Não será uma surpresa. Todos os governos que promoveram o aeroporto complementar do Montijo, desde o liderado por Passos Coelho até aos dois Executivos comandados por António Costa, tinham conhecimento da legislação de 2010, o chamado decreto-lei dos aeródromos, e do poder que dava às autarquias afetadas para travar a infraestrutura.

De acordo com informação recolhida pelo Observador junto de técnicos que trabalharam no projeto nos últimos cinco anos, o tema era conhecido, e até se discutiu informalmente a eventual necessidade de ajustar a lei e as soluções jurídicas possíveis para superar eventuais entraves. Mas ninguém avançou com uma alteração legislativa até que o ministro que tem a pasta, Pedro Nuno Santos, afirmou publicamente que a lei teria de mudar quando confrontado com a oposição de pelo menos duas autarquias, Moita e Seixal, já manifestada ao projeto de expansão do aeroporto para o Montijo.

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Várias fontes ouvidas pelo Observador confirmam que o problema foi identificado ainda no tempo em que o ministro das Infraestruturas era Pedro Marques e durante o processo de preparação e negociação dos termos do memorando assinado entre o Estado e a ANA no início de 2019. E mais tarde, já na tutela de Pedro Nuno Santos e do secretário de Estado das Infraestruturas, Alberto Souto de Miranda, que herdou o dossiê de Guilherme W. d’Oliveira Martins, também houve alertas. A plataforma cívica contra o aeroporto do Montijo tinha igualmente conhecimento dessa condicionante, confirmou o Observador.

No entanto, esta possibilidade nunca foi invocada publicamente pelos opositores da solução, que sempre centraram o ataque ao Montijo no impacto ambiental, nas restrições operacionais que poderiam resultar das aves e numa solução “atamancada”, bem como no tempo de vida mais curto do que a alternativa prevista para o Campo de Tiro de Alcochete.

O problema estava identificado, mas não foi valorizado como um risco sério à execução do projeto. E porquê? Porque se considerava que o grande obstáculo à solução Montijo era a avaliação de impacte ambiental ao projeto. Todas as atenções estavam mobilizadas nesta fase crucial que já em 2017 se revelou bastante mais delicada do que o inicialmente previsto, depois de a autoridade ambiental, a APA, ter mandado para trás a primeira proposta de estudo de impacte ambiental apresentada pela ANA, por considerá-la insuficiente.

De acordo com uma das fontes ouvidas pelo Observador, antes de obter a luz verde ambiental não era o tempo adequado para se colocar o tema da autorização final ao projeto da infraestrutura. Só depois de conseguida a declaração de impacte ambiental, favorável e condicionada, o que aconteceu em janeiro deste ano, é que seria o tempo adequado para avaliar os outros requisitos necessários para o projeto avançar.

No processo de autorização para a construção da nova infraestrutura, o promotor tem de pedir a avaliação prévia do projeto do aeroporto ao regulador, a ANAC, de acordo com o diploma de 2010 (que fala especificamente em aeródromos). Nesse processo administrativo, o promotor tem de entregar uma série de comprovativos. Um deles é o parecer favorável de todas as câmaras municipais dos concelhos potencialmente afetados, quer por superfícies de desobstrução quer por razões ambientais. O mesmo diploma, numa disposição que já existia na lei de 2007, estabelece:

“Constitui fundamento para indeferimento liminar a inexistência do parecer favorável de todas as câmaras municipais dos concelhos potencialmente afetados”.

Mas a declaração do ministro das Infraestruturas a pôr já em cima da mesa a necessidade de mudar a lei só para evitar o chumbo de um projeto, já de si polémico e fraturante, pelo parecer negativo de uma ou duas câmaras, acabou por precipitar a discussão e levá-la do plano técnico para o plano político. O Governo sabia que podia contar já com a oposição firme do PCP, as câmaras que rejeitam o aeroporto do Montijo são lideradas por autarcas comunistas, e do Bloco de Esquerda que sinalizou logo não estar disponível para deixar passar uma alteração da lei. E se estava à espera que o PSD estendesse a mão, acabou por ter, isso sim, uma surpresa.

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Apesar de classificar a lei que o PS quer mudar de “estúpida” e “desproporcionada”, nas palavras do vice-presidente David Justino, o PSD recusa mudar uma lei à medida para permitir um projeto específico, não obstante ter sido o partido então liderado por Passos Coelho, a fechar as alternativas para a futura solução aeroportuária de Lisboa no projeto que estamos a discutir. E fê-lo em dois passos:

  • O primeiro foi quando, em 2012, assinou um contrato de concessão de 50 anos das operações aeroportuárias, ao vender a ANA aos franceses da Vinci. Esse negócio deixou nas mãos da empresa privada a iniciativa de propor uma resposta ao esgotamento da Portela que não passava necessariamente pela construção de um novo aeroporto de Lisboa.
  • O segundo foi ao aceitar a proposta feita pela ANA de avançar com um aeroporto complementar no Montijo, como resposta ao congestionamento anunciado do aeroporto de Lisboa, em vez de avançar para construção de uma nova infraestrutura para substituir o Humberto Delgado. Até já havia local definido – o Campo de Tiro de Alcochete – mas optou-se pela solução “Portela mais um” no último ano do mandato.

