Os incêndios na Austrália fizeram, pelo menos, 17 mortos e 18 desaparecidos desde outubro de 2019 — altura em que começou o verão, refere o Guardian. Um número que, segundo as autoridades, pode vir a aumentar. Há muitos incêndios espalhados pelo país, mas os estados de Nova Gales do Sul, Vitória e Austrália Ocidental — sudeste e sudoeste da Austrália — são os mais afetados.

Todos os anos há fogos no país, mas será esta uma situação sem precedentes? O que está a provocar estes incêndios? Qual o papel das alterações climáticas? O cenário pode vir a piorar? Respondemos a estas perguntas para explicar o que se passa com estes fogos, que já consumiram quase seis milhões de hectares e destruíram milhares de casas.

O que está a causar estes incêndios?

Uma seca extrema, temperaturas extremamente elevadas e ventos fortes. Três fatores que combinados são propícios para ocorrência de incêndios.

Aquela parte da Austrália está há muito tempo com uma seca muito forte e estão a ser batidos recordes de temperaturas máximas”, explica José Miguel Cardoso Pereira, docente e investigador no Centro de Estudos Florestais do Instituto Superior de Agronomia (ISA), ao Observador.

2019 foi o ano mais quente e mais seco alguma vez registado na Austrália, refere a Australian Broadcasting Corporation (ABC). O país tem vindo a debater-se com uma onda de calor, que chegou em meados de dezembro — altura em que se deu o dia mais quente alguma vez registado no país, avança o Guardian: 47,7ºC em Birdsville (Queensland). E o calor parece estar longe de abrandar.

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Temperaturas a baterem recordes num “continente muito quente e seco” é algo “muito sério”, refere ainda o investigador. Mesmo que se tratem de “zonas mais costeiras e florestais”, como são aquelas mais atingidas pelos fogos. Desde 2003 que as estações meteorológicas australianas não registavam uma média de temperatura máxima tão elevada, acrescenta José Miguel Cardoso Pereira. “Há duas semanas, esse recorde foi batido em três dias consecutivos”.

E não é só em termos de temperaturas que o país tem vindo a bater recordes: a primavera de 2019 foi considerada a mais seca dos últimos 120 anos, ou seja, desde que há registo, lê-se na ABC. Foi ainda considerada a quinta primavera mais quente de sempre.

Há esta seca muito prolongada, à qual se têm acrescentado ondas de calor brutais. Portanto, a combinação destas duas circunstâncias faz com que qualquer foco tenho um potencial enorme para se tornar num grande incêndio”, diz Cardoso Pereira, destacando também os ventos fortes que se têm feito sentir no país.

Esta, aliás, é uma particularidade dos incêndios florestais na Austrália: muitas vezes o vento acaba por transportar as fagulhas, provocando outros fogos bem distantes do ponto de origem, explica a CNN. Um bombeiro voluntário de 28 anos morreu no mês passado precisamente porque o camião que conduzia virou-se com a força do vento — o New York Times fala mesmo num “tornado de fogo”.

Todos estes fatores fizeram com que os fogos na Austrália atingissem estas enormes proporções.

Bombeiros a combater um incêndio em Jerrawangala, no estado de Nova Gales do Sul (PETER PARKS/AFP via Getty Images)

Segundo o investigador do ISA, “a vasta maioria” dos fogos australianos têm origem em “causas naturais”, nomeadamente “trovoadas secas” — “raios que atingem a superfície”, mas que não são acompanhados de aguaceiros. A CNN refere mesmo que a trovoada seca provocou vários fogos em dezembro, na região de East Gippsland, no estado de Victoria. Fogos que, em apenas cinco horas, se estenderam por 20 quilómetros.

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Ainda assim, não é possível excluir o fator humano. Em novembro, um bombeiro voluntário de 19 anos foi detido por ter ateado sete incêndios num período de seis semanas que, posteriormente, ajudou a extinguir, lê-se na CNN.

É uma situação sem precedentes?

