A atual Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo está assente num modelo de intervenção em que ninguém fique na rua por mais de 24 horas e um conhecimento permanente do fenómeno.

A Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo define que a intervenção é centrada no indivíduo, na família e na comunidade, bem como na necessidade de evitar duplicação de respostas, de forma a rentabilizar recursos humanos e financeiros.

O documento, que foi publicado em Diário da República a 25 de julho e veio substituir a anterior Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo 2009-2015, traz um modelo de intervenção que se aplica a todos os casos que sejam encontrados em situação de sem-abrigo que requeiram intervenção especializada e durante todo o tempo necessário até que seja encontrada e estabilizada uma solução.

O modelo de intervenção assenta na premissa “Ninguém deve ficar na rua por mais do que 24 horas”, cruza prevenção, intervenção e integração comunitária, sendo que no primeiro domínio está instituído que haja uma monitorização continua do fenómeno, que inclua indicadores de risco das situações de sem-abrigo e de precariedade habitacional. A ENIPSSA 2017-2023 tem três eixos de intervenção, que se dividem entre conhecimento do fenómeno, reforço da intervenção e coordenação, num total de 15 objetivos estratégicos que se desdobram em 76 ações e em atividades inseridas em planos de ação bienais.

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São estes planos de ação que incluem os valores financeiros globais previstos, sendo que o que está atualmente em vigor, o Plano de Ação 2019-2020, tem um orçamento previsto de cerca de 131 milhões de euros, não havendo, por isso, um valor final para toda a estratégia. É dentro do eixo “Reforço da Intervenção” que estão previstas as medidas e apoios para garantir um lugar para viver a quem é desinstitucionalizado, bem como as medidas que garantam a promoção de autonomia, desde soluções de alojamento, a soluções de capacitação, educação, formação profissional e inserção profissional.

A ENIPSSA uniformizou a definição de sem-abrigo, que passou a ser qualquer pessoa que se encontre “sem teto, vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário” ou “sem casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito”.

Aquando da aprovação na nova estratégia em Conselho de Ministros, o então ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva afirmou que a ENIPSSA resultou de um “trabalho muito intenso com as associações da sociedade civil que têm uma intervenção muito forte na área das pessoas sem-abrigo”. Em abril, o Presidente da República tinha deixado o apelo para uma rápida implementação da estratégia, para que fosse aplicada já este ano, de forma a erradicar o problema até 2023. “O importante foi refletir sobre a nova estratégia e queremos que corra rapidamente a sua aplicação. O prazo é muito longo, até 2023, mas há muita coisa a fazer, quanto mais depressa começar a ser feito melhor”, afirmou, na altura, Marcelo Rebelo de Sousa.

No território de Portugal continental havia em 2018 cerca de 3.400 pessoas sem teto ou sem casa, segundo um inquérito realizado entre fevereiro e maio daquele ano no quadro da ENIPSSA. Segundo um resumo dos resultados deste inquérito, esta quinta-feira divulgado, “no período de referência, existiam 3396 pessoas sem teto ou sem casa”, das quais “1443 pessoas sem teto, isto é, a viver na rua, em espaços públicos, abrigos de emergência ou locais precários”, e “1953 pessoas sem casa”, isto é, “a viver em equipamento onde a pernoita é limitada”.

De acordo com o mesmo documento “cerca de 45% do total das pessoas sem teto foram identificadas na Área Metropolitana de Lisboa (AML), com 644 pessoas”. No documento é referido que participaram neste inquérito, previsto no Plano de Ação 2017-2018 da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2017-2023, “todos os 278 concelhos do continente” e que “não foi obtida resposta de três municípios”.

 Marcelo assumiu causa desde o primeiro inverno do seu mandato

O Presidente da República assumiu a integração das pessoas em situação de sem-abrigo como causa e desde o primeiro inverno do seu mandato, já esteve nas ruas ou visitou centros de acolhimento mais de uma dúzia de vezes. Até agora, Marcelo Rebelo de Sousa promoveu oito reuniões sobre este tema, juntando instituições que prestam apoio aos sem-abrigo, sete das quais com o Governo representado, para pressionar a atuação das autoridades públicas nesta matéria.

