A Europa precisa de dinheiro e já sabe onde o ir buscar: ao IVA que não é cobrado pelos Estados-membros por causa de fraudes e fuga ao fisco. Só em 2017 ficaram por cobrar 137,5 mil milhões de euros de IVA face ao que era esperado, o equivalente a 267 euros por cada cidadão europeu. O Parlamento Europeu quer ir atrás de parte deste dinheiro e para isso aprovou dois relatórios legislativos da eurodeputada Lídia Pereira. A deputada do PSD e do PPE dá particular atenção aos cinco mil milhões de euros que escapam ao fisco no comércio online, contando para isso com o CESOP — uma megabase de dados sobre compras online que pretende combater o IVA — como principal instrumento.
Os relatórios de Lídia Pereira propõem algumas alterações face à proposta inicial da Comissão: melhorar a comunicação entre as autoridades fiscais dos países da UE, que sejam modernizados e simplificados os sistemas de faturação do IVA ou, por exemplo, que se comece a refletir sobre a aplicação destas regras a plataformas de câmbio de moedas virtuais.
Pausa para Orçamento, a Europa segue dentro de momentos.
Pouco depois de a eurodeputada portuguesa apresentar dois relatórios sobre o IVA no Parlamento Europeu, na segunda-feira à noite, Mário Centeno entregava o Orçamento do Estado para 2020 no Parlamento. No documento, o Governo admite baixar o IVA de acordo com o consumo das famílias, mas a medida depende da autorização do Comité do IVA da Comissão Europeia (a quem o governo já enviou uma carta).
Lídia Pereira, que faz parte da Comissão das Finanças no Parlamento Europeu e que elaborou dois relatórios sobre o IVA, considera que a proposta do governo é “lamentável” e “politicamente ardilosa porque o governo ganha tempo para ter uma resposta que provavelmente até já sabe de antemão“. A eurodeputada destaca que a resposta “provavelmente poderá ser negativa”, mas apesar disso o governo quer “tentar convencer as pessoas” de algo que depois não conseguirá dar. E explica: “O governo precisa de ouvir o comité do IVA porque o IVA é um imposto europeu anti-concorrencial. Esta discriminação por classes introduz o aspeto da concorrência”.
Além disso, Lídia Pereira considera que o Governo, com esta proposta, entra numa “discussão perigosa”, já que pode “excluir as famílias com mais carência energética, que não têm casas tão preparadas, que não são tão eficientes do ponto de vista energético”. Para a eurodeputada o IVA deve descer, tal como consta da proposta do partido, para todas as famílias de forma igual.
Como o relatório Pereira quer ‘caçar’ o IVA nas compras online
Voltando à Europa, o processo começou com na Comissão Europeia — que tem a iniciativa legislativa — tendo depois o diploma seguido para o Parlamento Europeu. Foi nesta fase que Lídia Pereira — como relatora principal — entrou no processo, com dois relatórios em que propõe algumas alterações à proposta da Comissão Europeia. Agora as propostas ainda terão de passar pelo crivo do Conselho Europeu, onde terão de ser aprovadas por unanimidade.
O principal objetivo de ambos os relatórios é combater a fuga ao fisco no IVA, em particular no comércio eletrónico, onde por ano escapam 5 mil milhões de euros aos cofres do fisco dos Estados-membros. O valor representa, por exemplo, o volume de negócios deste setor em Portugal. Atualmente, 90% das compras online no espaço europeu são realizadas através de transferências de crédito, débitos diretos e pagamentos por cartão, ou seja, através de um intermediário envolvido na operação (um prestador de serviços de pagamento).
O primeiro relatório aprovado — com 590 votos a favor, 19 contra e 81 abstenções — cria novas obrigações de conservação de registos para os prestadores de serviços de pagamento. Desta forma, os prestadores de serviços de pagamento são forçados a conservar o “registo das informações relativas às operações de pagamento transfronteiras durante um período de três anos, a fim de ajudar os Estados-Membros a combater a fraude ao IVA no comércio eletrónico e a detetar os autores de fraudes”. A proposta da comissão era de apenas dois anos, mas o relatório de Lídia Pereira propôs os três pois era “um equilíbrio entre os dois e os que pediam cinco anos”.