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Mas quando o Governo de Passos Coelho deu os primeiros passos para consolidar a solução do Montijo, houve logo a preocupação de tentar trazer para bordo as autarquias da área envolvente, incluindo Lisboa, mas sobretudo da margem Sul. Havia a noção de que para avançar com a infraestrutura seria necessário convencer as câmaras das vantagens do projeto, o que implicaria também acenar com pacotes de contrapartidas. A poucas semanas das eleições, o secretário de Estado das Obras Públicas, Sérgio Monteiro,  quis assinar um memorando de entendimento com as autarquias e a concessionária. Uma intenção que não foi para a frente porque as câmaras socialistas recusaram entrar num compromisso antes das legislativas.

Depois de alguma hesitação e de estudos adicionais, o Governo socialista acabou por confirmar a opção Montijo e até abraçar o projeto com o discurso do “não há alternativa”.

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Agora o PSD – com Rui Rio – vem tirar o tapete ao Governo, recusando a associar a alteração da lei ao quadro de viabilização de uma infraestrutura. O que significa que se a alteração da lei for chamado ao Parlamento, como pretendem o PCP e o Bloco, o PSD não vai viabilizar o diploma.

Mas e se a alteração ao quadro legal tivesse sido feita há mais tempo?

Várias pessoas envolvidas no processo e ouvidas pelo Observador consideram que isso não faria grande diferença em relação ao racional invocado pelos sociais-democratas para recusar viabilizar agora a mudança legislativa.  Tivesse sido alterada em 2012 — quando foi assinado o contrato de concessão dos aeroportos e a venda da ANA, — ou mais tarde no primeiro Executivo de Costa, depois de assinado o memorando com a concessionária que formaliza a opção Montijo, o problema seria sempre o mesmo. Estava-se a alterar uma lei para acomodar um projeto concreto e viabilizar a opção Montijo. No limite, o mesmo problema poderia colocar-se também em relação a Alcochete, ainda que esta localização — aprovada em 2010 e depois abandonada por causa do investimento exigido por um aeroporto de raiz  — tenha então recolhido o apoio das câmaras.

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Não necessariamente. Há outras soluções jurídicas para este nó cego. O próprio decreto-lei de 2010 abre a porta a uma necessidade de adaptação das regras quadro está em causa um contrato de concessão.

“Nas situações em que a exploração ou gestão dos aeródromos e aeroportos públicos seja objeto de concessão outorgada pelo Governo ou pelos Governos Regionais, a aplicação do presente decreto-lei deve ter em conta as condições da concessão, para o que deve o mesmo ser interpretado em conformidade com os termos daquela e aplicado com as necessárias adaptações.”

A concessão da ANA ainda não inclui o aeroporto do Montijo, que neste momento está fora do universo de aeroportos abrangidos pelo contrato. Logo, a solução em cima da mesa obriga a renegociar o contrato de concessão para incluir esta nova infraestrutura. E na alteração das bases da concessão dos aeroportos pode haver margem para resolver o problema. É certo que também este diploma, a ser alterado, pode ser chamado ao Parlamento para votação. Mas aí o PSD perde uma parte do argumento contra a alteração da lei geral por causa de um caso particular, porque aqui seria alterado o quadro legal que envolve o caso particular, neste caso o contrato de concessão dos aeroportos nacionais onde passaria a constar o aeroporto do Montijo.

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Para já os sociais-democratas atiram bola para o lado dos socialistas e recusam ser responsabilizados por um eventual retrocesso no avanço do aeroporto. Cabe ao Governo negociar com as câmaras que hoje estão contra o projeto.  E essa é, pelo menos em tese, outra via em aberto para ultrapassar o problema e que implicaria a negociação de contrapartidas mais atrativas para os concelhos afetados, eventualmente em matéria de acessibilidades ou outros. Mas isso implicaria mais dinheiro, seja público, seja privado. Ora um dos grandes trunfos do projeto para o Montijo é o valor relativamente baixo do investimento (1,3 mil milhões de euros incluindo a compensação para a Força Aérea, do qual menos de metade terá como destino a base do Montijo).

Resta saber se o PCP, que no passado recente deu mão ao PS, inviabilizando a descida do IVA sobre a eletricidade, deixará cair uma bandeira: a construção de um aeroporto novo no Campo de Tiro de Alcochete. E permitir que as câmaras que controla na área metropolitana de Lisboa entrem no avião do Montijo.