Os arquivos que conservam a documentação do Papa Pio XII (1939-1958) vão ser desclassificados a partir de segunda-feira por decisão do Papa Francisco, que disse não ter medo da História.

O Vaticano confirmou na semana passada a abertura dos arquivos reforçando a ideia de que a consulta da documentação venha a esclarecer o silêncio do Papa Pio XII acusado durante as últimas décadas de não ter levantado a voz contra o nazismo durante a II Guerra Mundial (1939-1945).

A Igreja não tem medo da História. Pelo contrário”, disse o Papa Francisco no dia 04 de março de 2019 quando anunciou a abertura da documentação relativa ao pontificado de Eugenio Pacelli (Papa Pio XII) que se prolongou entre 1939 e 1958.

A decisão tem sido comentada por historiadores e organizações judias sobre um Papa acusado de se ter calado perante o fascismo e o nazismo, notando inclusivamente que a poucos metros da cidade do Vaticano, no dia 16 de outubro de 1943, soldados nazis capturavam 1.022 judeus, entre os quais 200 crianças e adolescentes, que poucos dias depois foram enviados para o complexo de extermínio de Auschwitz instalado na Polónia. Destes 1.022 judeus capturados perto da cidade do Vaticano sobreviveram 17 pessoas.

Até ao momento, o Vaticano apenas acedeu, em 2004, abrir para consulta a “Inter Arma Caritas”, o gabinete de informação sobre os prisioneiros de guerra instituído por Pio XII e que recolheu entre 1939 e 1947 fichas de 2,1 milhões de prisioneiros de guerra.

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Em 1965, o Vaticano publicou documentação que acabou por ser coligida em 12 volumes — “Atos e documentos da Santa Sé relativos à II Guerra Mundial” — que continha material de arquivo sobre o pontificado de Pio XII.

A partir da próxima segunda-feira, os historiadores vão ter à disposição 16 milhões de documentos assim como dezenas de milhares de caixas procedentes não só do que foi conhecido como “arquivo secreto”, mas também de diferentes instituições do Estado do Vaticano que foram organizados nos últimos 14 anos.

Até ao momento foi autorizada a consulta a 85 investigadores, entre os quais historiadores do Museu do Holocausto (Washington) assim como de Israel, Alemanha, Itália, França, Rússia, Espanha e de vários países da América do Sul.

Um dos membros da equipa dos arquivos do Vaticano, onde se encontram os documentos pessoais dos papas, o argentino Alejandro Diéguez explicou que o trabalho de seleção dos últimos anos e relativo à Secretaria de Estado resultou em material contido em três mil caixas e a um inventário de 43.283 páginas.

O espanhol Luis Manuel Cuña Ramos disse que a parte dos documentos relativos à Congregação para a Doutrina da Fé vai esclarecer o pontificado de Pio XII e que muitas coisas “vão ser aclaradas”. “Desta documentação vai sair muito engrandecida a figura de Pio XII”, afirmou Cuña Ramos. “Vamos deixar-nos de ideologias e de preconceitos e vamos à História. Este é o momento para os historiadores tirarem conclusões”, acrescentou o responsável.

“Naquela altura (Segunda Guerra Mundial) falava-se ou fazia-se, mas ele (Pio XII) decidiu fazer. É muito mais fácil falar do que fazer, mesmo sabendo que estava a arriscar o próprio prestígio”, disse ainda o arquivista espanhol do Vaticano.

Alguns livros publicados nos últimos anos, que têm como base testemunhas da época, indicam que o Papa ajudou a salvar quatro a seis mil judeus que conseguiram refugiar-se na América do Sul. A teoria é defendida por Pierre Belt no livro “Pio XII e a II Guerra Mundial nos Arquivos Secretos”.

O bispo Sergio Pagano, responsável pelo Arquivo Apostólico Vaticano, disse recentemente que os historiadores têm “agora” o dever de consultar os documentos e “de forma honesta”, compará-los com diferentes fontes. “Nós acreditamos que os documentos ‘novos’ e os documentos ‘antigos’ podem trazer aspetos particulares e objetivos de um pontificado que foi crucial”, afirmou.

Sobre os documentos que mais o impressionaram, o bispo Pagano destaca a existência de cartas de estudantes judeus que depois da guerra enviaram mensagens de agradecimentos ao Papa. “Há numerosos testemunhos sobre a ajuda prestada por simples cristãos, assim como pelas instituições religiosas e bispos para conseguiram salvar essa pobre gente tão cruelmente perseguida”, concluiu.

Paralelamente, o Papa Francisco alterou formalmente, no final do ano passado, o nome – Arquivo Secreto do Vaticano, por – Arquivo Apostólico do Vaticano. Em outubro de 2019 um documento oficial informava que o “Arquivo Secreto do Vaticano, sem mudar de identidade, estrutura e missão”, mudava de designação.

Na altura o Papa Francisco recordava que o Arquivo Secreto do Vaticano, com mais de 400 anos de história nasceu do “núcleo documental da Câmara Apostólica e da Biblioteca Apostólica (que ficou conhecida como biblioteca secreta), nas duas primeiras décadas do século XVII.

Inicialmente recebeu o nome de “Archivum Novum” tendo depois passado a ser designado por “Archivum Apostolicum” e em 1646 passou a ter o título de “Archivum Secretum”.

Para o Papa Francisco o termo “Secretum” estava justificado porque indicava que o novo arquivo do Papa Paulo V (1610-1612) “não era mais do que um arquivo privado, separado e reservado”.

Mesmo assim, para o Papa Francisco, em virtude das mudanças que ocorreram nas línguas modernas, nas culturas e na sensibilidade social dos “diferentes países” o termo “Secretum” começou a ser mal interpretado e a tornar-se “ambíguo e com aspetos negativos”.

O Papa, depois de consultar sacerdotes, colaboradores e arquivistas optou por modificar a denominação para Arquivo Apostólico do Vaticano.