“Nós não acreditamos num modelo de saúde de supermercado baseado em vales“. A afirmação foi feita pela ministra da Saúde esta segunda-feira, no Parlamento, a propósito do Orçamento do Estado (OE) para 2020.
Durante a audição, no âmbito da apreciação na especialidade do OE, Marta Temido afirmou que o Governo não acredita “num modelo de supermercado”, tendo por base vales de consultas e cirurgias para serem utilizados no setor privado ou social.
Nós não acreditamos num modelo de saúde de supermercado baseado em vales: vale cirurgia, vale consulta, vale médico de família, vale urgência, enfim, vale tudo para satisfazer os interesses de alguns, que não os interesses de todos”, disse.
Esta afirmação da responsável pela pasta da Saúde surge após uma entrevista do bastonário da Ordem dos Médicos à Lusa. Miguel Guimarães, o único candidato ao cargo de bastonário nas eleições da ordem— que se realizam a 16 de janeiro— , sugeriu que fossem criados vales de consultas, à semelhança do que já acontece para as cirurgias, que permite aos utentes recorrerem ao setor privado ou social para serem operados, quando os tempos máximos de resposta garantida são ultrapassados nos hospitais do SNS.
“Os tempos máximos de resposta garantidos acabam por não ter uma consequência direta naquilo que deveriam ter. Se o SNS não consegue dar resposta, então vamos complementar com o setor privado ou social para ver se temos resposta para o doente. E o Estado assume a responsabilidade financeira, naturalmente. Nas cirurgias isso já existe”, disse o bastonário da Ordem dos Médicos à Lusa.
“Vai ser um ano particularmente exigente para todos os que trabalham no SNS”
A ministra da Saúde abriu a audição desta segunda-feira, voltando a reforçar que a Saúde é “a grande prioridade orçamental” do Orçamento do Estado (OE) para 2020, mas deixou um aviso: “Este vai ser um ano particularmente exigente para todos os que trabalham no SNS.”
“Para estar à altura do esforço orçamental dos portugueses é preciso garantir que não se perca nenhuma oportunidade de resposta àquilo que esperam de nós.”
A ministra da Saúde acrescentou ainda que este será “um ciclo de expansão” e indicou alguns números dos últimos anos. Entre 2010 e 2012, a despesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) diminuiu 1.400 milhões de euros, “assim se mantendo até 2014 e continuando, em 2015, 906 milhões de euros abaixo do valor de 2010”.
A despesa total cresceu 1.635 milhões de euros entre 2015 e 2019, em particular devido a despesas com pessoal e com consumos intermédios, como medicamentos e dispositivos. “Em termos de dotações do Orçamento de Estado, se entre 2010 e 2015 se apurou um decréscimo de, em média, 1,8%, no período 2015-2019, apurou-se um crescimento médio anual de 3,5%, revertendo-se a anterior tendência”.
Relativamente a 2020, a ministra adiantou que a “dotação orçamental inicial do SNS será reforçada em 941 milhões de euros face ao orçamento do ano anterior, elevando o acréscimo orçamental acumulado face a 2015 para os 2.412 milhões de euros”. Recorde-se que o Orçamento da Saúde tem mais de 11 mil milhões de euros para este ano.
Este é, portanto, o primeiro fundamento para afirmar que a Saúde constitui a grande prioridade orçamental. O fundamento que radica em constatar que, depois de um ciclo de redução houve um ciclo de reposição e estão agora criadas as condições para um ciclo de expansão.”
A ministra da Saúde voltou a reforçar que este orçamento não irá apenas “afetar mais recursos ao SNS”, mas “é o instrumento de uma política económica em que o foco são as pessoas e reduzir o desequilíbrio orçamental do SNS só terá sentido se tiver efeito prático nas suas vidas“. Marta Temido referiu ainda os “três vértices” em que se irá focar a “ação governativa”: “qualificação do acesso; motivação dos profissionais de saúde; e investimento na rede do SNS”.
