1917. Primeiro, o medo, a ingenuidade, o engolir em seco para abraçar a missão, a doutrina que vem de casa. Vemos um barco cheio de soldados portugueses a chegar a Moçambique. Vemos Zacarias, franzino, calado. Carrega a ambição de orgulhar a pátria em França, onde tudo acontece, mas aterra em África. Ao longe, chegam negros, que aqui, como em vários episódios da História, são meros números que transportam o que for necessário. Até soldados. ”Mosquito”, a segunda longa-metragem de João Sousa Pinto — depois de “América” — não é de encaixe fácil. Não é um épico. Mas também não é de silêncios duradouros ou de planos que contemplam em vez de chocar. É, acima de tudo, uma picada numa ferida que o realizador diz estar esquecida, a do colonialismo português.
Em “Mosquito” não se revelam diretamente os horrores expostos da guerra, que o próprio realizador encontrou na pesquisa que fez. Não há sangue derramado, nem cadáveres espalhados pela lama. Vai-se antes à procura dela para a destapar, através da história do avô que o realizador não conheceu, na pele de um jovem iludido, ingénuo e, principalmente, sozinho, que se torna racista sem saber, não fosse essa a narrativa da época, por estarmos perante a ideia de que estes povos não se sabiam governar.
Mas Zacarias africaniza-se. Perde a visão romântica de uma “África minha” e ganha uma consciência, transversal ao próprio realizador, durante a fase de pré-produção. “Deparei-me com pouca literatura e informação sobre esta época. Depois apercebi-me que foi propositado, houve um blackout do Estado português na altura. Estima-se que morreram muito mais africanos do que soldados brancos nas trincheiras em França. O que se passou em África foi outro Holocausto, executado por impérios europeus da altura”, afirma o realizador ao Observador.
[o trailer de “Mosquito”:]
Mas esse sentimento de culpa, esse processo de africanização de Zacarias, vai sendo feito sempre por etapas, num “road movie” em que o próprio espectador pode experimentar meter-se no lugar do protagonista. Este soldado decide atravessar um Moçambique selvagem, “ameaçado” pelos boches (os alemães), numa jornada que começa logo com um obstáculo: o paludismo. A doença traz cansaço, dor, pedidos de misericórdia divina, raiva para com o outro, o negro, o inferior, e uma confusão mental que leva quase à loucura.
Ainda que João Nuno Pinto e a equipa não tenham chegado à fase de endoidecer, “viveram” um pouco aquilo que Zacarias viveu, nos dois meses de rodagem em África, que também teve uma breve passagem por Portugal.
“Estivemos sempre em movimento, a dormir mal e a deitar tarde. Por exemplo, quando filmávamos no mato e algum material falhava, tínhamos sempre de improvisar, porque eram necessárias duas semanas para trazer algo de Lisboa. Mas se estávamos em dificuldade, o Zacarias estava mil vezes pior”, conta.
Já para não falar dos constrangimentos financeiros — e dos atrasos na rodagem, que levaram a que o “Mosquito” só estreasse sete anos depois de começar a ser pensado, ainda que o filme tenha o selo de Paulo Branco, através da Leopardo Filmes, em co-produção com o Brasil, França e Moçambique. “Nunca foi um objetivo fazer um épico, é muito arriscado. Se o quisermos fazer, quase de certeza que vai correr mal”.
Depois, a salvação, suja, doente, nua dos pés à cabeça. Que acontece na única parte do filme onde existem personagens femininas (todas moçambicanas, da figuração às crianças). Zacarias chega a uma tribo, tornando-se seu escravo — os planos do soldado branco a levar chicotadas não deixam dúvidas –, para se curar do paludismo. Aqui estamos noutro filme. O branco é o inferior. “Nessas cenas tivemos de construir toda a aldeia e quando já tínhamos tudo acertado, veio um segundo dono reclamar que aquelas eram as suas terras. Por outro lado, aquilo que filmámos ali era impossível fazer cá. Foi de uma grande generosidade e entrega. Uma lição de vida para o Zacarias e para nós”, afirma.
Nesta jornada, de encontro com a cultura macua, dos seus rituais, mitos e fantasias, nunca estamos em pleno silêncio. Não há tiros, nem corpos a apodrecer nas trincheiras. Os ruídos da selva, também presentes, são ultrapassados por uma banda sonora contemporânea, o elemento mais estranho no filme — sem ser quando nos surge um Camané, de botas e fato de soldado, a cantar o fado. Só que a estranheza da escolha tem uma justificação: o realizador queria que o espectador se relacionasse com o que vê, como se “fosse algo que podia acontecer hoje”. Daí a escolha de Justin Melland, compositor norte-americano, que intensifica o sofrimento de Zacarias a cada batida eletrónica. Ou seja, o jovem de hoje deve olhar para o “Mosquito” e pensar que, um dia, este Zacarias pode ser ele. Rebuscado, mas entendível, não fosse este o filme escolhido — e bem recebido — para abrir o Festival de Roterdão de 2019.
Por fim, a redenção, ou a consciência de uma África que não é, nem nunca foi, de ninguém a não ser dela própria. Há um encontro inesperado entre um comandante (José Lagarto) e um leão gerado por computador — mais só mesmo vendo o filme. Zacarias, quase derrotado, expurga-se da narrativa patriótica que vinha lá de longe. Já não existe a ambição de cumprir a missão heróica em França. Ficam muitos quilómetros para trás e uma despedida abrupta daquele universo masculino, opressor, que acaba, curiosamente, com um tiro de espingarda. A tal redenção consciente que o próprio realizador sentiu, quando começou a sua própria jornada, pegando na história do avô, e dando-lhe uma nova narrativa, a par com Fernanda Polakow e Gonçalo Waddington, que escreveram o guião.
“Eu e a Fernanda fizemos mais de cinco mil quilómetros em Moçambique, há sete anos, para nos prepararmos para o filme, fazendo o percurso do Zacarias. Fizemos entrevistas a intelectuais, historiadores e anciãos moçambicanos. Queríamos ser o mais verdadeiros possíveis. Todos os eventos no filme têm a cultura macua. Na Holanda, por exemplo, eles abraçaram o filme por terem um passado colonizador e porque agora se discute o assunto lá. Espero que cá exista a mesma reação. Porque Portugal continua a não querer discutir este período, a falar de como fomos ‘os bons colonizadores’, amarrados a uma construção narrativa que vem detrás”, termina.