um pouco antiquado. Prefiro estar a negociar do que vender online. Lidamos imenso com produtos contrafeitos e com cópias, por isso é que nos esforçamos tanto para manter a qualidade e para vender nos locais mais adequados.
Continua a trabalhar em perfumes personalizados?
Não, é demasiado complicado. Seria uma tolice, até porque hoje há regulamentação. Para fazer um perfume, é preciso submetê-lo a testes, incluindo testes de toxicologia, e alguns envolvem pessoas. Mesmo que seja um perfume exclusivo para uma única pessoa, vai ter de passar por todos estes procedimentos. Antigamente, fazia a fórmula, a pessoa gostava e levava-o logo.
Mas devem ter clientes muito exigentes, nomeadamente grandes celebridades mundiais.
Cada cliente é um cliente e não é por ser famoso que é mais importante ou que vai receber frascos de graça. Janet Jackson, Elton John… são clientes, eles pagam pelos perfumes. Temos muitos clientes famosos, mas não comunicamos, embora alguns assessores de imprensa insistam para o fazermos. Às vezes, só queres ter a tua marca e não dizer a ninguém que ela é isto ou aquilo. Tentamos manter a Creed meio confidencial.
Quanto tempo demora a criar um perfume?
Pode levar seis meses, mas também pode ser um perfume complicado. O mais importante é criares o aroma que tens na cabeça, embora as ideias também mudem e é por isso que é tão difícil manter a mesma linha. Às vezes, o meu pai acaba um perfume em oito meses enquanto outros ficam por acabar. Não há limites. O Love in White para o verão levou um ano e meio a ser feito, mas no final acabou por demorar quatro anos. Aventus Cologne levou dois anos. Por vezes é rápido, outras vezes ficas mais perdido.
E tem algum perfume na cabeça atualmente?
O problema é que quando falamos sobre o que nos vai na cabeça… Sobretudo agora, que somos mais conhecidos. Penso sempre em fazer bons perfumes e em fazer de cada um uma novidade. Mas são todos um desafio.
De onde é que vem essa inspiração? São pequenos detalhes do dia a dia, viagens?
De viagens, sim. E comida. Adoro comida, adoro cozinhar e isso é interessante porque também envolve misturar ingredientes. Acho que é de família, a minha mãe cozinha muito bem, mas de forma muito simples. O mais importante é encontrar bons ingredientes. Ela escolhe muito bem a curgete e os espargos e eu chego lá a querer pôr azeite e especiarias. E ela: “Não, não”. É só um pouco de azeite, sal e pimenta. Depois prova-se, para não destruir a base. É assim que fazemos perfumes. Escolhemos os melhores ingredientes e combinamo-los.
Quando se nasce uma família com uma herança tão forte, é possível sair e ir fazer outra coisa qualquer?
No início, éramos mais uma empresa de alfaiataria do que de perfumaria. A relação que tínhamos com a família real mais muito mais em termos de moda, fazíamos o vestido para a princesa, um fato. E era tudo feito à mão. Quando o meu pai chegou ao negócio, a alfaiataria estava totalmente arrumada. Era cara e levava tempo. Quando o ele nasceu, em 1935, tínhamos um edifício inteiro, mas nem sequer tínhamos uma loja que desse para a rua, não era bom naquela altura. Tínhamos uma entrada na parte de trás. Hoje não, tem de haver uma grande montra, mas naquela altura não prestigiante ter uma montra para a rua. Tínhamos seis andares, 40 alfaiates.
Quando o meu pai começou, as pessoas já não queriam gastar tanto dinheiro em fatos por medida, que é coisa para custar entre 15.000 e 20.000 euros, no mínimo. Era feito no corpo. Perdemos muitos clientes quando outras marcas, como é o caso da Zegna, começaram a fazer fatos. Por outro lado, o meu pai tinha muito mais confiança na perfumaria. Posso dizer que o negócio costumava ser composto por 95% de alfaiataria e 5% de perfumes. Nos anos 70, o meu pai alterou isso quando começou a fazer os seus próprios perfumes, passo a passo, com a minha mãe.
Ele começou a ir com uma pequena mala a apresentar os perfumes… Ao Le Bon Marché, por exemplo. “Trabalha para a Guerlain?”, perguntavam-lhe. E ele: “Não, não. Sou o Senhor Creed, tenho a minha própria marca”. Foi muito difícil começar. De repente, começámos a ter muitos clientes da Arábia Saudita avir ter connosco, todos queriam o Green Irish Tweed. Foi quando ele começou a ter de produzir mais frascos e quando ficou mais confiante. Mas sim, foi passo a passo.
Hoje não é muito diferente.