“Mais oferta de cuidados adequados em volume, tempo e qualidade” nos cuidados de saúde primários — com a dispensa das taxas moderadoras —, nos hospitais — com a “melhoria da atividade programada, em especial, de primeiras consultas e de cirurgias” —, e nos cuidados continuados integrados e cuidados paliativos — com 800 novas camas; “novas contratações”; e “incentivos ao desempenho” são algumas das medidas que se inserem nesta ação governativa.
Mais cerca de 200 mil portugueses com médico de família
Em resposta ao deputado André Ventura, do Chega, Marta Temido disse que mais cerca de 200 mil portugueses vão ter médico de família em 2020 , sendo que atualmente há mais de 600 mil portugueses sem médico de família. E explicou que, com o número de aposentações destes profissionais de saúde e com o número de médicos de Medicina Geral e Familiar que agora terminam a sua especialidade, o Governo prevê “cobrir” mais 200 mil utentes com médicos de família.
Entre o número de aposentações e taxa de retenção [dos recém-especialistas], conseguiremos, ao longo de 2020, cobrir mais cerca de 200 mil portugueses com médico de família.”
A ministra da Saúde esclareceu ainda que atualmente existem 10,3 milhões de utentes inscritos nos cuidados de saúde primários, sendo que 93% destes utentes têm médico de família. Relativamente à população residente, esta percentagem sobre para 97,7%. Marta Temido explicou que esta distinção é feita por causa da “população flutuante” que existe no número de inscritos nos cuidados de saúde primários — estudantes de Erasmus, por exemplo.
É um número que tem vindo a aumentar continuamente, dificultando a cobertura a 100%”, acrescentou.
Também a propósito das aposentações dos médicos, o PCP disse estar muito preocupado com a esta situação, avançando com um número: em 2019 e 2020, 1800 médicos vão reformar-se. Em resposta ao PCP, Marta Temido também deu números: em 2019, reformaram-se 1392 profissionais, dos quais 410 eram médicos, e no ano anterior, 881 (210 médicos). A ministra recordou que os mais de 8400 profissionais que serão contratados em 2020 e 2021 são “trabalhadores adicionais”.
A ministra indicou ainda que é “preciso aprofundar” a questão das urgências — também abordada pelo PCP —, considerando que não é possível avançar com um reforço do SNS “sem fazer uma reorganização”, sendo que isso não implica necessariamente uma “redução de serviços”.
Não tem a ver com eliminar serviços, mas com melhor organização. O desejável é ter serviços estáveis, com garantia de respostas ininterrupta e com casuística suficiente.”
Hospital de Braga: contratar mais 127 trabalhadores vai custar 2 milhões de euros
Antes desta afirmação da ministra, o deputado do PSD Álvaro Almeida abordou a questão do Hospital de Braga, que passou para a esfera do Estado no ano passado depois de uma gestão em regime de parceria público-privada (PPP). O social-democrata referiu que, no OE para 2020, a previsão do Governo é de “uma despesa de 218 milhões de euros, mais 33 milhões de euros” do que quando existia o modelo de PPP — os custos com a parceria público-privada eram de 186 milhões, referiu ainda.
Este é um exemplo de como as opções ideológicas levam a aumento de despesa”, afirmou o social-democrata.
O deputado considerou ainda que, se a Saúde é a grande prioridade deste Orçamento do Estado, então “a parcela” atribuída deveria ser “maior do que outras áreas”. “Não é esse o caso. A despesa aumenta apenas 2,8% e despesa primária cresce cerca de 5%. Dizer que é prioridade, quando a parte que vai para a Saúde acaba por diminuir, é uma ilusão”
Tal como já o tinha referido numa entrevista à TSF e ao DN, a ministra da Saúde afirmou que os trabalhadores do Hospital de Braga ainda continuavam a trabalhar 40 horas por semana, ao contrário do que se pratica atualmente nos hospitais públicos, e tinham remunerações inferiores às previstas na base da carreira da Administração Pública.