Depende da perspetiva. Já houve incêndios que provocaram mais mortes do que as registadas até ao momento com estes fogos. A CNN recorda os incêndios de 2009, que contabilizaram 173 mortos no estado de Victoria — é considerado o incêndio com o maior número de mortos de que há registo.

O que é particularmente notável este ano é que a área atingida pelo fogo é enorme e a duração destes incêndios é completamente anómala”, explica José Miguel Cardoso Pereira.

Segundo a CNN, já arderam cerca de 5,9 milhões de hectares, dos quais 3,6 milhões em Nova Gales do Sul, 1,2 milhões na Austrália Ocidental e 1,9 milhões no estado de Victoria.

O Guardian publicou, esta segunda-feira, um gráfico com os hectares ardidos nos últimos anos em Nova Gales do Sul. Em 1974, arderam mais de 3,5 milhões de hectares e é o valor mais próximo, desde 1970, da área ardida até ao momento. Nos últimos dez anos, por exemplo, o número de hectares ardidos não chegou aos 500 mil. “Para porem a situação em perspetiva, nos últimos anos, tivemos uma área total ardida de cerca de 280 mil hectares”, afirmou a porta-voz dos bombeiros de Nova Gales do Sul ao Guardian.

Para David Bowman, diretor do The Fire Centre da Universidade da Tasmânia, inédito é o facto de os incêndios atravessarem grande parte do país. “O alcance geográfico, e o facto de estar a acontecer tudo ao mesmo tempo, é o que torna isto sem precedentes”, afirmou ao Guardian, explicando que há incêndios ativos desde o nordeste ao sudeste do país, passando também pelo sudoeste e até pela ilha da Tasmânia.

Segundo José Miguel Cardoso Pereira, estes incêndios na Austrália começaram mais cedo do que nos anos anteriores (Sam Mooy/Getty Images)

O investigador do ISA destaca ainda o facto desta época de incêndios ter começado mais cedo do que anteriores episódios de fogos no país. Segundo José Miguel Cardoso Pereira, o período entre meados de dezembro e meados de fevereiro é “tipicamente o mais quente e seco nesta parte da Austrália”. Desta vez, porém, os “problemas” começaram “logo no princípio de novembro”, isto é, “um mês e meio antes do que normalmente é o período com condições meteorológicas mais perigosas”.

Aliás, logo em meados de novembro, foi emitido um alerta de “perigo catastrófico de incêndio” para várias regiões do país, nomeadamente a zona de Sidney. É o alerta mais grave e foi a primeira vez que foi emitido desde que foram criadas as novas classificações de perigo de incêndio na Austrália em 2009, refere o Guardian.

O docente do ISA explica ainda que não é inédito que haja incêndios nas zonas mais atingidas em 2019 e 2020. Apesar de haver fogos um pouco por todo o país, o sudeste (Nova Gales do Sul e Victoria), bem como o “sudoeste [Austrália Ocidental] e o estado da Austrália do Sul” têm sido os mais afetados, refere Cardoso Pereira. No entanto, estas são zonas que não são atingidas recorrentemente por fogos, em particular “o norte do estado da Nova Gales do Sul e o sul de Queensland”. Porquê? Porque o tipo de floresta que existe nestes locais é “demasiado húmido”, pelo que o risco de incêndio é muito mais reduzido.

Mais: “são ecossistemas — quer as plantas, quer a vegetação, quer a fauna — que, ao longo dos milénios de evolução, não têm experiência de serem expostas ao fogo”, explica Cardoso Pereira. Ou seja, “não têm defesas naturais, nem grande capacidade de recuperação” e isso faz com que “os danos” sejam mais graves, acrescenta. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com as florestas de eucaliptos e acácias, que “estão em áreas mais sujeitas a fogos, calor e secura” e que, por isso, “evoluíram e criaram adaptações” para recuperar e até resistir aos fogos.