Continuamos a fazer os nossos perfumes. Escolhemos nós os ingredientes, somos como um chef — escolhemos, medimos e acompanhamos a evolução de um perfume. É muito difícil. Hoje em dia, mais de 50% dos produtos que utilizamos são naturais e isso dificulta a tarefa de produzir o mesmo perfume em muita quantidade. Mas sim, somos sempre nós, do princípio ao fim. Se for a uma loja de perfumaria de nicho, à exceção de uma ou duas marcas, ninguém sabe o que está dentro dos frascos. O marketing é ótimo, mas as marcas não fazem ideia de quais são os ingredientes pelo simples facto de os perfumes serem feitos por outras empresas, empresas essas que, muitas vezes, preparam as bases para vários perfumes.
Por exemplo, um perfume da Kenzo não é feito pela Kenzo. Fico um bocado zangado quando vejo gente a criar marcas atrás de marcas e, de repente, estão a fazer dez, 15 perfumes porque lançaram três marcas diferentes, cada uma com uma inspiração diferente. Fazem perfumes moleculares, sem álcool? Nós fazemos o mesmo nos perfumes para criança. No final, é tudo uma treta. É tudo estratégia comercial, em vez de se focarem em fazer um bom perfume e pensarem no resto depois. E é difícil para nós, sobretudo porque exige muito tempo. Mas decidimos ser perfumistas e não uma marca focada no marketing. Além disso, somos uma marca pequena e queremos continuar assim.
Mas são uma pequena marca, rodeada por gigantes.
Mas adoramos o que fazemos desde o primeiro dia. Não forçamos nada, mantemos a marca como sempre foi e os clientes valorizam essa autenticidade. O negócio continua a estar a 100% dentro da família, nas minhas mãos e nas do meu pai. Produzimos o nosso Aventus Cologne, mas reduzimos o espaço de venda e instruímos os nossos vendedores para não irem além de determinada margem de avanço nas vendas e para tentarem vender outros perfumes, não estamos focados em ter um bestseller.
Estamos felizes assim. Temos um problema nos dias que correm — que está ligado às Kardashian e a essa geração — e é o achar que temos de fazer algo mais visual, mais forte, mas sem nada por trás. Ora, o que está por trás é o mais importante. Queremos manter a qualidade dos nossos perfumes. É claro que isso sai mais caro, o que torna tudo mais difícil.
É por isso que também optam por uma presença mais discreta no mercado?
Não acho que sejamos discretos, há muita gente a falar sobre nós. Toda a gente quer comprar um Creed. Temos história, não viemos sabe-se lá de onde, estamos no mercado há muito tempo, fomos das primeiras marcas de perfumaria de nicho. Acho que se vendêssemos a marca a um grande grupo, os nossos clientes iam dizer que já não era a Creed. Até porque, quando esse grande grupo visse o que colocamos nas fórmulas dos nossos perfumes, ia logo dizer que saía demasiado caro. Preferem sempre gastar o dinheiro em marketing e em ter uma mulher linda, enquanto nós só queremos fazer bons perfumes e que os nossos clientes os usem. Da última vez que fizemos uma coleção exclusiva do Royal, o meu pai quis que a parte metálica do frasco fosse dourada. Os clientes queriam o perfume, não queriam que o frasco fosse mais bonito ou mais dourado. Foi um pouco complicado gerir essa situação, porque ficava, de facto, mais caro. No final, percebemos que o que importa mesmo é o perfume. Por exemplo, conheço imensos clientes que adoravam o Vetiver da Guerlain — era um ótimo perfume, muito tradicional — e que vieram para a Creed porque, quando a Guerlain foi vendida à LVMH, deixou de ter o mesmo aroma. E era o melhor vetiver do mundo, as pessoas adoravam.
Manter o negócio na família é, portanto, o grande segredo?
Pode ser, mas não é nada fácil. A própria LVMH já quis saber o nosso segredo. Fico satisfeito com isso. Continuo com a fazer perfumes com o meu pai. Às vezes, por ele, fazíamos o lançamento de um perfume na banca do mercado, ao domingo à tarde. Digo-lhe sempre que agora somos mais conhecidos e que temos de fazer tudo com outro cuidado. Mas na cabeça dele continua assim e é bom porque é essa mesma criatividade que ele usa, sem restrições, na hora de criar um perfume. Temos aquele fornecedor e ele tem uma lavanda ótima, então mantemos esse ingrediente e tentamos dar-lhe uma expressão especial. Compomos a fórmula, fazemos algumas modificações no final — um pouco mais disto, um pouco menos daquilo. Então e o preço? Fazemos as contas e, como fica mesmo muito caro, pergunto-lhe se tem mesmo a certeza. Ele diz: “Gosto, vamos fazê-lo”. A verdade é que 99% dos perfumistas começam com um orçamento e a partir daí é que criam o perfume. Fazemos os nossos perfumes como uma verdadeira marca — honesta, tradicional e com os seus valores. E um frasco bonito com uma história por trás não faz um perfume.