Marta Temido acrescentou que vão ser precisos contratar mais 127 trabalhadores para que seja aplicada a regra das 35 horas de trabalho na função pública, o que terá um custo de dois milhões de euros.
Ainda em resposta a Álvaro Almeida, a socialista Sónia Fertuzinhos afirmou que “o exemplo do Hospital de Braga diz bem da falta de credibilidade das críticas do PSD” ao Governo.
Se diz o que diz do Hospital de Braga, talvez fosse bom assumir junto dos trabalhadores e trabalhadoras que vão ver a sua remuneração aumentada que, na opinião do PSD, defender o SNS é manter uma tabela remuneratória mais baixa. É mantê-los a trabalhar as 40 horas, e defender o mesmo para todo o SNS.”
Bloco quer fim das taxas moderadoras já em 2020. Ministra fala em processo faseado, mas que se aplica a todas as consultas
Já Moisés Ferreira, deputado do Bloco de Esquerda (BE), abordou a questão das taxas moderadoras, que o OE para 2020 prevê eliminar de forma faseada, avançando que o partido quer que sejam eliminadas “já em 2020” e em todos os cuidados de saúde primários para que, no ano seguinte, se possam retirar as taxas “de tudo o que é prescrito pelos profissionais de saúde”, em particular relativamente aos meios de diagnóstico e terapêutica.
O bloquista referiu ainda que o Plano Plurianual de Investimentos, que tem uma verba prevista de 190 milhões de euros para os anos 2020 e 2021, é “muito parco”, considerando que este deveria ser um plano com “dimensão e horizonte de uma legislatura”, com “mais verbas alocadas”.
Foi ainda abordada a questão da dedicação plena dos profissionais de saúde, que o Bloco de Esquerda quer que tenha início já este ano, e a execução do Plano Nacional de Saúde Mental, que o partido quer ver executado na sua totalidade ainda em 2020.
Marta Temido disse estar disponível para “encontrar caminhos” no que toca às questões abordadas para tornar o SNS “mais forte”, mas deixou um aviso: “As escolhas que fizermos têm de ser escolhas muito ponderadas.”
A ministra disse que pretende executar o Plano Nacional de Saúde Mental na sua totalidade ainda este ano. Relativamente ao investimento plurianual, explicou que os 190 milhões de euros dizem respeito apenas a “esforço próprio” e que, além destes fundos, “existem fundos comunitários e outros que irão ser somados e que permitirão um investimento que se estima nos 383 milhões de euros“.
Relativamente às taxas moderadoras, Marta Temido esclareceu, já no final da audição em declarações aos jornalistas, que estas taxas serão eliminadas de forma progressiva “quer ao nível dos cuidados de saúde primários, quer ao nível de todos os cuidados prescritos no SNS” em todas as consultas.
Admitimos que, em sede de especialidade, possa haver inclusão de outros atos praticados em sede de cuidados de saúde primários, como por exemplo os meios complementares de diagnóstico e terapêutica, que não estavam ainda previstos na proposta de OE para 2020″, afirmou ainda Marta Temido, acrescentando que “o valor de cobrança associado à taxas moderadoras com consultas de todos os tipos em cuidados de saúde primários é de 40 milhões de euros“.
“Esta é uma primeira fase de um processo gradual”, indicou ainda a ministra. Caso a proposta venha a ser aprovada, entrará em vigor assim que a lei do Orçamento do Estado for aprovada.
“Estamos longe de esperar” um défice zero, diz CDS
Já o CDS falou em “pouca credibilidade” relativamente ao défice zero, que o Governo espera atingir — e que foi noticiado esta segunda-feira pelo jornal Público. Ana Rita Bessa recordou que, em 2019 houve um reforço de 800 milhões de euros e ainda assim, o ano terminou com um défice de 447 milhões de euros.
Estamos longe de esperar que no ano de 2020 se acabe com défice zero”, afirmou a deputada Ana Rita Bessa, sublinhando a “narrativa criativa” relativamente ao aumento do orçamento para a Saúde.