A sua participação na festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, em Lisboa, tornou-se uma rotina anual e foi nesse contexto que deixou o primeiro alerta sobre o número de pessoas sem teto, a viver no espaço público ou em locais precários, em dezembro de 2016. O chefe de Estado, que tinha assumido funções em março desse ano, considerou que o número de pessoas sem-abrigo continuava ainda “muito elevado” em Portugal, constituindo um problema “particularmente grave” na capital do país, e deveria diminuir com a saída da crise.

No mês seguinte, janeiro, numa noite fria de inverno, visitou as pessoas sem-abrigo acolhidas no Pavilhão Municipal do Casal Vistoso, testemunhando a forma como lhes é prestada ajuda no local, e dois dias depois esteve no Centro de Acolhimento do Beato, também em Lisboa. Ao longo do ano de 2017, Marcelo Rebelo de Sousa manteve este tema na agenda, com sucessivas iniciativas de apoio e sensibilização para a situação dos sem-abrigo, em fevereiro, março, abril, maio, lançando também reuniões de trabalho alargadas, que se repetiriam nos anos seguintes. No início de fevereiro, almoçou com um casal de antigos sem-abrigo, na casa destes, em Lisboa, em resposta a um convite recebido na festa de Natal da Comunidade Vida e Paz. E a meio desse mês estendeu as suas iniciativas sobre este problema à cidade do Porto, onde ajudou a distribuir refeições nas ruas e num restaurante solidário.

Nesse início de 2017, o Presidente da República advertiu para a existência de “um buraco” em termos de planos de ação governativos, referindo que o último tinha terminado em 2015 e que “em 2016 não houve plano, mas sim um prolongamento parcial do plano”, e disse então esperar uma resposta rápida do Governo do PS, chefiado por António Costa. Simbolicamente, quando completou um ano de mandato, em 09 de março de 2017, Marcelo Rebelo de Sousa andou por Belém a ajudar a vender exemplares da revista CAIS, que tem como missão melhorar as condições de vida de pessoas sem-abrigo e economicamente vulneráveis.

No início de abril, na primeira de muitas reuniões sobre a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo, na sede da Comunidade Vida e Paz, em Lisboa, o chefe de Estado definiu como meta “deixar de haver sem-abrigo em Portugal em 2023”, argumentando que isso “é no fundo aplicar a Constituição”, que implica “casa e condições de acesso ao emprego”. Na noite seguinte, acompanhou voluntários na distribuição de refeições nas ruas de Lisboa, defendendo que é seu dever “manter os pés na terra” e olhar para as “zonas da sociedade que estão a ficar num gueto, metidas num beco sem saída”.

Ainda em abril, promoveu uma nova reunião sobre este tema, a primeira no Palácio de Belém, envolvendo o Governo, além de autarquias e instituições sociais, e apelou a que a estratégia nacional para os sem-abrigo fosse rapidamente implementada, prometendo não deixar cair este assunto. Marcelo Rebelo de Sousa promoveu outras reuniões idênticas ao longo do seu mandato, que realizou também em Setúbal e no Porto, e voltou ao terreno no Porto e em Lisboa em diversas ocasiões em 2017, 2018 e 2019, acompanhando o trabalho de instituições nas ruas, visitando refeitórios, centros de apoio e habitações de pessoas que saíram da situação de sem-abrigo.

Nessas iniciativas, prestou “tributo aos voluntários”, manifestou-se “atento aos cidadãos que não têm voz” e deixou a mensagem de que este problema deve ser encarado como “um desafio nacional” e não como “uma bandeira do Presidente da República”.

O chefe de Estado manteve, na anterior legislatura, uma estreita articulação com a então secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim, com quem revelou ter “um contacto permanente”, de dia e de noite, até pelas várias ações conjuntas, algumas pela madrugada dentro.

Quando o anterior Governo apresentou o Plano de Ação 2017-2018, Marcelo Rebelo de Sousa apontou o documento como “um símbolo de um novo arranque”, mas recentemente deu a entender que houve um período de paragem até à execução do Plano de Ação 2019-2020, num ano eleitoral. No início deste mês, o Presidente da República afirmou querer perceber se o novo Governo, com outra equipa na Segurança Social, tenciona ou não prosseguir a ação iniciada pelo anterior executivo nesta matéria, antes de sair às ruas de Lisboa com a nova ministra Ana Mendes Godinho.

