Título: A Luz de Pequim
Autor: Francisco José Viegas
Editora: Porto Editora
O género policial, para ser verdadeiramente apetecível, necessita de dois elementos base: um crime interessante o suficiente para prender o leitor logo no início, seja pela sua bizarria, complexidade ou dimensão, e uma resolução que tenha tanto de óbvio quanto de inesperado, e que desvende satisfatoriamente o mistério. Com mais ou menos perícia e arte, tudo o que acontece no meio não é mais do que uma ponte a unir estes dois pontos.
Aquilo que Francisco José Viegas faz em A Luz de Pequim é exatamente o oposto disto, com algum grau de sucesso, e talvez por isso só tangencialmente se possa dizer que esta obra é um policial. Acompanhamos Jaime Ramos, personagem recorrente nas obras do autor, um inspetor veterano da Polícia Judiciária da zona do Porto, que é chamado a investigar um caso de homicídio. Alfredo Aleixo, conhecido traficante e consumidor de droga, foi encontrado morto, pendurado da ponte D. Luís. Este é o crime que despoleta a narrativa, sem, no entanto, ser o seu foco. Pouco acompanhamos a investigação deste crime, relegado para segundo, ou até terceiro plano. A sua resolução, no fim do livro, é rápida e sem percalços. Pouco mais há a dizer sobre o elemento policial.
Em primeiro plano estão as personagens em si, girando todas à volta de Jaime Ramos, mas sem serem por ele definidas. As personagens mais interessantes partilham as mesmas características, ainda que com histórias pessoais diferentes. São homens já de alguma idade, com um passado ativo, seja político, académico ou empresarial, repleto de vitórias e falhanços, e com muitos esqueletos no armário. Todos, ao falar com Jaime, discorrem sobre a passagem do tempo, a efemeridade da vida, e do que vale a pena ou não levar desta vida quando já se sabe que pouco dela sobra.
Viegas descreve-os como homens de aparência frágil, porque idosa, mas com uma grande tenacidade e força mental. Talvez seja importante destacar dois destes homens, Severo Aleixo, pai assassinado, e Júlio Freixo, amigo de Jaime. Ambos comunistas da velha guarda, de grande influência dentro do partido durante a ditadura, e que, até os dias de hoje, lhe continuam fiéis. Homens de convicções inabaláveis, cuja grande falha é não terem conseguido ser os pais que deviam ter sido. Essa é a sua grande mágoa, e a razão para não se deixarem morrer ainda, como se tivessem ainda um último objetivo, o de se reconciliarem com os seus filhos.
Neste policial o vilão não é o criminoso com o seu plano maléfico, mas sim o passado, que regressa para assombrar todos. Em ninguém isto é mais óbvio do que no próprio Jaime Ramos. Ao longo dos anos, os seus métodos nem sempre foram os mais ortodoxos, agindo mais segundo o seu instinto e consciência do que de acordo com a lei. Jaime faria o que fosse preciso para garantir a justiça, mesmo que para isso fosse preciso alterar algumas provas ou deixar fugir alguns criminosos. Porém, ele próprio reconhece que a Polícia mudou muito nos últimos anos, enchendo-se de psicólogos e sociólogos, mais preocupados com a boa imagem da corporação. O que antigamente seria tolerado em Jaime, hoje em dia é motivo de forte censura por parte dos seus superiores. O inspetor vê então o seu próprio passado ser investigado, e todos os seus esqueletos são desenterrados.
Jaime Ramos pode ser considerado um herói “à antiga”. Homem de poucas palavras e de semblante carrancudo, é uma espécie de Clint Eastwood, mas do Porto e com mais uns quilos em cima. No entanto, este cowboy urbano português demonstra uma grande profundidade psicológica, equilibrando as poucas palavras com muitas reflexões, num estilo quase de stream of consciousness, muitas vezes perdendo-se num labirinto mental.
De forma geral, Viegas construiu todas as personagens com uma capacidade retórica e filosófica acima do normal, independentemente de quem são e do seu contexto. Apesar de apresentar um Porto alternativo àquele que é apresentado aos turistas, um Porto real, quase todos os que nele deambulam são irreais, no sentido em que conseguem retirar-se de si próprios e refletir de forma clara sobre tudo.
Apesar de não ser um policial muito interessante, se tivermos exclusivamente em conta os seus elementos basilares, A Luz de Pequim é uma narrativa que explora a forma como o ser humano encara o passado, real ou fabricado, e a sua frustrante incapacidade de seguir em frente, não só por fraqueza sua, mas por força das circunstâncias a que está alheio.