Ana Rita Bessa relembrou ainda projetos do Governo que ficaram por concretizar nos últimos anos, referindo não acreditar que será efetivamente dada a autonomia aos hospitais, como está prometido.
“É possível a dispensa” da taxa sobre dispositivos médicos com “acordos de sustentabilidade”
Em resposta à segunda ronda de perguntas feitas pelos deputados, a ministra da Saúde disse que ainda não tem os números de 2019 relativamente à prestação de serviços, mas referiu números de 2018: nesse ano, o custo das prestações de serviço foi de 118 milhões de euros e a despesa em horas extraordinárias foi de 226 milhões de euros. Sublinhou, contudo, que não será possível eliminar totalmente “o número de horas de prestação de serviços”.
Quanto à taxa sobre dispositivos médicos, Marta Temido adiantou que estão a decorrer reuniões com os parceiros no decurso desta proposta, afirmando que é “possível a dispensa desta contribuição através de acordos de sustentabilidade”, à semelhança do que já acontece com a indústria farmacêutica. Há vários anos que existe um acordo entre Governo e indústria farmacêutica, que estabelece o teto máximo de gastos com medicamentos para o SNS. Tudo o que ultrapasse esse teto, é devolvido pelo laboratórios em notas de créditos aos hospitais. As empresas que assinarem este acordo não ficam sujeitas a esta contribuição.
Ministério abriu 28 vagas para pediatria, mas 7 vagas vão ficar por preencher
A propósito de questões colocadas sobre a urgência pediátrica do Hospital Garcia de Orta, cuja urgência pediátrica está encerrada durante o período noturno desde meados de novembro, a ministra da Saúde referiu que, no concurso que foi aberto no final de 2019 para a contratação de mais médicos para o SNS e cujas candidaturas foram recebidas até 2 de janeiro, das 28 vagas para a especialidade de Pediatria, houve 21 candidaturas. Ou seja, haverá vagas que ficarão por preencher, mas ainda não é possível avançar o que irá acontecer com as vagas para o Garcia de Orta.
“O número de candidaturas na área da Pediatria é de 21 para 27 vagas, cinco dessas vagas são no Garcia de Orta”, explicou Marta Temido, acrescentando que o serviço procedeu a um “contacto direto com os potenciais interessados para apresentar” o projeto na área de Pediatria no hospital.
Em entrevista ao Observador, Luís Amaro, presidente do Conselho de Administração do Garcia de Orta, não se mostrou otimista relativamente ao preenchimento destas cinco vagas. A ministra afirmou que tudo está a ser feito para as preencher, mas que, ainda assim, o Governo não desiste “de outras soluções” menos agradáveis como “o recurso a prestações de serviços, agora que o quadro [de profissionais do hospital] está a ganhar mais corpo”. Recorde-se que foram contratados mais dois pediatras, que já começaram a trabalhar. Para Luís Amaro, sem a contratação de mais cinco, não haverá condições para abrir a urgência.
Marta Temido referiu ainda que o hospital de proximidade do Seixal terá um investimento de 49,5 milhões de euros, e o Governo “estará até março em fase de análise de propostas de candidatos”. A ministra estimou ainda o início da obra para 2021 e uma execução em 24 meses.
Apesar de o prazo estar a terminar, a ministra não quis adiantar nada sobre o futuro do Hospital Beatriz Ângelo, um hospital do SNS com gestão em modelo de parceria público-privada. O contrato termina a 18 de janeiro de 2022, pelo que o Governo tem até à próxima sexta-feira, dia 17 de janeiro, para decidir se avança ou não com a renovação da PPP.
Até à próxima sexta-feira [17 de janeiro], a entidade pública contratante terá de decidir sobre a renovação ou não renovação, uma decisão distinta sobre o lançamento de uma nova parceria — e que será tomada mais adiante”, afirmou Marta Temido, indicando que a decisão “será comunicada em primeira mão ao parceiro privado”.
Hospital de Loures põe pressão sobre governo e faz revista dedicada à vantagens da PPP