Nesta segunda-feira, retomou as reuniões de trabalho alargadas no Palácio de Belém, insistindo no objetivo de integrar todos os sem-abrigo até 2023, declarando apoio ao Governo nessa “tarefa comum”.

Porto com 140 pessoas a viver na rua e 420 em alojamentos temporários

A Câmara do Porto tem sinalizados 560 sem-abrigo, 140 a viver na rua e 420 em alojamentos temporários, sendo que a maioria são homens, entre os 45 e 64 anos, e estão nestas situações há mais de um ano. O “Relatório de Análise de Dados – Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-abrigo do Município do Porto”, concluído na passada semana e hoje divulgado pela câmara, faz a distinção entre as pessoas em situação de ‘sem teto’ (140) e ‘sem casa’ (420), traçando um perfil do sem-abrigo no concelho.

Este perfil, extrapolado a partir dos dados reunidos, retratam um homem entre os 45 e os 64 anos, solteiro ou divorciado, português e com uma retaguarda familiar inexistente. Terá o 2.º ou 3.º ciclo, baixas qualificações profissionais, competências pessoais e sociais deficitárias. Estará nesta situação há mais de um e há menos de cinco anos e tem fortes probabilidades de desenvolver problemas de saúde físicos e mentais pela falta de acompanhamento médico. É beneficiário do Rendimento Social de Inserção e recorrerá a outras fontes paralelas de rendimento como, por exemplo, arrumar carros ou a mendicidade. É provavelmente consumidor de álcool ou substâncias psicoativas ilícitas, podendo ter sido esta a causa ou consequência da sua situação. Acompanhado, no âmbito do Atendimento Integrado por uma Técnica Gestora de Caso, poderá pernoitar na rua ou em quarto pago.

Em resposta à Lusa, o município salienta que o número de pessoas em situação de sem-abrigo na cidade do Porto diminuíram face ao início do ano, quando se contabilizavam mais 136 pessoas nesta situação. Os dados disponibilizados revelam que atualmente estão sinalizadas 560 pessoas, 140 estavam numa situação de sem teto, menos 34 pessoas em relação aos dados do início do ano.

No caso das 420 pessoas sem casa, 91 foram colocadas em centros de alojamento temporário, 24 em alojamentos específicos para ‘sem casa’ e 305 em quartos pagos. Segundo o relatório, das 560 pessoas em situação de sem-abrigo (PSSA) existentes na cidade do Porto, a maioria são então do sexo masculino (84%), e apenas 16% são do sexo feminino. Este facto tem vindo a ser discutido pelos técnicos de intervenção, refere o relatório, que conclui que as mulheres terão maior acesso aos recursos da comunidade, em termos de saúde e sociais, permitindo-lhes ficar por mais tempo afastadas da rua.

O mesmo documento indica ainda que a maioria dos indivíduos nestas circunstâncias(64%) tem entre 45 e 64 anos e 26% entre 31 e 44 anos, permitindo “presumir que se assiste a um envelhecimento precoce da população, com implicações evidentes, por exemplo, na integração no mercado de trabalho”. A maioria é de nacionalidade portuguesa (89%), sendo apenas 11% de outros países. Quase metade (49%) são naturais do município do Porto e 36% de outros municípios. Os restantes 15%, são naturais de países da União Europeia, PALOPS, de outros países ou encontram-se em situação desconhecida.

Estes números, salienta o relatório, são compreensíveis à luz da “volatilidade do fenómeno e a mobilidade das pessoas em situação de sem-abrigo”, que torna a cidade do Porto num polo de grande atratividade, importando “refletir que 51% das pessoas não são naturais do Porto, mas estão referenciadas e a ser acompanhadas”. Do total de PSSA caracterizadas neste inquérito, apenas 1% tem o ensino superior. Já 46% têm o 2.º ou 3.º ciclo, 34% o 1.º ciclo, 9% têm o ensino secundário e 5% não têm escolaridade.

