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"Trocámos o sentido da vida por sensações que geram vazio. Se queremos ter êxito temos de saber esperar"

Este artigo tem mais de 4 anos

O sentido da vida está a ser substituído por sensações como o sexo, a internet e o álcool. Em entrevista, a psiquiatra Marian Rojas Estapé diz que o século XXI está "psicologicamente doente".

Maria Rojas Estapé é autora de "Como fazer para acontecerem coisas boas", um dos livros mais vendidos em Espanha em 2019
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Maria Rojas Estapé é autora de "Como fazer para acontecerem coisas boas", um dos livros mais vendidos em Espanha em 2019

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Maria Rojas Estapé é autora de "Como fazer para acontecerem coisas boas", um dos livros mais vendidos em Espanha em 2019

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A forma como gerimos os conflitos pode, de certa forma, predispor-nos a sofrer de ansiedade ou depressão, e a felicidade não é necessariamente o que nos acontece, mas a forma como interpretamos as coisas, escreve Marian Rojas Estapé, psiquiatra e autora do livro “Como fazer para acontecerem coisas boas”, êxito de vendas em Espanha, com mais de 200 mil exemplares vendidos. O livro da editora Planeta chegou a Portugal com o arranque do novo ano.

Em entrevista ao Observador, numa segunda-feira em passagem por Lisboa, Marian Rojas Estapé fala de uma sociedade “hiperestimulada” que nos deixa constantemente alerta e explica como esse “modo de sobrevivência” nos pode afetar física e psicologicamente. Afirma que o século XXI está “psicologicamente doente” e que o grande desafio é mesmo “sermos capazes de abrandar e filtrar o que é importante”. Mas a mensagem mais marcante é esta: estamos a substituir o sentido da vida, a base da felicidade, pelo consumo constante de emoções e sensações que podem gerar um grande vazio. A resposta pode estar na forma como lidamos com a tecnologia e trabalhamos as nossas relações fora do ecrã.

O livro está à venda nas livrarias portuguesas desde 7 de janeiro por 17,75 euros

Este é ou não um livro de autoajuda?
Acho que a autoajuda tem muito má fama. As pessoas não gostam de autoajuda e criticam-na. Muitos autores inserem-se nesta temática para escrever sobre qualquer coisa. O meu é um livro científico, com muitos exemplos. Pode parecer que é autoajuda, mas acho que é mais um ensaio no qual explico o cérebro, a mente e as emoções. Gosto do conceito que o dono de uma livraria em Espanha criou, chamado “livros que inspiram” — ele meteu numa estante vários livros “que inspiram”, como a biografia de um desportista, um romance histórico e… o meu livro. As pessoas sentiam-se melhor quando iam a essa zona, do que quando iam à zona de autoajuda.

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Porque acha que a autoajuda é muito criticada?
Por dois motivos. Um, ninguém gosta de pedir ajuda. Dois, nos últimos anos este tem sido um grupo de livros no qual tem entrado de tudo — o bom, o normal e o mau, pelo que já não há prestígio. É um tipo de livro que há uns anos tinha o seu público e que, agora, já não tem prestígio.

Antes de avançarmos mais: o seu livro fala em como podemos mudar a maneira de pensar e, assim, mudar a maneira de sentir. Parece que a felicidade é da nossa inteira responsabilidade. Há uns tempos entrevistei os autores do livro “A Ditadura da Felicidade”, de Edgar Cabanas e Eva Illouz, no qual se falava em como a Psicologia Positiva funciona a favor da sociedade individualista e consumista e como desresponsabiliza as estruturas sociais em que vivemos. Que opinião tem?
Conheço o Edgar Cabanas, participámos num debate numa rádio espanhola, no dia mundial da felicidade. Acho que aqui acontecem duas coisas. A primeira é que a Psicologia Positiva tem efeitos benéficos na saúde, mas a Psicologia Positiva sem realismo faz muitos danos. Entendo perfeitamente o ponto do Edgar: o mundo em que tudo é maravilhoso, em que não é precisa preocupação, sem bases, sem solidez, tem prognósticos muito maus porque falta realismo. A vida tem sempre uma componente de drama, a vida é um drama. Tem dor e sofrimento, doença e morte. A componente de dor é muito importante… Temos de aprender a reconhecer a dor, a questioná-la e a superá-la. Sabemos que uma das maneiras de o fazer tem que ver com a Psicologia Positiva, isto numa análise realista da vida e não negacionista. Há uma coisa que me parece importantíssima: não pode existir uma obrigação para sermos felizes.

