“Vamos rir-nos à vossa custa, são só piadas. De qualquer das formas, vamos morrer, não há sequela”. 

Longe vão os tempos em que estas palavras, proferidas pelo comediante Ricky Gervais, serviriam unicamente para assustar as celebridades que se juntavam para mais uma gala dos Globos de Ouro. Ou onde não era preciso assinalar que aquilo eram “só piadas”. Desde 2016 que Ricky não apresentava esta cerimónia e desde essa altura que o mundo mudou, mas principalmente os Estados Unidos da América. Veio Donald Trump, veio a era #metoo, o politicamente correto, as fake news e, pelo meio, um confronto direto entre aquilo com que um comediante pode ou não brincar. E é aqui que entram estas palavras ditas por Ricky Gervais, no passado domingo em Beverly Hills, no papel de anfitrião dos Globos de Ouro, pela quinta e última vez.

A poucos dias de voltar a apresentar a cerimónia, Ricky Gervais deu uma entrevista ao “The Hollywood Reporter” na qual, além de garantir que escreve todo seu material para estas noites, deixou claro que o seu monólogo teria de ter piadas “à prova de bala” — algo que aconteceu na mesma altura em que o comediante estava a ser criticado por piadas transfóbicas. Isto porque Kevin Hart, que iria apresentar os Óscares o ano passado, acabou a pedir desculpas por piadas que fez há muito tempo. Pois Ricky não parece pedir desculpas, nem no Twitter — onde se mete em inúmeras discussões — nem em cerimónias. E esta sua nova sequela não lhe ficou atrás. No entanto, o público dos Globos já não acha tanta graça a Ricky.

Estávamos a caminho de mais uma noite de escárnio e mal dizer e até o próprio Ricky admitiu, enquanto as celebridades posavam para as fotografias de praxe, “não saber o porquê de a estar a apresentar outra vez”. “Só espero que termine, eles [Hollywood] vão aproveitar mais do que eu”, afirmou o comediante a Ryan Secrest. Mal a Passadeira Vermelha terminou, o The Beverly Hilton fez silêncio, daquele de quem não sabe bem do que está à espera — ou, por outro lado, que sabe perfeitamente o que esperar. Ricky, de smoking preto, qual coveiro da noite, está afiado. “Vão ficar contentes por esta ser a última vez, já não quero saber… estou a brincar, nunca quis saber”, começa. Lá vamos nós.

[o monólogo de Ricky Gervais:]

À medida que vai descarrilando o seu monólogo, a plateia foi reagindo, sempre a medo — ou talvez sem paciência para o ouvir. Foi Ricky a disparar para todos os lados, da realeza, ao elenco do “Irishman”, passando também pela Igreja. “Foi um grande ano para filmes sobre pedófilos: ‘Surviving R Kelly’, o ‘Leaving Neverland’ e o ‘Two Popes’. O olhar gélido, sem expressão, do ator Jonathan Price (que fez de Papa Francisco) disse tudo mal a câmara se virou para ele.

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Mas o monólogo inicial, que teve praticamente oito minutos, ainda ia no início. Houve farpas à longa duração do filme “Irishman”, comparações entre o ator Joe Pesci e o Baby Yoda, provocações à grande nomeada Netflix, e tiradas à Hollywood Foreign Press. “A Hollywood Foreign Press é muito racista. Íamos fazer um in memoriam, mas depois vi a lista dos que morreram, não era diversificada o suficiente, basicamente era tudo branco, disse-lhes que não deviam fazer”. Uma piada que fez lembrar a polémica de há três anos, o #OscarsSoWhite, em que os vinte atores principais e secundários nomeados eram todos brancos. Não deixa de ser curioso que também o apresentador desta edição dos Globos foi um homem branco, já que o ano passado, pela primeira vez, tivemos uma mulher asiática (a atriz Sandra Oh) a dividir esse papel com Andy Samberg.

E, claro, a referência à figura do ano para a revista Time, Greta Thunberg. Ricky quase implorou para que quem viesse receber o galardão ao palco não se metesse em discursos políticos. “Vocês não estão em posição para dar lições ao público sobre nada. Não sabem nada sobre o mundo real. Muitos de vocês passaram menos tempo na escola do que a Greta”, uma piada que não deixa de ter um quanto de ativismo, não fosse Ricky uma das vozes mais fortes na defesa do direito dos animais. Mas vá, esta até que foi bem recebida.

Antes de se seguirem os primeiros prémios da noite, Gervais teve tempo de fazer propaganda à nova temporada da sua série “After Life”, de brincar com a altura de Martin Scorsese e de fazer uma analogia — talvez a mais ao lado da noite, olhando para as reações — da  actriz Judi Dench, que entra no filme “Cats”, a lamber-se como um gato. E claro, lembrar o suposto suicídio de Jeffrey Epstein, o multimilionário norte-americano, envolvido numa rede de pedofilia. “Eu sei que é vosso amigo, mas eu não quero saber”. Os “oooh” foram substituindo os risos ao longo da noite. Ou mesmo as expressões de desagrado, como a do ator Tom Hanks, um dos homenageados desta gala.

[Ricky Gervais ainda na passadeira vermelha:]

Depois de terminar o monólogo, Ricky Gervais foi surgindo, qual sombra, entre infindáveis intervalos para anúncio — e muitos, muitos prémios. O gás com que começou, terminou no início e nunca mais se viu. Limitou-se a dizer os nomes de quem iria entregar os próximos Globos e pouco mais, quase como alguém se quer despachar para se ir embora. Ah, e claro, a brincar com a duração do “Irishman”.

Nas suas últimas intervenções, conseguiu relembrar o facto de não estarem mulheres nomeadas para a categoria de Realização e dizer o nome de outro grande elefante na sala, Harvey Weinstein. “Não olhem para mim, vocês é que o fizeram, vocês é que o fizeram”, como quem diz: a culpa dos abusos e assédio sexuais é vossa, Hollywood. Sempre a apontar o dedo, até que a NBC, canal que emitiu esta edição, lhe cortasse a voz.

A verdade é que a fibra de Ricky para estes eventos  já não é a mesma, e talvez a novidade de ver alguém a destilar ódio para cima de gente famosa, com milhões de espectadores a assistir, tenha ficado sem gás. Quando o jornalista que assina a tal entrevista à Hollywood Reporter lhe perguntou o porquê de aceitar outra vez, Ricky respondeu: “Porque é divertido! Eu tento ser o outsider”. Ou, por outras palavras, aquele que não foi convidado para lá estar (que somos, no fundo, todos nós, espectadores). O que só demonstra uma coisa: a plateia do Twitter, a que está no sofá, onde Ricky “batalha” com todo o tipo de pessoa, sem palcos, sem nada, não é, de todo, a que esteve em Beverly Hills. Nem faria sentido que fosse. Ricky poderá culpar esta nova era do politicamente correto, do não se poder dizer nada sem correr o risco de ofender alguém, mas ele “não quer saber”. Até porque esta foi a sua última vez por estas bandas. “Doem dinheiro para a Austrália, embebedem-se e… desapareçam!”, terminou. Pois, ele desapareceu.