Agora sim, a morna foi elevada a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO. A decisão final saiu do Comité Intergovernamental de salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade, reunido até sábado, 14 de dezembro, em Bogotá.

Foi na capital da Colômbia que o grupo de representantes de estados-membros da UNESCO deu o passo final no processo iniciado pela música mais icónica de Cabo Verde em março de 2018. Em novembro de 2019, o Ministro da Cultura de Cabo Verde, Abraão Vicente, já tinha celebrado a classificação. Na altura, tinha sido apenas o Comité Técnico de Peritos da UNESCO a dar um parecer favorável ao dossier da morna — uma decisão não vinculativa, mas geralmente respeitada pelo Comité Intergovernamental.

A morna, popularizada por intérpretes como Bana, Cesária Évora, Tito Paris ou Ildo Lobo, é a música de poetas e compositores como B.Leza (Francisco Xavier da Cruz), Manuel D’Novas e Eugénio Tavares. Escrita em crioulo, com pelo menos 200 anos de história, já foi cantiga ao desafio, música de intervenção e janela para as dores de um país afligido por séculos de colonização, fomes, probreza e emigração massiva.

“Ouve só um bocadinho e percebes a alma da morna”

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A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), sediada em Paris, tutela as manifestações culturais consideradas como Património. Também o fado, desde 2011, e o cante alentejano, desde 2014, são Património Imaterial da Humanidade.

Na 14.ª sessão do Comité Intergovernamental de salvaguarda do Património Imaterial da Humanidade, há uma candidatura portuguesa. O Carnaval de Podence tem parecer positivo do Comité Técnico de Peritos. É a 30.ª candidatura não urgente a ser considerada em Bogotá. A decisão deve chegar até quinta-feira, 12 de dezembro.

A música da saudade, contada e cantada à Rádio Observador

“O que canta a morna?”, pergunta Admiro Almeida ao ar, apenas para responder momentos depois: “saudade, amores não correspondidos, amores atormentados, amor da terra”. Para o filho de Bana — o Rei da Morna, falecido em 2013 — é a canção do mar, da distância, do fatalismo e do irremediável, “é a nostalgia do ritmo, que se sente mais quando se está longe”. A morna, conclui Admiro, em Portugal há 45 anos,  “preenche o universo de todos os cabo-verdianos”.

De Cabo Verde sai também o batuque, o funaná e até uma versão muito própria da mazurca polaca. Sandra Mascarenhas, diretora do departamento de Património Imaterial do Instituto de Património Cultural de Cabo Verde, deixa a certeza de que todas estão “muito vivas”. Mas explica a diferenciação: “A morna é o nosso clássico“.

[Oiça aqui a reportagem “Ouve só um bocadinho e percebes a alma da morna”, com sonoplastia de Beatriz Martel Garcia]

Para Gabriel Moacyr Rodrigues, etnomusicólogo e figura chave no estudo académico da morna, é também um meio de afirmação cultural, e união da diáspora. Por iniciativa própria, exemplifica: “Um primeiro-ministro de Cabo Verde estava num encontro com outros representantes internacionais. A certa altura, um chefe de estado do norte da Europa pergunta-lhe onde fica Cabo Verde. O primeiro-ministro, sem sucesso, fala nas dez ilhas minúsculas ao largo de África. Depois desiste e exclama ‘É  a terra de Cesária [Évora]’. O europeu responde ‘Ah, é uma terra de bela música'”.

Em Lisboa, Dino D’Santiago revela um outro olhar: “Reconheço a história de Cabo Verde pelas histórias transmitidas na morna, mas não sinto dor, apenas a nostalgia por um sítio que pertence aos meus pais“. O pai, revela, “não conseguia ouvir Portons de nos Ilha, de Ildo Lobo com Os Tubarões, sem chorar”. “Para mim é bem mais doce”, admite o filho de cabo-verdianos, músico e, lado a lado com Mayra Andrade, uma das grandes vozes da música de influência cabo-verdiana no mundo.

**A reportagem “Ouve só um bocadinho e percebes a alma da morna” termina com um excerto do Palco de Domingo da TCV, de 18 de novembro de 2019**