“Hoje, dizer-se que não se é feliz é uma vergonha. Se não somos felizes é por culpa nossa”

No livro escreve que a felicidade — da qual todos andamos à procura — não é o prazer momentâneo, mas sim o que construídos, o sentido da vida.
O prazer é bom, dá-nos gratificação instantânea, mas se não nos soubermos questionar desenvolvemos um grande sentimento de vazio. A felicidade não se pode definir, são instantes que acontecem porque existe um equilíbrio entre os nossos objetivos na vida, entre o que desejamos alcançar e o que vamos conseguindo alcançar. Esse equilíbrio dá-nos paz interior. Mas não pode haver uma obsessão em alcançar constantemente sensações, caso contrário ficamos viciados em experiências vibrantes. Falo daquilo a que chamam de dependência emocional — “Quero sentir, quero sentir, quero sentir”. Isso não gera felicidade. Traz, ao invés, um vazio.

É por isso que fala num “vazio espiritual” e afirma que recorremos ao consumo de sexo, comida e álcool? 
A felicidade depende do sentido que damos à nossa vida, o propósito de vida. Se a nossa vida não tem um sentido, o que acontece é que este é substituído por sensações. Que sensações? Sexo, comida, compras, apostas na internet e álcool. Mas essas sensações, num sentido lato, geram um grande vazio — vazio que nos leva a condutas aditivas. Num estudo muito importante sobre a felicidade no mundo, liderado por um psiquiatra em Harvard, procurou-se em todas as pessoas de Boston, de classe alta e de classe baixa, o que comiam, quanto ganhavam, onde passavam o verão, registos médicos, etc, para ver o que é que fazia com que as pessoas envelhecessem melhor e fossem mais felizes. A resposta? Relações humanas. As relações têm a capacidade de curar-nos enquanto a solidão mata. A solidão é tanto um fator de risco como o tabaco ou a alimentação. Quando nos sentimos queridos e temos relações sãs, de qualidade, as defesas melhoram porque a hormona que ativada, a oxitocina, beneficia o sistema imunológico.

É interessante que no livro explica como ter uma boa relação. Porque é que é necessário explicar isso às pessoas? Já não nos sabemos relacionar?
Penso que cada vez custa mais. Hoje em dia as pessoas conectam-se melhor com um ecrã do que com uma pessoa. Há pessoas que têm mais capacidade de explicar-se e de dizer as coisas através de Whatsapp do que falando com alguém num café. Uma das coisas que mais me surpreende são os muitos pais que em consulta me dizem que, quando chega o fim de semana, os filhos preferem ficar a jogar online ao invés de sair à rua com os amigos. Parece-me alucinante que a sociedade tenha chegado a este ponto… Pela primeira vez na história os jovens preferem ficar em casa conectados online [do que sair à rua]. Se os jovens não se sabem relacionar, como é que um dia vão resolver conflitos?

É psiquiatra, licenciada em Medicina e Cirurgia, e trabalha atualmente no Instituto Español de Investigaciones Psiquiátrica em Madrid © DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Diz também que vivemos na sociedade da “confusão e da dificuldade de compromisso”. E que quem parece sofrer mais com isso são os millennials. Porquê?
De repente passámos de uma sociedade de exigência, de dureza na educação e de falta de empatia — questões relacionadas com uma época de guerras — para uma sociedade de superproteção, do cuidado. Fomos de um extremo ao outro. A superproteção gera personalidades débeis, incapazes de enfrentar a vida e personalidades medrosas. Antes, para se alcançar objetivos era preciso muito esforço, as gratificações tardavam. Um exemplo tonto: as séries de televisão davam semanalmente. Hoje em dia isso seria inaceitável. Hoje vemos dez episódios de uma série num fim de semana e não esperamos. O nosso cérebro passou de saber esperar para não saber esperar. Disseram-nos: “Se quer sentir, pode sentir sempre que quiser, o quanto quiser. Pode comprar coisas e pode sentir-se querido com os likes nas redes sociais”. Conseguimos ter sexo rápido através de aplicações, a pornografia é de fácil acesso, existe a possibilidade de fazer compras rápidas, podemos comer o que quisermos porque nos trazem a comida a casa em poucos minutos… Conseguimos tudo o que queremos, pelo que o nosso cérebro já não sabe esperar.

Uma das coisas que sabemos que ajuda a trazer ao de cima o melhor do ser humano é a capacidade de ter vontade. A vontade é a capacidade de adiar a recompensa. As pessoas mais felizes e que mais êxito têm na vida são as que têm vontade — a vontade está no córtex pré-frontal, a mesma zona do cérebro que está encarregue da atenção, da concentração, da resolução de problemas e do controlo de impulsos. Se não tivermos a capacidade de adiar a recompensa, e se necessitarmos de tudo agora, desenvolvemos uma grande frustração porque queremos sentir tudo naquele momento, queremos o êxito agora.