O relatório revela ainda que a maioria das pessoas está em situação de sem-abrigo há mais de um ano e menos de cinco (33%), enquanto que 27% encontram-se nesta situação entre cinco anos e menos de 10. Do total, 18% estão sem-abrigo há 10 ou mais anos, 10% entre seis meses a um ano e 6% há menos de seis meses. O Rendimento Social de Inserção (RSI) é a fonte de rendimento mais frequente na maioria das PSSA, constituindo 64% das respostas. Por outro lado, 13% das pessoas têm outras fontes de rendimento e 9% vivem com pensões regulares.

Como outras fontes de rendimento foram identificadas a mendicidade, o tráfico de substâncias psicoativas, trabalho sexual, biscates, arrumar carros, pequenos furtos, entre outros. De acordo com aquele relatório, o consumo de álcool ou substâncias psicoativas ilícitas (386 respostas – 28% do total) é a razão mais apontada para justificar a situação de sem-abrigo, seguida da ausência de suporte familiar (318 respostas – 23%). O desemprego é a 3.ª causa mais frequente com 191 respostas (14%). Adianta ainda aquele documento, que durante o ano de 2018, 32 pessoas que estavam em situação de sem-abrigo, conseguiram obter uma habitação de caráter permanente.

PAN defende cartão do cidadão para sem-abrigo

O PAN apresentou na Assembleia da República um projeto de resolução no qual recomenda ao Governo a atribuição de um cartão de cidadão às pessoas em situação de sem-abrigo, para que possam exercer “em pleno” a sua cidadania. A iniciativa, que deu entrada na terça-feira, recomenda ao executivo socialista, liderado por António Costa, que seja atribuído “um cartão de identificação a todos aqueles que não têm uma casa ou um teto”.

Na ótica do PAN, esse dado poderia constar do ‘chip’ identificativo presente no cartão, e a comprovação da morada poderia ser feita “através do testemunho do técnico ou assistente social da área onde pernoita o sem-abrigo”.

Defendendo também a “distinção entre o conceito de residência e o conceito de morada”, o partido recomenda ao Governo, através deste projeto de resolução subscrito pelos quatro deputados eleitos, que “desenvolva um sistema informático nacional, comum aos vários intervenientes na área das pessoas em situação de sem-abrigo”.

Neste sistema deveria constar informação, que seria partilhada para facilitar “o acompanhamento de cada caso, nomeadamente a agilização dos processos”, uma vez que o partido refere que esta ferramenta permitiria “agilizar a comunicação com os distintos serviços públicos, facilitar em situações críticas como a entrada nas urgências de um hospital e ainda apoiar o desenho de futuras políticas nesta matéria”. “Atualmente, por questões burocráticas, não é permitido que as pessoas em situação de sem-abrigo sejam portadoras de uma cidadania plena, pois é-lhes vedado o acesso à obtenção de documentos que exijam a indicação de uma residência, como é o caso do cartão do cidadão”, refere o partido em comunicado.

No projeto de resolução, o PAN salienta que esta medida ia abrir a porta a “oportunidades económicas e sociais sem opressões ou limitações”. Notando que a legislação atual “já permite a emissão de um cartão do cidadão provisório sem indicação de uma residência, com uma validade de 90 dias”, o Pessoas-Animais-Natureza advoga que “esta exceção deveria ser aplicada às pessoas em situação de sem-abrigo, até que estas possam indicar uma residência permanente” ou comprovar que residem na rua, “através do técnico ou assistente social da área onde pernoitam”.

No projeto de resolução, o PAN advoga que, “à falta de uma morada, deverá admitir-se como válida a indicação de um apartado postal, de um número de telemóvel, ou mesmo de um endereço eletrónico, como elemento acessório” de identificação. “Embora seja um direito de todas as pessoas serem portadoras de um cartão de identificação, o facto de este não poder ser emitido a quem não tem uma residência não promove a autonomia das pessoas em situação de sem-abrigo”, alerta o PAN.

A líder do grupo parlamentar, citada no comunicado, entende que “este entrave desrespeita e retira dignidade àquelas pessoas que, pela condição em que se encontram, já estão de muitas formas excluídas da sociedade” “Uma pessoa que não tenha cartão do cidadão não exerce em pleno a sua cidadania nem os seus direitos, como o direito de acesso à justiça, aos tribunais ou à segurança social pelo que esta é uma medida da mais elementar justiça social e de respeito pelos direitos humanos”, acrescenta.