Já a pensar no futuro — uma vez que atualmente isso ainda não tem uma dimensão relevante — o relatório propõe que a comissão, no prazo de três anos, possa “avaliar se as plataformas de câmbio de moedas virtuais devem ser incluídas no âmbito de aplicação da presente diretiva.” Ou seja: a diretiva pode eventualmente ser estendida aos pagamentos com moedas virtuais.
O relatório também estabelece um valor mínimo de pagamento que obriga à aplicação das regras de comunicação. A proposta original (da comissão) previa como meta mínima 25 pagamentos entre o mesmo pagador e recetor do pagamento, mas o relatório de Lídia Pereira acrescenta o valor mínimo (para a comunicação) de 2.500 euros para transações únicas.
Atualmente esses prestadores de serviços de pagamentos recebem pedidos de informação de diferentes Estados-membros numa variedade de formatos e de acordo com procedimentos diferentes. Ou seja: por exemplo, o fisco português pede uma coisa, o francês outra e o finlandês outra. Com as novas regras, os prestadores de serviços de pagamento devem uniformizar a informação que dão a todas as autoridades. Isso facilitará a comunicação entre as várias administrações fiscais e o combate à evasão fiscal.
O segundo relatório aprovado — 591 votos a favor, 18 contra e 86 abstenções — é, precisamente, relativo à criação de um sistema eletrónico central para o armazenamento dessas informações e para o seu tratamento posterior pelos funcionários antifraude dos Estados-Membros no âmbito da rede Eurofisc.
Consenso para atacar a fuga ao IVA
Na segunda-feira, Lídia Pereira defendeu os dois relatórios no hemiciclo europeu, onde houve um consenso dos grandes grupos relativamente a esta matéria, antecipando que a proposta fosse aprovada. PPE, socialistas, liberais, conservadores e verdes concordaram que o caminho é o combate à fraude.
O comissário Paolo Gentinoli, agradeceu a “qualidade do debate”, elogiou o trabalho da relatora (o que fizeram vários outros deputados) e registou o “amplo apoio manifestado às propostas”. No encerramento do debate, Lídia Pereira registou que a “digitalização está a mudar as nossas vidas” e que “a fraude no IVA está a crescer no digital porque o mercado digital está a crescer”. Lídia Pereira lembrou que “os impostos são inevitáveis” e que o grande desafio dos políticos é colocá-los ao serviço dos cidadãos.
Apesar do amplo consenso também houve vozes que destoaram. Gunnar Beck, do grupo da extrema-direita, criticou a proposta porque disse que ela traz “mais impostos e mais burocracia” para os cidadãos europeus quando eles querem precisamente o contrário.
Eugen Jurzyca, dos Conservadores (ECR), também ficou chocado com os 137,5 mil milhões de euros, considerando a “maior fraude fiscal” que existe no espaço europeu e um “número horripilante“. No entanto, destacou que este “não é um problema de toda a Europa, mas de alguns países“. Isto porque os dados da própria comissão demonstram que a diferença entre o IVA que se esperava cobrar e o que é efetivamente cobrado (por culpa da fuga) vai de uma variação de 0.6% no Chipre até 35.5% na Roménia. Ora, Jurzyca sugere que se faça uma “análise de qualidade com base em factos e não em opiniões” e que os Estados que não estão a cumprir tomem as medidas necessárias. Ou seja: não é um problema Europeu, mas de alguns países.
Em Portugal, em 2017 (o ano em que há dados mais completos) o desvio entre o IVA que devia ter sido cobrado e o que efetivamente foi acabou por ser de 10%. Ou seja: nem está mal classificado e conseguiu reduzir o desvio em 5 pontos percentuais entre 2013 e 2017. Mais do que isso: a previsão para 2018 aponta para uma redução para 8%. Ainda assim — e sendo dos países em que este problema é menor — só em 2017 Portugal não cobrou IVA que devia ter cobrado no valor
O eurodeputado Dimitrios Papadimoulis, do GUE/NGL, exigiu à comissão que seja mais eficaz no combate à evasão fiscal, porque considera “o volume da fraude assustador”. O grego da esquerda europeia exigiu “sanções mais graves” e pediu à comissão para investir no combate à fraude, já que não basta ter regulamentos, é preciso dinheiro para tornar eficaz o combate.
O jornalista viajou ao Parlamento Europeu a convite do Partido Popular Europeu