De certa forma temos de aprender a resistir à sociedade em que estamos inseridos?
Totalmente. E temos de aprender a reconhecer que se queremos ter êxito na vida temos de saber esperar. Caso contrário, acumulamos. Estamos numa sociedade onde o consumo é incessante porque a oferta de emoções é infinita. Consumimos constantemente emoções.

É uma situação paradoxal, até porque o mercado proporciona estes serviços de gratificação instantânea…
Sim, efetivamente. Os fabricantes sabem e conhecem o nosso cérebro. Hoje em dia [o que está em causa] é a economia da atenção. O que antes movia o mundo eram as armas, as drogas e as farmacêuticas, hoje em dia o que move o mundo é a capacidade de reter a atenção das pessoas a maior quantidade de tempo possível num ecrã. Isso é o que gera a economia. É a economia dos dados. Mas quem fabrica isto não deixa os filhos usarem ecrãs…

Não há tempo para refletir e construir sentimento crítico?
Acho que o grande desafio do século XXI consiste em sermos capazes de abrandar e, neste consumo incessante de informação, em sermos capazes de filtrar o que é importante. Nunca tivemos tanto acesso a informação e nunca fomos tão vulneráveis ao engano. Já não sabemos o que é a verdade e o que é a mentira. Temos de ensinar aos jovens e a nós mesmos a filtrar. E para isso é preciso formação/educação e não ter medo a voltar às origens. Para entender o que está a acontecer é preciso não ter medo de voltar a ler livros, de conhecer a história… Porque, afinal, não estamos a descobrir nada, tudo isto já aconteceu de outras formas.

Continuando a falar em millennials, escreve que há uma diferença entre quem passou pela adolescência com e sem redes sociais. O que vai acontecer quando todas as pessoas já tiverem passado pela adolescência com redes socais? O que vai acontecer quando já não existir memória do que é estar offline?
O nativo digital, hoje em dia, não é assim tanto nativo digital. Quero dizer, quando estudas o cérebro percebes que não é uma questão de ser nativo digital, mas de aprendizagem com muita facilidade. A avó do meu marido, quando tinha 80 anos, recebeu um iPad. Numa semana sabia usar o iPad como mais ninguém. Porque está desenhado para ser muito intuitivo. O que se passa é que daqui a dez anos o Instagram já terá desaparecido. Em dez anos será outra coisa. Nós tivemos o Blackberry… E já nem falo do Nokia ou do Alcatel. O que é claro é que se queremos uma sociedade que tende ao equilíbrio mental, que tende a não adoecer, temos de aprender a questionar a tecnologia. Se isto tudo fosse tão maravilhoso, nós seríamos muito felizes. Em Espanha, e acho que em Portugal é parecido, 20% da população toma medicação. O século XXI é um século que está psicologicamente doente… Essa doença vem de vivermos em alerta, de vivermos stressados devido à necessidade de controlarmos tudo, à obsessão de nos mostrarmos sempre perfeitos, à incapacidade de abrandarmos e ao ecrã. Os estímulos são constantes.

Como é que a vida moderna nos está a prejudicar física e psicologicamente?
O ser humano tem duas maneiras de enfrentar a vida. Uma é o modo ameaça, o modo alerta, que ativa uma hormona que se chama cortisol. O outro modo é o de relaxamento, a que se chama de sistema nervoso parassimpático que remete para abrandar. Não podemos viver sempre em estado de alerta porque adoecemos. A hormona cortisol é muito boa porque nos ajuda a lutar e a fazer frente aos problemas, mas se esta hormona estiver sempre ativa ficamos intoxicados de cortisol e começamos a ter inflamações: gastrites, amigdalites… O corpo tem um estado de inflamação latente que o deixa mais propenso a adoecer. O cortisol muito alto baixa o sistema imunológico, as defesas ficam anuladas.

Está a ser fatalista?
É uma realidade. É mais fácil negar do que enfrentar a realidade, mas os psiquiatras e os terapeutas estão a começar a ficar muito preocupados devido ao excesso de consultas, à quantidade de pessoas que estão medicadas. Agora há uma obsessão por ir a sítios onde não há wifi e, por outro lado, há uma obsessão pelos estímulos. É preciso encontrar o equilíbrio.

A felicidade é, como escreve, uma questão de interpretação?
As mesmas coisas podem, em alguns momentos, irritar-nos e, noutros, não serem importantes. O nosso companheiro/a faz uma coisa de que não gostamos e num dia reagimos mal, noutro já não é nada de mais. Há coisas que são traumáticas para todos, mas há pessoas que reagem melhor e pior. E tudo depende de como interpretamos as coisas: interpretamos de acordo com o nosso estado de espírito, o nosso sistema de crenças e a nossa capacidade de focar a atenção de forma correta.

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