O investigador destaca “outro problema”: o facto de os australianos terem uma “ocupação urbana dispersa no meio destas zonas de floresta”. Segundo o Guardian, esta quinta-feira, dezenas de milhares de pessoas ficaram retidas durante as evacuações em massa dos estados de Nova Gales do Sul e Victoria. Em Nova Gales do Sul, houve quem tivesse ficado preso no trânsito durante cerca de 10 horas depois da ordem de evacuação, não só devido a novos focos de incêndio, mas também devido ao tráfego que se registou nas várias estradas.

Devido às ordens de evacuação em Nova Gales do Sul, várias pessoas ficaram retidas no trânsito (Peter Parks/AFP via Getty Images)

Qual o impacto das alterações climáticas nestes incêndios?

Para José Miguel Cardoso Pereira, não é possível dizer que estes fogos tenham as alterações climáticas como causa. “O que é claro é que se torna muito mais provável haver uma época com extremos de calor repetidos, com esta duração, num cenário de alterações climáticas“, explica o investigador do ISA.

A verdade é que quando se fala de alterações climáticas, refere-se por norma o aumento da temperatura média na ordem de 1ºC ou 2ºC. Isto pode parecer pouco, mas “é preocupante do ponto de vista dos incêndios“.

Um pequeno aumento [da temperatura média] aumenta substancialmente a probabilidade de ocorrerem extremos de temperatura”, diz Cardoso Pereira. Ou seja, um aumento aparentemente insignificante da temperatura média pode traduzir-se num aumento do número de dias com temperaturas superiores aos 35ºC ou até aos 40ºC.

“A tendência de aumento [da temperatura média] não é muito espetacular, mas a repercussão é que em vez de haver, por exemplo, 10 dias com temperaturas a ultrapassarem os 35ºC/40ºC durante um verão na Austrália, passa a haver 20 dias ou um mês. E isto não é só na Austrália”, afirma o docente universitário.

Algo importante no que toca aos incêndios, porque é precisamente em dias secos, quentes e ventosos que eles costumam ocorrer. Cardoso Pereira explica que esta situação na Austrália deve-se ao facto de ter havido vários picos de calor, com dias em que as temperaturas ultrapassaram os 40ºC, “e é isto que se torna mais provável que aconteça à medida que as alterações climáticas vão avançando.”

Segundo o New York Times, devido a estes incêndios, o governo australiano tem sido intensamente criticado por não ter conseguido baixar as emissões de dióxido de carbono do país e por ainda não ter encontrado um consenso no que toca às políticas relativas às alterações climáticas.

Quais são os danos registados até ao momento?

Além dos pelo menos 17 mortos contabilizados até ao momento, milhares de habitações ficaram destruídas com os fogos — a CNN fala mesmo em localidades totalmente destruídas, sendo que o estado de Nova Gales do Sul foi o que registou maiores danos. De acordo com os bombeiros, desde o início da época de incêndios até dia 2 de janeiro, foram destruídas 1300 casas e mais de 400 ficaram danificadas.

Cardoso Pereira também destaca os “danos muito severos” a nível da biodiversidade. Segundo a CNN, que cita a ministra australiana do Ambiente, Sussan Ley, em finais de dezembro já tinham morrido quase um terço dos coalas do estado de Nova Gales do Sul nos incêndios.

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Esta situação pode piorar?

É possível. “Ninguém pode garantir que o pior já tenha passado“, diz José Miguel Cardoso Pereira.

Tal como já referiu, a época de maior calor na Austrália costuma ser entre meados de dezembro e meados de fevereiro e ainda agora estamos no início de janeiro. “O mês de janeiro deles é o equivalente ao nosso mês de agosto“, acrescenta o investigador do ISA. ” [O país] ainda pode ter pela frente mais uma semanas quentes e secas.”

E deixa um aviso: “Se há 50 anos uma coisa destas podia ocorrer de 30 em 30 anos, agora é bom que estejam preparados para que aconteça em intervalos de 20 ou 15 anos, o que já é catastrófico.”