Primeiro, uma carta enviada às autoridades iraquianas; depois, um desmentido do secretário da Defesa norte-americano; por fim, o reconhecimento de que se tratava de uma carta genuína, mas que foi enviada por “engano”.
Esta segunda-feira a imprensa internacional noticiou a retirada das tropas da coligação militar internacional liderada pelos Estados Unidos do Iraque, na sequência do voto do Parlamento iraquiano contra a presença das tropas norte-americanas no país. A fonte era segura e a fundamentação da notícia — uma carta, com o timbre do Departamento de Defesa e a assinatura do comandante das tropas americanas no Iraque, enviada pelas forças armadas dos EUA às autoridades militares iraquianas — também. Ainda assim, pouco tempo depois de ser divulgada em todo o mundo, o Pentágono negou a informação. “Ainda não houve nenhuma decisão de sair o Iraque”, afirmou o secretário da Defesa dos EUA, Mark Esper, sublinhando que a carta divulgada é “inconsistente” com a “posição atual do governo norte-americano”.
BREAKING: The US military sends a letter to the Iraqi military announcing the “onward movement” of US troops “in due deference to the sovereignty of Iraq & as requested by the Iraqi Parliament & the Iraqi PM”. It’s a withdrawal. pic.twitter.com/tQHSsHTtez
— Liz Sly (@LizSly) January 6, 2020
“Estamos a reposicionar as forças em toda a região”, limitou-se a confirmar Esper. “Não consigo falar-vos da veracidade dessa carta e posso dizer-vos o que li. Essa carta é inconsistente com a nossa posição atual”, garantiu o governante, ressalvando ainda ter lido o documento apenas uma vez .
Poucos minutos depois, um alto responsável das forças armadas norte-americanas explicou o que efetivamente se terá passado: a carta era verdadeira, mas supostamente não devia ter sido enviada. Seria apenas um “rascunho”. Foi Mark Milley, Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas norte-americanas, quem reconheceu o erro: a carta era “genuína”, mas “não devia ter sido enviada”. De caminho, revela a AFP, Milley apontou mesmo o culpado: “Foi um erro de McKenzie”, disse, referindo-se ao comandante do Comando Central dos EUA, o general Frank McKenzie.
Se o episódio tivesse ficado por aqui já seria inusitado o suficiente. Porém há mais: através do Twitter, a correspondente do Washington Post em Beirute, Liz Sly, revelou entretanto que várias das suas fontes militares, questionadas sobre o assunto, lhe garantiram que as cartas-rascunho costumam ter uma marca de água distintiva — exatamente com a palavra “rascunho”. “Também me têm dito que não é normal que os rascunhos de cartas sejam traduzidos. E este foi”, acrescentou ainda a jornalista britânica, que publicou aquela que se supõe ser uma fotografia da versão do documento em árabe.
Some former members of the military are telling me that draft letters are watermarked with the word “draft”. It’s also being noted that it isn’t normal for draft letters to get translated. This one was pic.twitter.com/pi7dGhRzSY
— Liz Sly (@LizSly) January 6, 2020
Não obstante todas as versões e explicações posteriores, a mensagem divulgada pela carta é clara. E o que o comandante das tropas americanas no Iraque, William H. Seely, escreveu foi: “Respeitamos a vossa decisão soberana a ordenar a nossa saída (…) Em respeito pela soberania da República do Iraque, e como pedido pelo Parlamento e pelo primeiro-ministro, a coligação irá reposicionar as suas forças (…) para assegurar que a saída do Iraque é levada a cabo de maneira segura e efetiva”.
Parlamento iraquiano vota a favor de expulsar do país tropas dos EUA
Os Estados Unidos tinham até agora 5.200 militares no Iraque. Na semana passada, o país anunciou o envio de perto de 3.500 militares para a região, na sequência da escalada de tensão entre os EUA e o Irão devido à morte do general Qassem Soleimani, líder militar iraniano. Os EUA mataram Soleimani num ataque aéreo em retaliação contra ataques de uma milícia apoiada pelo Irão contra posições norte-americanas no Iraque e na Síria.
De acordo com a imprensa internacional presente em Bagdade, na noite desta segunda-feira já foi possível ouvir helicópteros norte-americanos em movimentações, não havendo ainda certezas sobre se estarão ou não relacionadas com a retirada dos militares da coligação internacional do território iraquiano. De facto, na carta — que pode ser lida na íntegra aqui — lê-se que durante o período da saída das tropas da coligação do Iraque “haverá um aumento do tráfego de helicópteros dentro e à volta da zona internacional de Bagdade”.